A mais recente superprodução épica do cinema foi um fracasso de público nos Estados Unidos. Trata-se de “Alexandre, o grande”, de Oliver Stone. A maioria dos comentaristas atribui o fracasso ao fato de que a obra deixa explícita a bissexualidade do rei da Macedônia. Afinal, para o senso comum, seria difícil ligar uma figura que unificou a Grécia e dominou todo o mundo conhecido na época com uma sensibilidade sexual condenada pela maioria conservadora. Mas também há os que destacam uma narrativa que não cedeu ao esquema começo, meio e fim.

As duas constatações parecem se preocupar com o perfil de um certo público. O grande público. Há muitos filmes que falam abertamente de homossexualidade e bissexualidade. Há muitos filmes que põem de cabeça para baixo as seqüências e deixam para o espectador a tarefa de pôr tudo no lugar. Nem por isso, são considerados fracassos. É que, em geral, não são filmes para estourar bilheterias. E se, às vezes, o fazem, é sem querer.

Diferente do Aquiles de “Tróia”, o “Alexandre” de Stone arriscou
O aparente erro de Stone teria sido fazer com Alexandre o que deixou de ser feito com o Aquiles em outra grande produção cinematográfica recente. Em seu filme “Tróia” (2004), o diretor Wolfgang Petersen mostrou a famosa guerra contada em “A Ilíada”, de Homero. Aquiles é o personagem principal e sua coragem e força aparecem em cenas bem filmadas. O herói de Homero também era um grande guerreiro, como Alexandre. E este o tinha como ídolo e considerava-se seu descendente. Mas Aquiles também era caprichoso. Já havia se recusado a continuar a luta ao lado dos gregos, quando seu amigo Pátroclo foi morto. A perda do amigo causou-lhe tamanha dor que resolveu voltar ao campo de batalha. Não sossegou enquanto não matou o troiano Heitor, assassino do amigo. Muitos estudiosos atribuem tamanha fúria a uma paixão de Aquiles por Pátroclo. O filme de Petersen, no entanto, transformou Pátroclo em sobrinho do herói grego. Quase um filho, por quem tinha muito carinho. Não deu chance a que o público viesse a duvidar da heterossexualidade de um Aquiles encarnado por Brad Pitt.

Stone resolveu arriscar. E parece que perdeu. Pelo menos do ponto de vista da bilheteria. Quanto ao filme, a ousadia nem é tanta assim. A paixão de Alexandre por seu amigo de infância, Hefestion, é clara. Mas, o personagem de Hefestion mal se destaca na trama. Parece mais um boneco bonito para quem Alexandre olha com olhos desejosos. A cena homoerótica mais explícita nem acontece entre eles. Alexandre beija um dançarino na boca, durante uma de suas costumeiras orgias. Ainda que olhe para Hefestion, enquanto o faz.

A outra razão levantada para explicar o fracasso é a narração confusa. Mas, nem é tão confusa assim. Há idas e vindas no tempo, é verdade. A escolha de Angelina Jolie para o papel de Olimpias, a mãe do Alexandre vivido por Collin Farrel também não ajuda. Na vida real, a diferença de idade entre os dois é de um ano. Mas estes parecem ser elementos insuficientes para explicar o fracasso.

Mais provável é que o elemento mais forte na aparente rejeição popular do filme seja mesmo a bissexualidade de Alexandre, apresentada de forma clara.

“Não havia o conceito de gay nos tempos antigos”
O diretor deu uma entrevista à revista Época (Edição 342 – 12/2004). O filme ainda não se mostrara o desastre financeiro que viria a ser. Perguntado se se tratava de “Alexandre, o gay”, respondeu corretamente: “Há fortes evidências (…) que apontam para o comportamento libertino dos monarcas antigos. Nesse sentido, Alexandre poderia ser chamado de Alexandre, o Gay. É preciso, no entanto, relativizar essa afirmação, porque não havia o conceito de gay nos tempos antigos. Os reis viam como privilégio comportar-se com total liberdade sexual. Eram, na verdade, pansexuais. Alexandre fazia sexo com homens, mulheres e eunucos, não raro com muitas pessoas ao mesmo tempo em grandes orgias – como o filme mostra. Procurei ser fiel à História”. E o diretor é coerente com essa visão, ao mostrar um Alexandre atraído sexualmente pela princesa Roxana, com quem se casa e tem um filho.

