“Senhora do Destino” atrai 45 milhões de telespectadores diariamente. Reportagem da revista Veja explica bem o fenômeno. Mas não tira a conclusão necessária. A de que a estratégia das novelas globais é totalitária. Algo que vem sendo construído há 40 anos. Por Sérgio Domingues, fevereiro de 2005

A novela “Senhora do Destino” da TV Globo foi para a capa da Veja de 09/02/2005. O motivo disso não é apenas a boa relação entre as duas maiores porta-vozes dos interesses conservadores. Segundo o Ibope a novela de Aguinaldo Silva tem uma audiência de cerca de 45 milhões de pessoas diariamente. Em 2 de fevereiro, ela teria sido assistida em 80 de cada 100 lares do País.

Por incrível que pareça a matéria de Veja é até bem feita. Claro que não tem uma vírgula de críticas. Mas, aplica um raio-x no esquema global de novelas que pode nos ajudar a entender as razões para tanta audiência. Pra começar destaca o uso da velha e atraente oposição entre o Bem e o Mal. No caso, as personagens Maria do Carmo (Suzana Vieira) e Nazaré (Renata Sorrah). Ricardo Valladares, autor da reportagem, explica que “na literatura e na dramaturgia sérias as fronteiras entre bem e mal tendem a ser borradas”. É verdade. O jornalista também diz que “uma das principais marcas da ficção popular tem sido a falta de pudor em dividir o mundo de maneira muito definida entre luz e trevas. Isso vale para o folhetim escrito, tanto quanto para o eletrônico”. Um raciocínio correto, sem dúvida. Mas, para sermos coerentes com ele, teríamos que colocar a revista para a qual Valladares trabalha na categoria de folhetim, dada a facilidade com que trata os movimentos sociais como demônios.

A reportagem destaca que mesmo essa surrada fórmula que opõe bonzinhos e vilões apela para truques novos. Um deles é fazer de Nazaré uma espécie de “vilã de desenho animado”, segundo as palavras de Aguinaldo Silva. A reportagem explica que a maldosa mulher “já apanhou e viu sua máscara cair em diversas situações. Sempre se reergue, ainda que estropiada”. Renata Sorrah confirma essa idéia. Diz que é comum crianças lhe pedirem autógrafo mais do que seria normal para alguém que interpreta uma verdadeira bruxa má. Sinal de que a máquina de fazer novelas da Globo está sintonizada com a crescente adaptação infantil ao mal inevitável. Algo que vem sendo gradualmente trabalhado por desenhos animados, vídeo-games, filmes e programas de tevê. Não sem a enorme ajuda de uma realidade extremamente violenta.

Definindo o que as famílias devem conversar
Mas “Senhora do Destino” vai muito além da conhecida exploração da rivalidade entre mal e bem. A reportagem fala da já conhecida capacidade das novelas globais em introduzir temas polêmicos em suas tramas. E “Senhora do Destino” parece ter chegado ao máximo nesta fórmula. Há um casal feminino de homossexuais vivido por Eleonora (Mylla Christie) e Jenifer (Bárbara Borges). Glória Menezes faz o papel da baronesa de Bonsucesso, que sofre da doença de Alzheimer, comum entre idosos. Reginaldo (Eduardo Moscovis) é prefeito da fictícia Vila São Miguel. É o próprio modelo de político corrupto e conta com o apoio da mulher, Viviane (Leticia Spiller) para suas bandalheiras. Outro tema presente é a gravidez na adolescência, através da personagem Lady Daiane (Jéssica Sodré). E ainda há a violência doméstica, de que é vítima Rita (Adriana Lessa). Pobre e a negra, a personagem era uma esposa submissa que levava surras do marido, do qual felizmente se livrou. Cada um desses temas são abordados do modo mais didático e avançado possível. Os diálogos viram aulas sobre tolerância, prevenção, ética na política, condenação ao machismo, etc.

Qual é o problema nisso tudo? Em primeiro lugar, alguns temas são tratados de forma meio enfeitada. Por exemplo, o casal lésbico é vivido por duas atrizes consideradas bonitas. Um primeiro passo para amenizar a rejeição preconceituosa do público. Além disso, segundo a reportagem de Veja, o casal também conta com a simpatia da audiência “graças à forma como se construiu a relação de ambas. Elas tiveram a aprovação dos pais, vão morar juntas e pretendem adotar um filho”. Sem dúvida, um caso raro.

