A ressurreição de Goulart, que nada tem de religiosa ou mística, atualiza a indagação sobre a colaboração da CIA e do Departamento de Estado em sua queda.

Por Dario Pignoti, na Carta Maior. Tradução de Liborio Junior.

Os restos do ex-presidente João Goulart começaram a ser exumados nesta quarta-feira (14) em sua cidade natal, São Borja, 37 anos depois de sua morte no exílio, quando estava na mira da Operação Condor, como prova uma vasta documentação que circulou secretamente entre os agentes da repressão e diplomatas em cumplicidade para vigiá-lo e, eventualmente, caçá-lo no Brasil, na Argentina e no Uruguai.

A presidenta Dilma Rousseff, que receberá nesta quinta-feira (14) o corpo de João Jango Goulart com honras de Estado, em Brasília, enviou à São Borja seus ministros Maria do Rosário Nunes, Direitos Humanos e José Eduardo Cardozo, Justiça, para rubricar o apoio do governo e dar a dimensão política de um acontecimento que transcende a conjuntura.

“Começamos pela perfuração das paredes do jazigo e da cúpula para fazer a extração de gases tóxicos. Isso leva uma hora de trabalho. Procuramos gases de três famílias toxicológicas e também as substâncias (usadas) historicamente pela Operação Condor”, declarou o doutor Jorge González Pérez, titular do curso de ciências médicas da Universidade de La Habana.

Junto aos especialistas estrangeiros, entre os quais há um grupo de argentinos e uruguaios, estava o médico João Marcelo Goulart, graduado em Cuba e neto do ex-presidente.

O cubano Fernández Pérez, perito de parte da família Goulart, e Amaury de Souza Junior, da Divisão de Perícias da Polícia Federal do Brasil, falaram com a imprensa no acesso ao Cemitério Jardim da Paz, de São Borja, sob um sol absoluto. Ao meio-dia, o termômetro da Praça 15 de Novembro marcava 35 graus centígrados.

Até o cemitério municipal chegaram vários vizinhos são-borjenses como “Seu” Anastácio Fonseca, de 90 anos e Luthero Fagundes, de 88, para contar suas vivencias com Jango e reclamar que o corpo não deveria deixar a cidade.

Celeste Penalvo, viúva do secretário pessoal de Goulart, com quem ele compartilhou seus anos de exilio, disse à Carta Maior que “a exumação é algo que tem que ser feito de uma vez por todas. Ao Doutor Jango nem sequer lhe fizeram a autopsia quando o trouxeram a São Borja…eu estive com ele no Uruguai, pouco antes de sua morte, estava muito bem, havia deixado de beber, tomamos uns mates e ele partiu para a Argentina, poucos dias depois nos avisam que havia morrido, não podia acreditar”.

O fato de ter retirado Jango de sua tumba provavelmente seja uma das poucas iniciativas relevantes do Estado brasileiro na apuração dos fatos ocorridos durante a ditadura. Outra é a Comissão da Verdade, em sua marcha lenta em busca da recuperação da memória e da verdade (o governo evita, por enquanto, falar de Justiça, como é mencionado pelos familiares) sobre o que aconteceu durante a ditadura mais influente, por ser a que Washington escolheu como sócia principal, e a menos investigada de América do Sul, dado que ainda rege a lei de anistia promulgada durante a regência do ditador João Batista Figueiredo.

Os peritos que supervisionaram a exumação começaram a expor efetivamente os passos do estado terrorista brasileiro: junto com os despojos de Jango, começou a sair de seu enterro a conspiração urdida pela Operação Condor para eliminá-lo.

Ao falar no Centro de Tradições Gauchescas de São Borja, na terça-feira à noite, a ministra Maria do Rosário Nunes lembrou que o ex-governante esteve vigiado cada dia dos 14 anos que viveu desterrado depois do golpe de março de 1964.

“Estamos exumando a Operação Condor” resumiu a ministra em uma entrevista à Carta Maior.

Não houve, embora tenha sido solicitado formalmente, nenhum apoio do Exército, que alegou razões burocráticas para dissimular a preocupação militar frente à repercussão do líder “populista” nesta segunda vida iniciada com a reparação histórica de seu governo. “Goulart não está morto, porque sua agenda de transformações sociais, reforma agrária entre elas, ainda não perdeu vigência”, observou João Vicente, seu filho, em uma de suas tantas declarações desde que chegou a São Borja.

A ressureição de Goulart, que nada tem de religiosa ou mística, atualiza a indagação sobre a colaboração da CIA e do Departamento de Estado em sua queda e, supostamente, no complô para assassinar, mediante a adulteração de seus medicamentos, o presidente deposto.

Goulart volta, e com ele a trama de agentes da repressão dissimulados na Embaixada Brasileira em Buenos Aires, que entre 1975 e 1976 parece ter sido uma base de operações ilegais, vinculada possivelmente à desaparição de vários brasileiros, como o pianista de Vinicius de Moraes Francisco Tenório Cerqueira.

Falta muito por investigar sobre as ações das ditaduras em ambas margens do rio Uruguai, sobre as quais os agentes da Operação Condor estabeleceram bases que se movimentavam complementarmente.

Pela mesma ponte sobre o rio Uruguai, onde passou o cadáver de Goulart no dia 6 de dezembro de 1976, vindo da província argentina de Corrientes ao Rio Grande do Sul, 4 anos mais tarde o fizeram os militantes argentinos Ismael Viñas e o padre Jorge Adur (viajava a Porto Alegre para denunciar, frente ao papa Juan Pablo II, as violações dos direitos humanos cometidas pelo ditador Jorge Videla), ambos sequestrados e desaparecidos em operações executadas por brasileiros e argentinos.

Ter recuperado Goulart de sua morte política traz consigo a possibilidade, inclusive, de que avance a causa que investiga sua morte no Juizado Federal de Paso de los Libres, Argentina, freada devido à falta de colaboração de sua contraparte brasileira. Uma fonte do judiciário disse, por telefone à Carta Maior, que a exumação “pode ser de grande ajuda, porque este caso de Goulart está cheio de coisas estranhas. Um exemplo? Das 21 testemunhas de seu falecimento, 19 morreram, alguns por causas naturais, outros por acidentes estranhos”.