Por Camila Nobrega e Rogério Daflon, do Canal Ibase

A chegada de uma mineradora a uma região próxima a um quilombo nos arredores da cidade de Goiânia mudou a rotina dos moradores. Eles sonharam com  empregos, mas poucos se concretizaram. A disputa pela terra se acirrou, o espaço para plantar diminuiu. O jeito passou a ser comprar comida. Os modos de vida se alteraram, as relações foram atropeladas. E, como resultado, as comunidades vivem hoje uma nova tragédia: em troca de alimento, há famílias que oferecem até suas filhas a operários da mineração. A prostituição infantil passou a ser uma triste realidade no quilombo.

A denúncia foi feita recentemente no Fórum Brasileiro de Segurança e Soberania Alimentar (FBSSAN), em junho, pelo Grupo de Mulheres Negras Malunga. Desde então, de acordo com a organização, nada mudou e a situação só se agrava. O caso se perde em meio a outros que se multiplicam Brasil afora, invisíveis frente à euforia das estatísticas que mostram a redução da fome em nível nacional. Segundo a ONU para Alimentação e Agricultura (FAO), o número de  22,8 milhões de pessoas em 1992 com fome caiu para 13,6 milhões em 2012. A mudança foi significativa, pois, em 1990, 15% dos brasileiros passavam fome. Hoje, são 6,9%.  Procurado pelo Canal Ibase, o MDS disse não ter os dados das áreas específicas onde há insegurança alimentar, sugerindo que se procurasse o IBGE.

Indígenas são o maior grupo de risco do país. Foto: Wilfred Paulse/Flickr

Os dados recentes poderiam ser festejados, já que a economia brasileira é a sétima do mundo em termos de Produto Interno Bruto e, em alguma medida, isso se reverteu em mudança social. Mas, ao seguir à risca um modelo de desenvolvimento excludente, surge um anticlímax: o país se expõe a um vexame quando se verifica a  persistência da fome em algumas regiões. O que vem à tona claramente sobre o tema é que o Norte e o Nordeste apresentam quadros de insegurança alimentar incompatíveis com a riqueza nacional. Nessa geografia da fome atual, existem territórios em que populações vivem situações gravíssimas, como afirma Francisco Menezes, pesquisador do Ibase e referência nacional no tema:

–  Eu diria que os que estão em pior situação atualmente são os indígenas. Em muitas regiões, perderam suas terras (com a chegada da soja, cana, etc), foram muito violentados em sua cultura e vivem situações de calamidade, ao qual o Estado pouco ou nada contribui – diz Menezes, fazendo um contraponto à euforia das estatísticas.

Na Terra Indígena Governador, no município de Amarantes, a 700 km da capital maranhense, o problema da fome está associado ao conflito com latifundiários do agronegócio e, consequentemente, à dificuldade de acesso à terra. Como o Brasil nunca consolidou uma reforma agrária de fato, há muitas comunidades abandonadas pela ausência de garantia do território pelo Estado. Segundo Joaquim Cardoso, morador da TI de Governador e membro do comitê gestor da Fundação Nacional do Índio (Funai), há muitos indígenas sofrendo por escassez de alimentos:

– A falta de acesso à terra no país é uma das causadoras da fome. Sem regularização de terras, o governo deixa que as batalhas continuem. Os pequenos, claro, continuam perdendo. Há índios na beira da estrada, sem ter onde plantar e sem dinheiro para comprar – contou Joaquim em entrevista ao Canal Ibase.

Nordeste é maior foco da fome no país

A situação dos índios só ganhou visibilidade com o anúncio de um possível suicídio coletivo dos Guarani-Kaiowa, um ano atrás. Mas a situação permanece inalterada lá e em muitos outros territórios indígenas espalhados pelo país.

A professora Sandra Maria Chaves dos Santos, da Escola de Nutrição da Universidade Federal da Bahia, afirma que os dados dos últimos 20 anos deixam clara a diminuição da fome do país, mas isso não é justificativa, enfatiza ela, para deixar de combatê-la. Ela estuda o tema na região Nordeste e afirma que, em Sergipe, por exemplo, houve melhora. Mas a insegurança alimentar continua grave em outros estados.

– E como serão os resultados do próximo censo do IBGE em relação à fome, levando-se em conta que a seca da região já dura quase três anos? – ressalta ela.

Foto: Rafael Belzunces/Flickr

No Vale do Jiquiriçá, a professora fez uma pesquisa com base  na Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (EBIA) e de um questionário socioeconômico. O resultado é que, de 2.002 domicílios, constatou-se  insegurança alimentar em 70,3%, com predomínio da insegurança grave e moderada (36,0%) em nove municípios.

– Há que se chamar atenção quanto às estatísticas do Censo de 2010. Embora tenha havido uma redução importante da fome, o que se vê nos dados é a manutenção das desigualdades regionais. O problema é estrutural. Quanto menor o nível de escolaridade, por exemplo, maior é o risco de insegurança alimentar – diz ela.

No contexto atual, em que muitas populações estão na iminência de perder acesso à terra com a chegada de megaempreendimentos e a expansão do agronegócio, a situação se agrava. É o que afirma o coordenador-executivo da Action Aid Brasil, Adriano Campolina:

– As obras de infraestrutura no Brasil estão gerando novas pobrezas, com a expulsão das pessoas de seus locais de origem. Precisamos reverter isso, que também ocorre em função dos megaeventos esportivos: a Copa e as Olimpíadas.

A presidente  do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), Maria Emília Melo, diz que o desafio é frear esse processo.

– É preciso investir na agricultura familiar, no banimento do uso de agrotóxicos. Há um conjunto articulador de políticas que está diretamente relacionado à segurança alimentar. O alimento tem que ser visto como direito humano e não como mercadoria.

Para Maria Emília, a soberania alimentar ainda não foi alcançada no país. Isso, prevê a presidente do Consea, só ocorrerá quando todos os povos tiverem direito de estabelecer suas políticas do direito humano à alimentação.

– É preciso pensar a produção, a distribuição e o acesso ao alimento. E não adianta apenas comer, é preciso saber quais alimentos estão chegando à mesa dos brasileiros. O Brasil assiste neste momento, por exemplo, ao aumento do sobrepeso. E há casos que combinam subnutrição com sobrepeso devido à baixa qualidade dos alimentos.

Há pesquisadores que questionam, inclusive, se alguns alimentos superprocessados devem ser chamados de alimentos. Nessa linha, a professora Inês Rugani, do Departamento de Nutrição da Uerj, aponta  um aspecto dramático no país, que aparece também no programa Bolsa Família. Ela alerta que famílias cuja renda é mais baixa estão adquirindo o hábito de  comprar alimentos processados, a fim de consumir produtos semelhantes aos da classe média.

A professora Inês Rugani, do Departamento de Nutrição da Uerj, vê um um aspecto dramático no país, que aparece também no programa Bolsa Família. Ela alerta que famílias cuja renda é mais baixa estão adquirindo o hábito de  comprar alimentos processados, a fim de consumir produtos semelhantes aos da classe média.

– A qualidade da alimentação cai muito, e a consequência na saúde é direta, como o aumento da diabetes. Um grande exemplo são os refrigerantes. Os mais baratos são ainda mais nocivos do que os mais divulgados pela propaganda maciça.

As pessoas a que Rugani se refere ao menos são beneficiadas por políticas públicas, como o Bolsa-Família. Mas há aquelas que ainda sofrem de privação.

– Ainda se morre de fome no Brasil – afirma Francisco Menezes.