Por Mino Carta
Gentil, doce, frágil… Quem nos apresentou foi meu pai, faz muitos anos, éramos mocinhos. Tinha voz forte, baritonal, não casava com o físico…
Assim apresento Vlado Herzog em O Castelo de Âmbar, livro que escrevi e publiquei faz seis anos. É, digamos assim, ficção autobiográfica, e nela Vlado surge com outro nome, Aldo Walder. Mas é a história da sua morte que contei, episódio crucial da minha vida real de cidadão e jornalista.
O enredo me envolveu e capturou igual a rede invencível desde o momento em que a redação de Veja, noite de 24 de outubro de 1975, foi alcançada pela notícia da iminente prisão de Vlado. Ele dirigia o jornalismo da TV Cultura, eu dirigia a redação da semanal da Editora Abril.
O Terror de Estado escalava, muitos profissionais estavam há dias, e até semanas, nas mãos dos torturadores nas masmorras da ditadura, entre eles bons amigos, a começar por George Duque Estrada, atual diretor de Arte de CartaCapital.
Procurei esclarecimento e ajuda. Depois de ligar em vão para o chefe da Casa Civil da Presidência da República, Golbery do Couto e Silva, e para o governador de São Paulo, Paulo Egydio Martins, já no alvorecer do dia 25 recorri ao cardeal arcebispo, dom Paulo Evaristo Arns.
Foi o cardeal quem finalmente entrou em contato com o governador, estava a 800 quilômetros de São Paulo, e dele recebeu uma estranha mensagem. Eu teria de seguir para Santos e lá procurar, na Vila Belmiro, reduto do Santos F.C., o coronel Erasmo Dias, secretário da Segurança, com a seguinte ordem do próprio Paulo Egydio: “Volte imediatamente para a Capital e assuma o controle da situação”.
Fiquei pasmo. Disse: “Pelo amor de Deus, dom Paulo, o coronel é do esquema, e é bem capaz que não perca a oportunidade e prenda também a mim”. “Por Deus, tenho mais amor que você – disse suavemente o cardeal –, e esta é a mensagem do governador.” Pensei em Kafka, mas fui a Santos.
Era começo de uma tarde melancólica, garoava. Não havia sinal do coronel na Vila Belmiro, telefonei para dom Paulo. “Volta”, disse ele. Ao chegar a São Paulo, recebi a notícia do assassínio.
A versão oficial fala de suicídio e a foto divulgada mostra Vlado ajoelhado, “a cabeça pensa, o corpo abandonado à força da gravidade, e, ao mesmo tempo, obrigado a sofrer a negação do descanso, como se em lugar de um homem morto, houvesse um títere encostado no bastidor, entre uma encenação e outra”. Citei-me, novamente.
Meu envolvimento foi além, presa da rede inexorável. No Palácio dos Bandeirantes, assisti à comunicação das circunstâncias da morte feita ao governador pelo presidente da Fundação Anchieta, Ruy Nogueira Martins. Um telefone trilou, o governador atendeu de pé, bateu os calcanhares, repetia “não sabíamos, não sabíamos”. Entendi que falava com o coronel Paiva, chefe do SNI em São Paulo.
Logo mais a noite de domingo 26 encerrou-se, depois de uma última conversa a dois com Paulo Egydio, enquanto este, em lágrimas, jantava uma omelete recheada com diempax.
Profissional competente, cidadão sonhador, no assassínio de Vlado escrevi em O Castelo de Âmbar: “Você registra a tragédia da irracionalidade do mal, mesmo porque, paradoxalmente, o torturador preferia ter preservado Vlado para prosseguir na sua tarefa. (…) Penso em Vlado e sinto a agulhada. Mas a morte dele exaspera as contradições do regime, aprofunda o conflito que lhe rói os alicerces. É a toupeira da História em ação”.
Referia-me ao embate surdo e feroz entre falcões e pombas da ditadura, entre quem cogitava de uma retirada, “lenta, gradual, porém segura”, e quem pretendia recrudescer a prepotência do Sistema. Assassinar Vlado não era intuito dos homens do DOI-Codi, nem por isso Vlado deixa de ser mártir autêntico e simbólico. Ele é a semente de uma resistência que ora na Catedral da Sé, no culto ecumênico celebrado no sétimo dia. Que protesta no estádio da Vila Euclydes, nas greves do ABC, de 1978 a 1980. Que clama pela democracia na campanha das Diretas Já, em 1984.
Clamou sem êxito, como sabemos, não somente porque o Congresso de então não respeitou a vontade do povo, mas também porque até hoje o anseio democrático está muito longe da realização neste nosso Brasil periférico, submisso e insuportavelmente desigual.
Simbólico é também o fato de que poucos, pouquíssimos, entre os companheiros de Vlado, continuem fiéis aos ideais dos anos verdes. Muitos aderiram à tucanagem, hoje servem aos legítimos herdeiros do udenismo paulista. Ocorre-me parafrasear Santa Joana, na versão de George Bernard Shaw: “Quando, ó Deus, este Brasil estará preparado para receber seus mártires?”