Em entrevistas posteriores, Oliver Stone andou dizendo que se arrependeu de dar tanta ênfase à sexualidade de Alexandre. Um recuo compreensível. Dos US$ 200 milhões de dólares investidos, as bilheterias americanas pagaram pouco mais de US$ 50 milhões. Compreensível, mas lamentável.

Não há nada de especialmente errado na abordagem de “Alexandre, o grande” sobre a bissexualidade. O problema é fazer isso em um filme feito para render muita bilheteria e com o tema escolhido. Filmes épicos são o terreno da cultura machista, não de ambigüidades sexuais. O tamanho do dinheiro empregado não combina com a pequenez com que as orientações sexuais alternativas são tratadas no mercado de entretenimento.

Tabus sexuais têm que ficar isolados. Nos guetos
Lembremos a carreira do próprio Stone. Um de seus primeiros filmes foi “El Salvador, o martírio de um povo” (1986). Uma forte denúncia da ditadura de El Salvador, apoiada pelo governo estadunidense nos anos 1980. Ele fez “Platoon” (1986), outra denúncia. Desta vez, da guerra do Vietnã, na qual lutou. Assunto que retomaria com “Nascido em 4 de julho” (1989). São produções com temas polêmicos e aos quais o grande público e a indústria cinematográfica poderiam reagir negativamente. Mas, isso não aconteceu. Um dos motivos é que os temas eram políticos e não comportamentais. Envolviam injustiças sociais, condenação da guerra, denúncia da política do governo americano etc. Não envolviam tabus sexuais. Estes têm que ficar em seus nichos. Seu público tem que ser pequeno, de gueto, isolado. Como bizarrices do mundo moderno. Como as orgias dos antigos poderosos. É o caso de outro filme de orçamento menos modesto e pretensões de público mais amplo: o caricatural “Gaiola das loucas” (1996), feito sob encomenda para o público liberal. Mesmo assim, trata-se de uma refilmagem de uma produção italiana dos anos 1960, de sucesso já comprovado.

Em grandes filmes épicos norte-americanos, a questão da sexualidade homoerótica sempre entrou de contrabando. É o caso, por exemplo, de “Ben Hur” (1959), em que o fascista Charlton Heston interpretava o personagem-título. Mal sabia o ultraconservador Heston que o roteiro original previa um relacionamento amoroso entre seu personagem e seu amigo de juventude, Messala (Stephen Boyd). Dizem que apenas Boyd ficou sabendo e acabou dando um tom diferente ao personagem, sem que seu colega de tela notasse.

Por outro lado, e voltando aos filmes de Stone, ele mesmo admite na entrevista para a revista Época, que “Platoon” dificilmente seria realizado por Hollywood hoje em dia. Ainda mais depois de que o diretor realizou dois documentários simpáticos a Fidel Castro, nos anos 1990. Mas, voltamos ao mesmo ponto. Ao conservadorismo cada vez maior a que o público em geral tem sido conduzido.Algo que tem muitas formas. Sociais, econômicas, políticas, ideológicas e culturais. Mas, que talvez tenha muito a ver com o padrão de sociedade que estamos vivendo desde a implantação das políticas neoliberais por todo

o mundo.

De qualquer maneira, o filme de Oliver Stone vai entrar para a história. Não como sucesso de bilheterias, ou como o melhor dos filmes épicos. Sim, pela coragem de levar aos cinemas um herói histórico bissexual. Sem querer, Stone continua perturbando. Felizmente.

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Sério Domingues integra a equipe do NPC e escreve para as páginas Mídia Vigiada e Revolutas