(Mário Maestri)

De volta ao presente

O espectro do romance histórico sobre a Guerra Farroupilha não cessa de assombrar a literatura sulina, pondo em geral a pique, com grande, algum ou nenhum sucesso de público, inúmeros escritores que se embarcaram na arriscada aventura, desde a publicação, em 1847, de A divina pastora, de Caldre e Fião, patriarca do romance rio-grandense.

O romance A casa das sete mulheres, de Letícia Wierzchowski [Rio de Janeiro: Rercord, 2003], consagrado por superprodução televisiva nacional, percorre os grandes e pequenos pecados cometidos por inúmeros protagonistas desse drama literário. O fato da autora possuir inegáveis dotes ficcionais facilita a discussão das raízes dessa maldição literária.

O projeto de Letícia é inteligente e ambicioso, já que se propõe contar o decênio heróico em romance de fôlego – mais de meio milhar de páginas – através dos olhos de mulheres que tiveram as vidas suspensas pela partida para a guerra dos pais, esposos, filhos e amantes.

Nesse sentido, Letícia retoma e homenageia as mais poderosas páginas da célebre trilogia de Érico Veríssimo – O tempo e o vento- iniciada em 1948, sobre o passado sulino. Também suas mulheres escutam o vento assobiar e o tempo passar, prisioneiras das paredes silenciosas de estâncias desertadas por homens entreverados nos combates seculares deste fim de Brasil.

Paixão excelente

Lemos no romance: “Sim, sempre os homens vão, para as suas guerras, para as suas lides, para conquistar novas terras, para abrir os túmulos e enterrar os mortos. As mulheres é que ficam, é que aguardam. Nove meses, uma vida inteira. Arrastando os dias feito móveis velhos, as mulheres aguardam … Como um muro, é assim que uma mulher do pampa espera pelo seu homem.”

Também o nó de amarração do romance é ambicioso. A narrativa tem com centro articulador história de amor excelente – a paixão entre Manuela, sobrinha de Bento Gonçalves, e o jovem Giuseppe Garibaldi, futuro Herói dos Dois Mundos. Letícia rememora igualmente a derradeira novela de Josué Guimarães -Garibaldi & Manoela: Amor de perdição [Porto Alegre: L&PM, 2002], de 1986-, reeditada com cortante apresentação de Tabajara Ruas.

Outra poderosa inspiração explicita de A casa das sete mulheres é precisamente Tabajara Ruas, autor da mais ambiciosa ficção épica da Guerra Farroupilha, de título camoniano -Os varões assinalados [Porto Alegre: Mercado Aberto, 1985]-. Portanto, o romance propõe igualmente qualificação ficcional heróica dos festejados sucessos históricos. Como veremos, os elogios àqueles acontecimentos e aos seus protagonistas são incontidos.

Mas, sobretudo, o romance é narrativa no feminino. São histórias para todos, escritas pelas mãos de Letícia e explicadas pelos olhos e sentimentos de mulheres: Ana Joaquina, Antônia, Caetana, Maria Manuela, Mariana, Manuela, Rosário, irmãs, esposa e sobrinhas de Bento Gonçalves da Silva, o líder máximo da república sulina.

Deusas pastoris

Mas quem são as sete protagonistas que habitam e animam essas fazendas das bordas da campanha rio-grandense, principal cenário da trama ficcional? Como são as mulheres que Letícia recupera do passado, materializando-as ficcionalmente nos seus atos e sentimentos paradigmáticos?

São mulheres lindas, deusas pastoris, belas na juventude e desejáveis na maturidade. “Caetana […] mirou-se no espelho de cristal. […] Tinha quarenta e dois anos e ainda era bonita.” “Bento Gonçalves […]. Depois das escapadelas com as criadas, ele voltava para o quarto e sabia ser ainda mais carinhoso; mostrar, enfim, o quanto a querida.”

São mulheres de olhos verdes como as matas e azuis como os céus, de cabelos negros como a noite e dourados como os trigais. Mulheres de pele alva cheirando a “rosas” que desejam e entregam-se sem pejo, em atos, sonhos e delírios, a másculos e belos guerreiros que abandonam os combates para mergulharem nos regaços amados.

O amor correspondido, realizado ou não, é o grande protagonista oculto da obra. “Vivi por Giuseppe Garibaldi como muito poucas mulheres viveram por um homem, um homem que nunca foi de todo meu, mas de quem pude compreender a essência -era um cometa, uma estrela cadente-, justo que restasse tão pouco ao meu lado.”

