Por Tatiana Lima
Um dos filhos mais jovens de uma família de agricultores com 13 filhos, Ademar Bogo é militante do MST há mais de 30 anos. Passou de camponês para militante da luta pela terra e contra os latifúndios do Brasil quando foi estudar num seminário após a morte do pai, que era da Teologia da Libertação, ligado à Pastoral da Terra e acompanhava os conflitos de terra no país. Começou a militância em 1979, motivado por movimentos populares na Nicarágua e pela ebulição da luta contra a ditadura no Brasil. Porém, sua análise atual do MST é crítica e reflete a preocupação de quem anseia por um avanço do movimento e não quer retrocesso. Ademar Bogo foi um dos palestrantes da mesa sobre “Comunicação e Cultura das Classes Populares”, realizada no dia 5 de novembro, no 20º Curso Anual do NPC. Atualmente, Bogo é doutorando do curso de Filosofia na Universidade Federal da Bahia.
Nesta entrevista ele ressalta o valor da cultura e da educação na formação militante do MST, mas não se furta de fazer críticas ao movimento que, segundo ele, ao ceder ao governo perde a força e o eixo para o qual foi criado: a luta contra o latifúndio, pela distribuição de terras e a revolução popular do Brasil. Confira.
Como você vê hoje o campo da cultura e da comunicação no MST?
Ultimamente houve uma perda muito grande no sentido de ações políticas na criação de conflitos de classe e, na medida em que não há uma ação como motor que puxe as discussões e crie uma curiosidade social, há um rebaixamento na questão cultural, seja na ampliação do acúmulo de ideias e práticas de discernimento e experiências e um rebaixamento também na emissão de informações. Porque você não sente que a sociedade exige uma explicação do pouco que se faz, mas ao dizer o que se faz se diz pouco e não cria curiosidade naqueles que estão ouvindo. Então, eu penso que a gente vive num período bastante rico no sentido de compreensão do que seria um processo de construção cultural, mas em um processo de comunicação que não diversifica as formas.
O MST luta pela reforma agrária e apoiou o atual governo. Qual sua opinião?
Eu acho que é um equivoco não só do MST como de outros movimentos no sentido de não entender que o Estado é um instrumento contrário à possibilidade de busca de liberdade. Ele é um instrumento do capital e da classe dominante e está mostrando isso no sentido da política agrícola que possui, favorecendo o agronegócio, preservando inclusive a terra como uma reserva do capital que busca espaço para seu desenvolvimento. O movimento em busca de assistência ou de outras situações secundárias ao conflito principal, que é a intervenção sobre os latifúndios, acaba reduzindo sua potencialidade e, portanto, passa a fazer o papel do Estado que é de conciliação e não de enfrentamento.
Então, você acredita que o governo do PT enfraqueceu os movimentos na luta por reivindicações, como a reforma agrária?
O Estado, independentemente de quem está no governo, está fazendo o seu papel, que é de buscar manter o equilíbrio das forças e manter a governabilidade. Os equivocados são aqueles que deveriam contestar o Estado, mas se confundem imaginando que quem está no poder é seu aliados. Assim, preservam o Estado em nome de algumas recompensas assistencialistas. Medidas que qualquer governo poderia fazer como um bolsa família, acesso ao crédito, educação e outras medidas. Não necessariamente deveria precisar haver um governo de esquerda para que este governo se dê conta de que a sociedade precisa desses elementos. O Estado automaticamente deveria fazer isso para evitar conflitos sociais. Mas como não era feito, os movimentos não percebendo isso, acabam entrando numa lógica que diminui a capacidade ofensiva. Vivem na defensiva, mas para não ferir as poucas relações dos canais que são abertos com o governo, eles se calam e se acalmam culpando a conjuntura, a situação de desmobilização geral, que é real. Estamos num processo em que há uma desmobilização social grande, mas a sociedade não será reorganizada por conta de assensos que virão na espontaneidade. A sociedade precisa ser provocada e isso ninguém quer fazer porque, quando se reage, esse movimento remete a uma discussão e por conta dessa possibilidade de reação poder favorecer a direita como oposição, a esquerda passa a ir até o limite que julga ser possível porque acredita que dessa forma a direita não vai se aproveitar dessas ações. Logo, você está fazendo o que a ordem precisa que você faça para permanecer como está.
Qual sua avaliação atual do MST?
É um movimento que passa por grandes dificuldades porque não tem um projeto estratégico para transformação do país por ser um movimento de camponeses e, por isso, não representar toda sociedade. Não tem outra força urbana à qual o MST possa se ligar para poder compartilhar o que já tem de avanços da compreensão das contradições da luta de classes: o preparo da militância, toda a experiência que se tem desses últimos 30 anos e que poderia ser aproveitada como patrimônio da classe trabalhadora para outras ações em outros ambientes. Mas, principalmente, o MST hoje não tem dentro de si uma disposição de renovar suas táticas. Então, é um movimento que tende a penar muito e sofrer porque suas reações não têm força suficiente de reverter as políticas em relação ao latifúndio e ao agronegócio ou em relação ao próprio governo. É um movimento que terá poucas vitórias à frente e isso significa uma regressão no sentido do acúmulo social histórico.
Você demonstra uma grande preocupação com isso.
Sim, porque você percebe que a sociedade está em contradição e não só no sentido apenas de sua civilização, ela está em contradição inclusive com a possibilidade de regredir para barbárie. E na medida em que você não tem uma força política que chame atenção ou intervenha demonstrando que há um processo construtivo de possibilidade, um processo de transformação que deveria ser algo prioritário e que a luta de classes seja realizada em outro patamar, nós estamos numa situação de um povo sem destino. Não temos hoje um projeto popular em discussão e nem de luta de classes que se concretize como luta de classe prolongada. Também não temos a formação de consciência política da juventude e militância que possa de fato ir reproduzindo reflexões e tomando seus espaços por processo de emancipação. E acho que isso é um perigo porque nós vamos reduzindo o conteúdo das mensagens por conta disso, nos adequando, temos que nos conformar com o que a sociedade opera, o que é presente na opinião pública. Não se critica e passamos a nós adaptar, a adaptar o conteúdo. Você acaba tendo que se colocar num estágio que não ofende as estruturas e a ordem e numa situação de defender, por fim, somente a subsistência. Isso acaba por constituir negociações que favorecem, inclusive, o governo. E nessa situação estamos perdendo imensamente o tempo, as possibilidades de reação, a confiança da sociedade na medida em que não há percepção dessa sociedade que essa força está reagindo. Dessa forma, as pessoas desacreditam ou passam a criticar as ações desse movimento ou as decisões que são tomadas. Vivemos uma crise de organizações, pois estamos com entidades velhas que serviram para década de 80 e 90 e que foram criadas para fazer a luta reivindicatória daquilo que se acumulava à época. A partir dos anos 2000, tivemos um processo de acomodação e essas entidades passaram a acreditar que tudo o que foi feito anteriormente foi para se chegar ao governo. Assim, as entidades não se renovaram e acabaram não permitindo a renovação de outras entidades nesse processo, encerrando sua trajetória.