Segundo Ivan Lessa, um de seus mais geniais colaboradores, o Pasquim “tirou as aspas” do jornalismo. Para Sérgio Augusto, tirou-lhe também “o paletó e a gravata”. Depois dele, a imprensa jamais seria a mesma. Lançado em junho de 1969 — seis meses, portanto, depois do AI-5 — o Pasquim revolucionou os meios de comunicação brasileiros. Por causa da censura imposta pela ditadura militar, devia durar pouco, segundo a previsão pessimista de Millôr Fernandes. Modestos, os editores fizeram uma tiragem inicial de 15 mil exemplares. Em alguns meses, estava vendendo 200 mil exemplares por semana, o que configuraria um fenômeno editorial até nos dias de hoje.
Não existe receita, é claro, para se fazer um jornal assim. O Pasquim deu certo porque foi publicado no lugar certo, o Rio de Janeiro, e no momento certo — que o bom senso, no entanto, dizia ser o errado. Empresários morriam de medo de anunciar, temendo represálias do governo. Em compensação o semanário contava com uma equipe de colaborares especialmente talentosa, que em condições normais seria muito difícil reunirnuma única redação. A diferença entre o Pasquim e outros órgãos da imprensa da época é que encarnava um certo sentimento libertário, de resistência ao “sistema”, como se dizia, e por isso todos os insatisfeitos queriam colaborar.
Foi um mutirão de talentos. É impressionante a lista de jornalistas, escritores e artistas de várias gerações que escreveram ou desenharam para o Pasquim — de Vinicius de Moraes a Chico Buarque, de Nássara a Glauber Rocha. O humorista Jaguar contribuiu com personagens inesquecíveis, como o ratinho filósofo Sig; Gastão, o vomitador;e Bóris, o homem-tronco. Henfil inventou o Cabôco Mamadô, que chupava o cérebro dos infiéis, e o fradinho sádico com seus procedimentos escatológicos. Ivan Lessa criou a Sra. Edelmar Barbosa e o Leitão Dondinho (3 anos, 48kg). Paulo Francis, para debochar dos clichês acadêmicos, consagrouexpressões como “inserido no contexto” e “raciocinando em bloco”. Eufemismos feitos para driblar a censura — “duca”, “sifu”, “paca”, “putzgrila” — entraram de vez no repertório das nossas gírias.
Um dos segredos do Pasquim foi sem dúvida a falta total de preconceitos,na verdade nem tão total assim, pois gostava de espezinhar os “reacionários” Gustavo Corção, David Nasser, Roberto Campos e Nelson Rodrigues. Num tempo em que as “patrulhas ideológicas” denunciadas por Cacá Diegues agiam a toda força, por sugestão de Tarso de Castro o entrevistado do primeiro número foi o colunista social Ibrahim Sued, que gostava de bajular os militares. Seguiram-se muitas outras entrevistas antológicas, feitas num estilo coloquial muito peculiar de “jornalismo-verdade”: com a atriz Leila Diniz e seus famosos palavrões, com o lendário malandro da Lapa Madame Satã — uma redescoberta do Pasquim, pois nem se sabia que ele ainda existia —, com o folclórico político Tenório Cavalcanti, com o cantor brega Waldick Soriano e muitas e muitas outras.
O Pasquim era antes um jornal anárquico do que uma publicação “de esquerda”: entre os dois Marx, afinava-se mais com Groucho. Mesmo assim, o governo preferia vê-lo como um “antro de comunistas, bêbados, pervertidos e drogados”, nas palavras de Sérgio Augusto. Em novembro de 1970, quase toda a equipe passou um mês incomunicável, na Vila Militar, sem processo ou qualquer explicação. Já outros episódios, nessa relação com a ditadura, pareciam puras criações de Ivan Lessa. Uma bomba, colocada no quintal da casa onde funcionava o Pasquim, não explodiu por incompetência dos terroristas. A primeira censora, Dona Marina, gostava de uísque e ficou amiga da turma. Por isso, relaxou no trabalho e acabou afastada. Mandaram, para substituí-la, um General da reserva que não era outro senão o pai de Helô Pinheiro, a Garota de Ipanema. Não parece piada do Pasquim? Às vezes a censura cortava tanto que não sobrava material para encher o jornal. Mas também podia servir de pretexto para encobrir as falhas dos próprios editores. Uma vez Tarso de Castro não entregou sua matéria a tempo. Jaguar teve a idéia de ocupar todo o espaço que estava reservado para o artigo, duas páginas, só com as palavras “blá-blá-blá-blá”. Saiu assim, devidamente assinada por Tarso, e os leitores acharam “genial”.
O Pasquim foi, enfim, uma experiência rara, ou melhor, raríssima, na história da imprensa brasileira. O último número é de novembro de 1991, mas, paradoxalmente, sua fase áurea coincide com a vigência da censura prévia, que acabou em1975. Quem sabe a luta diuturna contra os censores fizesse parte da química do sucesso? O fato é que algo do seu estilo impregnou, de uma forma ou outra, todo o jornalismo, com uma linguagem menos formal, menos pomposa, e decerto mais acessível ao leitor.
A Editora Desiderata anuncia, para breve, mais duas antologias do Pasquim. É uma ótima notícia. Passado tanto tempo, continua sendo um prazer ler ou reler o bravo “jornaleco”.
Colaboração de Benicio Medeiros, Diretor de Jornalismo da ABI