Muitos jornais, revistas, emissoras de rádio e de TV atuam como cães de guarda ou como partidos das classes dominantes. Por Hamilton Octavio de Souza, abril de 2005
 

Controlada majoritariamente pelas elites das classes dominantes, e organizada como empresa comercial com objetivo de lucro, a imprensa brasileira incorpora e  reproduz, na sua atividade jornalística, de um lado, os mesmos componentes históricos, culturais e políticos formadores dessas elites e, de outro lado, as características expressas no capitalismo periférico e submisso ao centro do imperialismo.

Portanto, não há qualquer contradição no fato de a imprensa brasileira ter sido gerada na corte do império e ter herdado, primeiro, os cacoetes da realeza e, segundo, as posturas dos senhores de engenho, dos barões do café e dos capitães da indústria. Nasceu, assim, pelas mãos dos poderosos para servir aos interesses dos poderosos, muito mais para controlar o povo do que para libertar.

O desenvolvimento capitalista acrescentou ao sistema de comunicação o modo operacional baseado na contínua modernização tecnológica, na disputa do mercado, na concentração empresarial, na oligopolização do setor e na exploração da mão de obra – todos no sentido de proporcionar a maior e a mais rápida acumulação do capital, a disseminação de padrões de consumo – essencial para a economia de larga escala e para a globalização dos mercados – e a hegemonia do pensamento liberal.

A consolidação desse modelo foi possível porque funciona em perfeita sintonia com o poder político do Estado, o qual, de um lado, tem sido também poder concedente e fiscalizador do sistema de radiodifusão, e, de outro, tem sido o “parceiro” que fornece os mais variados tipos de sustentação, desde empréstimos nos bancos públicos, isenções para a aquisição de equipamentos e papéis, até veiculação publicitária com forte injeção de dinheiro público nessas empresas privadas.

Ao longo de mais de um século, o Estado brasileiro e o sistema privado de comunicação – dentro do qual estão inseridos a imprensa e a atividade jornalística – atuam de forma unificada na defesa dos interesses das classes dominantes, prioritariamente para a preservação dos privilégios de suas elites e do capitalismo. A imprensa funciona, escreveu o professor francês Serge Halimi, como os novos cães de guarda do sistema.

Isso explica porque a imprensa – a chamada “grande imprensa”, que é constituída pelos principais jornais, revistas, emissoras de rádio e de televisão que operam comercialmente – tem sido, ao longo de anos, tão hostil aos movimentos sociais formados pelas camadas populares e pelos trabalhadores do campo e da cidade. Na verdade, ela reproduz fielmente a visão das elites, que sempre consideraram “perigosas” as pessoas oriundas do povo.

Isso explica também porque essa imprensa tem sido hermética em fornecer espaço editorial para setores subalternos, excluídos e marginalizados da sociedade, e também aos grupos políticos, aos partidos e aos movimentos que se propõem a defender ou a representar esses setores localizados na base da pirâmide econômica e social. Para o professor Perseu Abramo, alguns veículos da imprensa brasileira se constituem como partidos da burguesia, com programa próprio e com inserção direta na luta de classes.

Nesse sentido, a violência praticada pela imprensa se configura na ausência de efetiva prática democrática na cobertura jornalística dos fatos da sociedade e, também, na imposição de uma visão de mundo única e exclusiva daqueles que tudo têm e tudo podem, pois controlam a economia, a política, o aparelho de Estado e demais instrumentos de pressão disponíveis na sociedade, em especial o sistema de comunicação social.

Embora se esforcem em demonstrar que o País vive uma democracia, que existe liberdade de expressão garantida na Constituição Federal, que o jornalismo praticado pelos principais veículos de comunicação seguem normas de isenção, imparcialidade e preceitos éticos iguais para todos, os donos da imprensa não conseguem esconder as suas posições de classe, os seus interesses econômicos e políticos, as suas preferências e os seus enfoques editoriais particulares.

Qualquer leitura mais atenta dos jornais e revistas, e qualquer pesquisa nos arquivos de qualquer veículo da chamada “grande imprensa”, vão comprovar que a manipulação e a distorção funcionam como regra permanente, e não como uma exceção. Ou seja, a exclusão, o preconceito, a crítica deliberada e o tratamento que atendem melhor o interesse dominante, fazem parte do processo de produção do jornalismo, desde a seleção da pauta, a escolha das fontes, até a edição final do material. No caso específico da televisão, o universo de manipulação abrange também o tempo de exposição, a imagem e o som utilizados em cada matéria jornalística.

