Arnaldo Bloch, agosto de 2004, em O Globo
Uma maneira interessante de apreciar a obra de Alberto Korda — o autor do clichê mais reproduzido e cultuado em todo o mundo (a foto definitiva de Che Guevara) — é construir um álbum de instantâneos de sua vida. E depois traçar um paralelo com as imagens reunidas em “Cuba por Korda”, de Alessandra Silvestri-Levy e Christophe Loviny, que será lançado no final do mês pela Cosacnaify, vendido a R$ 69, preço quase revolucionário, se considerarmos o mercado brasileiro de livros de luxo.
O primeiro instantâneo da aventura de Korda data do início dos anos 50, quando monta um estúdio em Havana. Fotografa embalagens de salsichão, pacotes de café e, contemplador voraz do erotismo feminino, mulheres. Vende suas imagens a um semanário havanês e acaba tornando-se o primeiro fotógrafo de moda de Cuba, celebrizando sua formosa esposa, Norka, como modelo.
Foto de Che não rendeu um tostão
O segundo instantâneo revela o estágio decisivo de sua transformação: em 1958, num trabalho na região de Pinar del Rio (produtora dos melhores charutos do mundo), encontra, num vilarejo miserável, uma menina. Assustada diante da câmara, ela chora. Carrega um pedaço de madeira “vestido” com uma saia de papel-jornal, que ela chama de “minha boneca”. Ao captar a imagem, Korda vê sua consciência voltar-se para a realidade do país, num ano em que, lideradas por Fidel, as colunas revolucionárias realizam as últimas manobras para a tomada definitiva do poder.
O terceiro instantâneo mostra Korda integrando-se à equipe do jornal “Revolución”, cujos textos e ensaios fotográficos chamam para a mobilização popular. Trabalha gratuitamente, como militante. Na viagem de Fidel aos EUA em 1959, faz parte da equipe de cobertura e fixa uma imagem de força simbólica extraordinária, que mostra Fidel diante do gigantesco Memorial Lincoln em Washington.
Seu trabalho chama atenção de Fidel e, em 1959, Korda é chamado a integrar a delegação do comandante em sua visita à Venezuela.
O quarto instantâneo nos leva à celebração de uma tragédia: no enterro das vítimas da sabotagem do cargueiro francês La Coubre, no porto de Havana, em 1960, Fidel discursa num palanque que divide com Che, Sartre e Simone de Beauvoir. Num dado momento, Che avança para contemplar a multidão e aparece diante da objetiva de Korda, que bate duas fotos. Ainda inconsciente da importância daquelas imagens, envia, entre outros, um dos retratos de Che, que mostra a expressão severa e carregada e o colo vestido com a jaqueta verde-clara e preta. A foto é desprezada pelo arte-finalista de “Revolución” no dia seguinte, e é publicada um mês depois, como um 3×4, junto a uma pequena nota sobre uma conferência que Che daria na TV.
O quinto instantâneo, de 1962, leva-nos às montanhas de Sierra Maestra, para onde Che retorna após tomar o poder, para meditar, ganhar forças e exercitar-se. Korda acompanha-o e refaz as trilhas revolucionárias, flagrando-o em manobras, na intimidade e no trato com o povo, e recolhendo daí não apenas imagens, mas impressões escritas (reproduzidas no livro). Naquele ano, acompanhará a mobilização por conta da Crise dos Mísseis, que quase detonou a Terceira Guerra Mundial, e, no ano seguinte, seguira o comandante em sua viagem à Rússia, durante a qual vai reatar os laços com Nikita Kruchev, abalados pelo desfecho da crise.
O sétimo instantâneo descreveria a chegada em Havana do editor italiano Giangiacomo Feltrinelli em 1967, em busca de um retrato de Che Guevara. Escolhe a foto de Korda, que a oferece gratuitamente e a título privado. Meses depois, quando Che é assassinado na Bolívia, o editor imprime milhões de postais e pôsteres. Korda jamais receberá um tostão e não terá sequer o crédito impresso.
Fidelidade a Cuba até a morte
O oitavo e derradeiro instantâneo nos transporta ao fim do milênio, em Point Dume, Malibu, Los Angeles. Co-autora do livro, a brasileira Alessandra Silvestri-Levy caminha com Korda (que morreu em 2002) contemplando a luxuosa paisagem, e divaga:
— Se você tivesse sido pago a dez centavos de dólar por cada foto reproduzida, compraria um desses palácios.
Korda guarda silêncio. Horas mais tarde, já retornando a Cuba, dá sua sentença:
— Sabe, a vista que tenho do meu apartamento, dos pores-do-sol, o jeito com que as mulheres cubanas caminham sobre o malecon, um peixe fresco ou um porco grelhado com meu rum Anejo, meus cigarros populares… eu não trocaria isso por nada neste mundo.