Penélopes pampianas

“D. Perpétua estivera feliz como em poucas vezes na vida, vendo a filha toda vestida de renda branca, de braço dado com o jovem fazendeiro. Depois tinham ido viver em Pelotas, tinham arrumado a casa da estância, tinham sido felizes e companheiros. José e Pedro nasceram, ambos parecidos com o pai, ambos corajosos, fortes, amantes dos cavalos e do campo …”

Confesso que durante a leitura de A casa das sete mulheres pensei sem cessar nas jovens senhoras, aos vinte anos gordotas e bigodudas, aos quarenta sisudas e volumosas patriarcas embutidas em vestidos negros, imortalizadas, em pudica distância de maridos e prometidos, nos retratos retocados de molduras ovais das paredes das moradias e nas páginas dos álbuns de capa de veludo e arabescos de ferro das famílias latifundiárias sulinas.

Em O gaúcho, que também tem como cenário a revolta farroupilha, de 1870, José de Alencar, em tudo mais inverossímil, descreve as senhoras sulinas mais próximas da realidade: “Estavam no alpendre da casa duas mulheres. A mais idosa, viúva de quarenta e cinco anos […] passaria por formosa se não fora a excessiva gordura.” Para o célebre romancista, a primeira maturidade feminina era quase sinônimo de obesidade!

Nos corpos, falas, gestos, sonhos e sobretudo desejos e expectativas, as protagonistas de Letícia constituem irretorquíveis reproduções estereotipadas da mulher-padrão sulina, branca e de classe média, desse início de milênio, e jamais figuração ficcional das sinhás e sinhazinhas que habitaram as fazendas pastoris do passado.

O casamento como desdobramento do amor romântico e objetivação da atração e do prazer físico. O desejo sexual entre esposos. Maridos que se lançam nos braços de atraentes sinhás de meia idade. Conquistas, programas e mitos do atual estágio do matrimônio burguês-ocidental materializam-se sem nuanças em ficção
ambientada no mundo pastoril oitocentista.

A conclusão impõe-se. Em vez de trazer o passado para o presente, o presente nos é apresentado como se passado fosse. Um pouco ao igual da cinematografia norte-americana, com heróis e heroínas da Antiguidade, vestidos mais ou menos segundo a época, falando, sentindo e amando como acreditam e desejam fazer os espectadores contemporâneos. II. Letícia no país das maravilhas

O principal palco narrativo de A casa das sete mulheres, de Letícia Wierzchowski [Rio de Janeiro: Record, 2003], é o mundo sentimental e afetivo feminino, embalado pelas esperas e perdas motivadas pela guerra separatista sul-rio-grandense de 1835-1845. Portanto, é nesse plano, escolhido pela autora, que deve emergir e materializar-se o universo histórico que embasa e determina a narrativa.

São desprezíveis tropeços menores do décor ficcional, como lareiras aquecendo as sedes das fazendas; campos precocemente cercados; facilidades e processos higiênicos modernos; cativos domésticos labutando na roça; telegramas e bombachas em 1835. O importante é que as emoções e as ações centrais da narrativa expressem, correspondam e materializem as formas de sentir e de viver de então.

A experiência e a existência humana não são combinações variadas de mesmos ingredientes. Através dos tempos, mulheres e homens falam, agem e sentem subjetivamente de formas diversas, porque vivem e relacionam-se objetivamente em forma diversa. É função da historiografia e do romance histórico desvelar essa realidade e evolução através de suas linguagens singulares.

A unidade e a diversidade das experiências históricas materializam-se em banais atos quotidianos. O modo como uma filha relaciona-se com a mãe e uma mulher com o esposo expressam nexos sociais profundos e necessários. O tratamento protocolar “- Senhora minha mãe; – Senhor meu esposo”, usado ainda em forma arcaica em regiões do Brasil, registrava, no interior da família senhorial, a rígida hierarquia escravista e patrimonial, que tinha no matrimônio instituição angular.

Casamento como negócio

Racionalizadas e idealizadas, as funções patrimoniais do matrimônio eram naturalmente aceitas por noivos que não incorporavam, entre as expectativas da união, o amor romântico e o prazer sexual. Este último, para as noivas, constituiria descoberta e acidente matrimoniais transitórios e, para os homens, conquista externa ao casamento, buscada nos prostíbulos e queridas de luxo.

Os namoros e noivados eram rigidamente controlados. Nos bailes do Brasil das últimas décadas do século 19, era visto como verdadeiro deboche noivo que dançasse mais do que algumas músicas com a prometida. Não raro, ao casarem, os esposos eram quase estranhos e comumente mantinham relacionamento contido por toda a vida.

Quando atração e prazer intrometiam-se inesperadamente em aliança nupcial, o fato inesperado era mantido encerrado a sete chaves entre as paredes da alcova e sob os lençóis do leito matrimonial para que não comprometesse a boa reputação do casal atingido pelo estranho desvio comportamental.

