É lamentável que a narração jornalística se tenha desumanizado, a ponto de nela se valorizarem coisas como índices e percentagens, mais do que falas, emoções e identidades humanas. Entretanto, continua a haver espaço para rebeldias criativas nas redações. Até porque é sempre possível dar trato de arte ao texto jornalístico – qualquer que seja a forma. Por Carlos Chaparro, maio de 2005, no Comunique-se (www.comunique-se.com.br)
 

1. Argumentos da saudade
Vamos lá então conversar sobre a preponderância das formas no atual jornalismo impresso (e não só) brasileiro. Trata-se de um tema e de um cenário que angustiam pessoas como eu e quase todos os que, com alguma regularidade, comparecem aos debates que tanto enriquecem esta coluna. Iracema Torquato, por exemplo, lamentou aqui que o jornalista tenha deixado de ser “um bom contador de histórias”, reconhecendo, embora, que o cenário mudou, o público é outro e que temos nosso modo de falar que não corresponde ao lidão”. 

Os jornalistas da velha guarda, em especial, lamentam o desaparecimento da gloriosa reportagem literária, na qual brilhavam os jornalistas escritores. Eu mesmo já me insurgi, aqui, várias vezes, contra a adesão preguiçosa ao texto meramente técnico, que contamina redações da informação diária. Lembro que, em agosto do ano passado, ao comentar o livro Por um Fio, do dr. Drauzio Varela, escrevi o seguinte:

“(…) Falta ao jornalismo de hoje algo que dá tom e conteúdo ao livro de Drauzio Varella: a narrativa humanizada. O livro está recheado de protagonistas valorizados pelos discursos direto e indireto, habilmente dosados. São páginas repletas de gente que tem nome e história, que pensa, fala, se emociona. Mas protagonistas, falas e emoções que a ação narrativa submete a pontos de vista do autor, no desvendamento do que existe antes e para além dos fatos. Com um detalhe, fundamental: em todos os momentos do livro, o escritor interage apenas com um interlocutor – o leitor para quem escreve. E o transporta para as interações da interpretação, no amplo espaço das entrelinhas.”

2. Índices, em vez de gente
Faço a transcrição por acreditar que nela está contida uma síntese das amarguras de todos nós, que tanto gostávamos e gostamos do sabor literário do jornalismo de antigamente.

Apesar disso, repito mais uma vez que considero o jornalismo de hoje melhor que o de épocas anteriores. Os vários estudos comparativos que já fiz me mostram que o jornalismo aperfeiçoou a sua capacidade de informar e analisar – em boa parte, porque melhoraram os níveis de independência em relação ao poder político. E porque se tornou mais rigorosa a vigilância ética sobre a atividade jornalística, por parte da sociedade. 

Na época em que havia espaço e circunstâncias para o brilho das reportagens literárias, e sem que isso fosse considerado escandaloso, era comum o disfarce jornalístico em matérias pagas, sem qualquer indicação de que se tratava de publicidade. As empresas mamavam nas tetas e nos cofres dos governos, por meio de incentivos e de várias outras formas de acesso fácil ao dinheiro público. Os jornalistas, inclusive os de talento literário, não pagavam imposto de renda, e achava isso bom. E não eram poucos os que colecionavam empregos públicos e outras benesses, como a de viajar de graça. 

Ainda assim, é lamentável que a narração jornalística se tenha submetido, sem inquietações, à força discursiva dos sujeitos institucionais. E que por isso o texto jornalístico se tenha desumanizado a ponto de nele se valorizarem coisas como índices e percentagens, mais do que falas, emoções e identidades humanas. 

Entretanto, como também já escrevi em outras ocasiões, acredito que continua a haver espaço para rebeldias criativas nas redações. Qualquer que seja a empresa, o patrão ou o diretor de redação, e qualquer que seja o tamanho da reportagem, é possível dar trato de arte ao texto jornalístico e enxertar nele narrativas humanizadas e intervenções de autor – contra os excessos normativos dos manuais!

3. Texto e arte
Quanto à preponderância das formas, diria que essa é uma das grandes seduções do jornalismo. E não vislumbro, na força das formas, qualquer razão de antagonismo com a qualidade literária dos conteúdos.

As formas são recursos de linguagem que ajudam à eficácia do jornalismo, em sua natureza de discurso de relato e comentário dos fatos da atualidade e das ações e falas humanas que interferem ou podem interferir na vida das pessoas. Além do mais, ao longo do tempo, em especial nos últimos 100 anos, as formas do discurso jornalístico  incorporaram e aperfeiçoaram aptidões particulares para alcançar o sucesso imediato.

Tentarei sintetizar em três itens, complementares e interativos, o muito que poderia ser escrito sobre o assunto:

1) O jornalismo é uma linguagem de resumos, ou seja, uma linguagem que permanentemente aceita o desafio de capacitar o leitor para a decisão imediata de ler ou não ler, de assistir ou não assistir. Servem a essa interação coisas como o título, as várias espécies de subtítulos e “olhos”, os intertítulos, os resumos infográficos, as aberturas de matéria, as sínteses fotográficas e as soluções piramidais. Como linguagem de resumos, o jornalismo, mais do que qualquer outra forma de expressão não especializada, desenvolveu a aptidão de alcançar e revelar o âmago das coisas.

2) O jornalismo é uma linguagem preponderantemente influenciada pela necessidade de atender, de imediato, às expectativas do destinatário. Ao contrário da literatura, em cujas razões estilísticas prepondera a personalidade do autor, o jornalismo tem nas expectativas do destinatário o fator determinante das

escolhas estilísticas. E isso tem a ver com aquilo a que chamamos de gêneros jornalísticos, impostos pela tradição. 

Gêneros vêm a ser as formas de texto que dão eficácia às ações jornalísticos, cujo sucesso deve ser imediato. Não são apenas formas de escritura, mas, também, códigos que organizam as expectativas do leitor, para as interações com o texto. Por isso, a “forma” Entrevista é eficaz para relatar diálogos; a “forma” Reportagem é eficaz para relatar, valorar, contextualizar e tornar compreensíveis acontecimentos de certa complexidade; a “forma” Notícia é eficaz para relatar fatos para cuja compreensão bastam os saberes contidos no próprio fato; a “forma” Artigo” é eficaz para comentar, analisar e propor ajuizamentos sobre fatos e temas relevantes da atualidade. 

3) O jornalismo é uma linguagem essencialmente performativa, ou seja, é uma linguagem que, ao ser usada, e por ser usada, projeta ou realiza ações que interferem na realidade das pessoas e nos movimentos da sociedade. Dessa natureza de linguagem performativa resulta o desenvolvimento de um estilo em que prepondera a precisão, a concisão, a clareza e o vigor acional das orações, exuberante nos títulos. Nessa perspectiva, a notícia é sempre uma forma de ação, em que os fatos valem pelos efeitos imediatos ou potenciais que produzem. 

As formas, ou gêneros, servem, portanto, à lógica de eficácia que marca o estilo do jornalismo. Trata-se de uma limitação? Sem dúvida. Mas nessa limitação está, ou pode estar, o grande estímulo à criatividade, na escrita jornalística. Até porque forma e conteúdo jamais foram inimigos ou coisas excludentes.

Para concluir, e pedindo desculpas pelos excessos teóricos, permitam-me repetir que é sempre possível dar trato de arte ao texto jornalístico.
 

–x–

“Se não houver frutos
Valeu a beleza das flores 
Se não houver flores 
Valeu a sombra das folhas 
Se não houver folhas 
Valeu a intenção da semente” 

HENFIL