No entanto, muitos diriam, com razão, que se trata de uma obra de ficção, não de um documentário. Está bem. Daremos o devido desconto. O problema é outro. É a tentativa sempre renovada pela Globo para preencher todos os espaços de pensamento e reflexão. A matéria de Valladares fala das novelas. Identifica corretamente a estratégia da emissora. Vejam o que ele diz: “Ao longo dos anos, os autores da Rede Globo refinaram uma série de técnicas para conquistar a atenção do público. São referências críticas na trama ao cenário político nacional, a abordagem de assuntos polêmicos como a homossexualidade ou a violência doméstica (que assim entram na pauta de conversa das famílias) e a prestação de informações sobre doenças e outras aflições do brasileiro – o chamado merchandising do bem “. É isso mesmo. Com a desculpa de que faz propaganda do bem, a Globo define o que deve ou não deve entrar na “conversa das famílias”.

Separação entre realidade e aparência acomoda preconceitos
Ao mesmo tempo, há uma ilusão aí. Exatamente por ser algo de cima pra baixo, imposto pelo monopólio dos meios de comunicação, é que os efeitos desse “merchandising do bem” tendem a ser superficiais. Não mudam necessariamente comportamentos violentos, preconceituosos, desonestos etc. Ao contrário, estimulam os comportamentos de fachada. Que não vão às raízes dos problemas. É só observar o resultado de pesquisas sobre racismo. Por exemplo, em 2003 o Núcleo de Opinião Pública (NOP) da Fundação Perseu Abramo fez uma pesquisa nacional sobre a questão. O resultado surpreende: 90% da população diz existir racismo e, no entanto, só 19% manifestam preconceito.

Há uma grande separação entre realidade e aparência, que acomoda a sociedade a seus conflitos de classe, cor, orientação sexual, etc. O problema é que a tal “propaganda do bem” não tem qualquer correspondente na realidade. Os preconceitos não nascem apenas da pouca informação, da falta de diálogo etc. Medidas como mais escolas, emprego, mais informação e melhor qualidade de vida não diminuem automaticamente o preconceito. No entanto, criam condições para que isso aconteça.

Enquanto essas medidas não são colocadas em prática, as classes dominantes vão reinando tranqüilas. Fazendo uso não só da exploração, mas da divisão que os preconceitos e a violência causam entre os de baixo. E as novelas da Globo são parte importante dessa acomodação. São 45 milhões de pessoas vendo diariamente a imagem de uma vida mais justa e esquecendo de suas próprias desgraças.

Basta ver como as novelas impregnam toda a programação da poderosa emissora. Logo após o meio-dia, o “Vídeo-Show” mostra trechos de novelas, entrevista seus atores e diretores, faz jogos para ver quem acerta mais questões sobre novelas novas e antigas. Durante a tarde, novelas antigas são repetidas em “Vale a pena ver de novo”. A partir das 17:30h, “Malhação” inaugura a maratona de folhetins, interrompida apenas pelo Jornal Nacional. E este último, sempre teve mais atores d

o que jornalistas na apresentação do que parecem ser mais imagens bem feitas do que notícias. O “Casseta e Planeta” avacalha as novelas, o “Faustão” só elogia. O fato é que todos colaboram para fazer “as famílias conversarem” sobre as produções globais.

Enfim, a reportagem de Valladares é bem feita, apesar de ter sido publicada na mais conservadora e pior revista do País. Deve ser por isso mesmo que a matéria não mostra que toda essa capacidade dramatúrgica da Rede Globo está a serviço de uma estratégia totalitária. Que quer impor tudo o que ela pensa a todos. Sem deixar espaço para ninguém mais, a não ser para seus amigos poderosos. Uma estratégia de quem vem há 40 anos fazendo o jogo do poder participando dele, combatendo os movimentos sociais da forma mais inteligente e destrutiva. Pela guerra das idéias, pela omissão e distorção. Exibindo somente os pedaços da realidade que interessam aos poderosos. Falando de preconceitos, apenas para que circulem e se multipliquem de maneira mais comportada.

Aos 40 anos, a Globo continua pretendendo ser senhora de nosso destino. Continua se achando acima do bem e do mal. Cabe a nós dar fim a essa grande e poderosa fábrica de preconceitos.

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Sério Domingues integra a equipe do NPC e escreve para as páginas Mídia Vigiada e Revolutas