O universo senhorial determinava os contratos nupciais, via de circulação patrimonial. O controle das herdeiras era necessário para que a transferência de bens não se desse fora dos objetivos de classes. Até a poucas décadas atrás, as filhas do latifúndio sequer pensavam em passear sozinhas nos arvoredos próximos, quanto mais vagabundear pelas margens de arroios, como as heroínas de A casa das sete mulheres. “Mariana ficou desolada, fugiu para a sanga, restou lá uma tarde inteira a chorar.”

Casos extraordinários

A vigilância era rígida devido a transgressões e ameaças reais e imaginárias. A ascensão social através do casamento com latifundiária – o tradicional braguetaço da fronteira – segue constituindo objetivo sobretudo mítico de jovens das classes médias pobres do mundo pastoril.

A tradição lembra casos extraordinários de peões que se tornaram proprietários por abiscoitarem rica herdeira. A documentação registra transgressões singulares como sinhá que se entregou às delícias do sexo com seus cativos, pagando-os a seguir para eliminar o consorte condescendente mas incômodo.

Comumente, castrava-se e degolava-se o raro cativo ou homem livre e pobre que seduzia uma herdeira, nos fatos ou na imaginação senhorial. Cobria-se a gravidez indesejada com aborto ou casamento com noivo condescendente, de origem social inferior mas não infamante. Tema habitual do romance de inícios do Segundo Reinado [1840-1889], a ameaça de sedução da heroína materializa o medo de matrimônio aviltante e reforçava os padrões matrimoniais de classe.

O amor de Mariana, sobrinha de Bento Gonçalves, com o peão João Gutierrez, peca por fantasia e artificialidade. Trata-se de um outro dos domínios essenciais em que a narrativa de Letícia Wierzchowski afasta-se do verossímil para construir relato romântico e modernizado, de solução feliz e tranqüilizadora.

Jovem livre e moderna

A jovem Mariana desloca-se pela fazenda ao bel prazer, abandonando à noite a vigiada alcova de donzela com estonteante facilidade, considerando-se a topografia e hábitos das sedes pastoris, trancadas ao escurecer, pelo interior, e vigiadas por cuscos e capatazes, do exterior.

Ao modo dos romances românticos oitocentistas de capa-e-espada, as personagens de A casa das sete mulheres adaptam-se em forma forçada ao enredo em vez dele construir-se harmonicamente a partir das determinações essenciais de personagens que singularizem categorias e relações sociais do passado. Para que os amantes comuniquem-se, o peão João Gutierrez surge na trama lendo e escrevendo, artes desconhecidas por boa parte dos senhores. Nesse então, o peão letrado era elevado à função de capataz, na fazenda, e de sub-oficial, nos exércitos, devido à inusitada habilidade.

É também esdrúxula a modernização do sentimento paterno de João Gutierrez, ao conhecer seu bastardo. “[…] João Gutierrez percebeu que o mundo se resumia naquele serzinho delicado e morno, envolto em panos bordados, cujos sonhos por vezes provocavam sorrisos no rostinho angelical. – Ele é tão lindo, Mariana. – Parecido com vosmecê. Tem os seus olhos, João.”

O amor tudo vence

No mundo rural, beleza e transbordamento de sentimentos eram tidos e vividos como qualidades e reações feminis, inaceitáveis em homem,
quanto mais em peão! A determinação dos sentimentos pelo rústico mundo social engessava igualmente o modo de ser pai.

A solução da contradição nascida da relação socialmente inaceitável constitui happy end ficcional. O belo e destemido peão volta da guerra para viver feliz, como administrador de latifúndio, ao lado da igualmente bela esposa e do filho amado, não menos belo.

“Mariana, João Gutierrez e o menino foram viver na Estância do Brejo e lá tiveram existência calma e feliz.” E isso devido ao fato do peão ter desvirginado e embarrigado, sobre um pelego sujo, na beira da sanga, a sobrinha de Bento Gonçalves que, por coisas de honra, fulminou o próprio primo, sangue de seu sangue!

A solução ficcional socialmente integradora do caso do gaúcho safado agrava-se devido ao fato de que o empreendedor João Gutierrez constitui o único protagonista da narrativa que não pertence às classes senhoriais! Sua meteórica ascensão social sugere democratismo desconhecido pelo mundo escravista.

Folga dizer que a superação social é apresentada como devida à capacidade do amor de vencer qualquer barreira! A mãe de Mariana, que rejeitara a origem espúria do neto, ao ver o menino, funde-se sob a força do amor: “João Gutierrez derrama-se do rosto do menino, e ela sente um princípio de raiva ao ver sua família misturada com o vaqueano; porém, a raiva logo se desfaz. É amor essa coisa boa latejando em seu peito.”