A voz das classes dominantes – de seus representantes nas mais diferentes atividades profissionais e humanas – e de todos aqueles que se pautam pelo pensamento neoliberal, é sempre determinante na maioria dos veículos, embora expresse apenas o que interessa para a minoria da população brasileira. A maioria do povo brasileiro não consegue colocar a sua voz nesses veículos do sistema comercial-burguês, apesar de ser maioria.

As principais manifestações populares e os principais movimentos sociais sempre ficaram de fora ou foram maltratados pela “grande imprensa” comercial-burguesa. Da mesma forma que a história oficial procurou esconder e distorcer os movimentos de Canudos, Caldeirão, Contestado, Porecatu e tantos outros, a imprensa tem escondido manifestações populares que pipocam pelo Brasil afora, normalmente de contestação aos poder

es das forças dominantes.

Um exemplo bem específico é o movimento desencadeado pelos metalúrgicos da Scania, em 1978, em São Bernardo do Campo, no ABC paulista, com desdobramentos nos anos seguintes e que rompeu o cerco da ditadura militar no sindicalismo, derrubou a política de arrocho salarial, mobilizou multidões, articulou a solidariedade das classes trabalhadoras, contribuiu para o fortalecimento das lutas pelos direitos e liberdades do povo, e que projetou inúmeras lideranças operárias, inclusive o atual presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva.

Durante o período das greves do ABC, a imprensa paulista e do Brasil fez o que pode para distorcer o movimento, principalmente porque tinha a desculpa de estar sob a mira da ditadura; as notícias dos jornais, diariamente, tratavam as lutas dos trabalhadores como lutas subversivas, comandadas por “perigosos comunistas” ou então como atitudes provocativas para estimular o endurecimento do regime. A TV Globo, na época, gravava horas de imagens nas assembléias dos metalúrgicos e pouco colocava no ar, mas as fitas eram passadas para o 2º Exército identificar os “agitadores” do ABC.

O papel da imprensa comercial-burguesa ao longo dos anos 80 e 90 se restringiu a ridicularizar, intrigar, desmoralizar e acusar os movimentos de trabalhadores da cidade e do campo que se articularam em torno da CUT, do MST, do PT e de inúmeras organizações locais e regionais. Quantas vezes a imprensa não instigou os governos e as forças policiais do sistema a reprimir greves de funcionários públicos e de operários, ou as ocupações de sem-terra na luta pela reforma agrária? Alguém ainda se lembra da violenta repressão do governo FHC contra os petroleiros, estimulada pelos editoriais dos principais veículos de comunicação do País?

Nos últimos anos, o alvo principal da “grande imprensa” tem sido o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), especialmente depois que o movimento demonstrou uma grande capacidade de articulação, nacional e internacional, diante do massacre de Eldorado de Carajás, em 1996, e com a marcha de abril de 1997, que culminou com uma grande concentração na Esplanada dos Ministérios, em Brasília.

Desde então, os veículos mais conservadores, geralmente ligados ao capital internacional, ao agronegócio e ao latifúndio (mesmo porque muitos veículos pertencem a famílias oriundas da oligarquia rural), têm atacado sistematicamente as ações e as lideranças do MST. Tentam, através dos mais diferentes recursos e argumentos, criminalizar um movimento que organiza as famílias no campo e estimula a construção de um País mais justo e mais igualitário.

O Estadão chegou a manter correspondentes específicos para produzir matérias distorcidas sobre ocupações de terra, acampamentos e assentamentos. As TVs Globo, Record e Bandeirantes adoram produzir matérias parciais, preconceituosas e, às vezes sórdidas, sobre o MST, geralmente com comentários maliciosos e maldosos dos apresentadores dos telejornais.

A revista Veja, da Editora Abril, dedicou várias reportagens de capa ao MST, entre as mais famosas as que ostentavam as manchetes “A marcha dos radicais” e “A tática da baderna”. Sobre essa última, o coordenador nacional do MST João Pedro Stedile, ofendido e caluniado no material jornalístico, ganhou ação na justiça contra a revista, que foi condenada a uma indenização de 200 salários mínimos. Ficou provado que a revista havia manipulado deliberadamente para denegrir a imagem pública do líder do movimento.

A violência praticada pela imprensa é o tipo de violência que não atinge apenas os alvos escolhidos e as vítimas diretas, pois ela contamina e  corrói o conjunto da sociedade, na medida em que sonega a compreensão da realidade e alimenta uma visão distorcida, dissemina a intriga, a calúnia e o preconceito, não respeita a verdade dos fatos. A luta contra a violência e contra a impunidade implica, também, na defesa de um sistema de comunicação efetivamente democrático, que mostre o Brasil sem restrições e que garanta ao povo o direito de expressar livremente a sua opinião – sem manipulação.
 

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Hamilton Octavio de Souza é jornalista, professor da PUC-SP e diretor da Apropuc.