[Por Sheila Jacob]

“A Justiça que Nós Queremos” foi o tema do seminário realizado no dia 15 de agosto, promovido pela Associação dos Juízes para a Democracia com o apoio da Escola de Magistratura do Estado do Rio (Emerj). Foram discutidos os temas “Favela e Cidadania”, “Nossa Casa, Nossa Terra”, “Direito à Diferença”, e “Fora da Lei, Abaixo a Vida”.

Na primeira mesa, chamada “Favela e Cidadania”, todos os participantes falaram sobre o atual processo de criminalização do espaço da favela e, conseqüentemente, de todos os seus habitantes. E lembraram ainda a responsabilidade do sistema penal e da mídia na fabricação de preconceitos e na banalização das mortes de negros e pobres, normalmente identificados como pertencentes ao tráfico.

Participaram deste primeiro momento o cantor MV Bill, da CUFA e Márcia Jacintho, mãe de Hanry, menino de 16 anos que foi assassinado por policiais militares em 2002 no Morro do Gambá, Zona Norte do Rio de Janeiro. Também o delegado Orlando Zaccone; e o sociólogo Marcelo Burgos, do Departamento de Sociologia e Política da PUC-RJ.

Todos falaram sobre o atual processo de criminalização do espaço da favela e, conseqüentemente, de todos os seus habitantes. E lembraram ainda a responsabilidade do sistema penal e da mídia na fabricação de preconceitos e na banalização das mortes dos que se encaixam no grupo dos “delinqüentes”: negros e pobres, normalmente identificados como pertencentes ao tráfico.

MV Bill, nascido e criado na Cidade de Deus, mantém o vínculo com sua comunidade devido aos trabalhos sociais que lá desenvolve. Ele disse que a sua maior preocupação é valorizar o morador da favela, normalmente vítima de preconceito. Isso “mesmo já tendo sido constatado que menos de 1% dos moradores do morro são envolvidos com o crime”. Ele lembra que sempre se procura identificar alguma passagem pela polícia, “como se fosse uma justificativa para terem perdido a vida”. Para MV Bill, a organização e a atuação dos movimentos sociais são essenciais para que outras vozes sejam ouvidas. Afirmou que é um grande erro a promoção de políticas públicas no morro. “Quando são desenvolvidas, são feitas para a juventude, e não com a juventude”. No final, pediu uma ação mais severa quanto aos muitos crimes de pedofilia que tem visto nesses locais.

O depoimento emocionado de Márcia Jacintho comoveu a platéia e os próprios participantes da mesa. Com a fala engasgada, ela falou sobre a sua indignação pelo adiamento do julgamento dos policiais acusados de terem matado seu filho. Havia sido marcado para o dia 12 de agosto, mas foi passado para 2 de setembro “por manobra de um advogado junto a um dos réus”. Ela disse ainda que um dos policiais, Marcos Alves da Silva, saiu do Fórum preso. Seu apelo à justiça é olhar pelos direitos dos moradores das favelas. “Além de terem ficado livres após terem covardemente assassinado meu filho, aqueles policiais militares ainda foram promovidos. Porque até que se prove o contrário, eles são inocentes. Ao contrário do morro que, além que se prove o contrário, somos todos culpados”.

O delegado de polícia Orlando Zacone reconheceu a responsabilidade de levar para dentro da instituição os anseios de uma polícia voltada para o povo. Citando o verso “Priorize as prioridades”, do rapper B Negão, ele definiu como um primeiro passo necessário a atuação contra a lentalidade do sistema e a desvalorização da vida. “Vou fazer uma proposta ousada: brigar pela vida dos marginalizados, dos traficantes. Assim não se corre o risco de haver confusão”. Ele lembrou a fala do pai de João Roberto Amorim Soares, de três anos, vítima de violência policial. “Que polícia é essa? Não existe pena de morte no Brasil. Se fosse realmente um assaltante, teria que ser preso, e não assassinado”. O menino foi morto por disparos feitos por policiais militares, no início de julho, na Tijuca, Zona Norte do Rio. O carro da mãe foi confundido com o de “suspeitos assaltantes”.

O delegado citou ainda Darcy Ribeiro: “existe um sistema por trás dessa máquina de moer pessoas”. Ele lembra que termina no poder judiciário o chamado “auto de resistência”, justificativa usada pela maioria dos policiais quando cometem assassinatos. “Por isso eu costumo dizer que a polícia mata e o jurídico enterra”. Para ele todo o sistema penal está envolvido e precisa ser revisto. E sua agência executiva seria a grande mídia, que criminaliza o morro e seus habitantes, atribuindo valores diferenciados à vida humana, de acordo com a classe social a que pertence. “Nos jornais, a favela sempre é colocada como um lugar de perigo, do mal, o que legitima a execução dessas pessoas. O que proponho aqui é que sejamos policiais a defender os direitos dos criminosos. Para além da indignação, deve haver uma ação política nesse sentido”.

Por último, o professor Marcelo Burgos falou sobre uma pesquisa empírica realizada com professores de escolas públicas que atendem crianças da favela. “Percebemos que, apesar do empenho de se fazer o melhor, a própria relação com os alunos está impregnada pelo estereótipo de morador da favela. Ou seja: a segregação urbana produz a segregação institucional”. Ele disse que esse mito da marginalidade deu lugar à cultura da violência. “É essa cultura que autoriza uma ação policial no Morro do Alemão, com 17 mortes e 7 armas apreendidas, por exemplo. Uma ação que tortura uma população com quase cem mil habitantes, causando danos morais e psicológicos”.

Ele disse que essa ação, quando autorizada pela mídia, reflete e ajuda a manter a opinião pública predominante, que banaliza a morte. “É preciso desconstruir, pela política, esse mito”. Para o professor, a Prefeitura tem o papel fundamental de criar canais de conversa com essas outras pessoas, e ouvir novas vozes. “Há uma grande diferença quando o policial sobe o morro. Para quem está no asfalto, é sinônimo de segurança. Mas para quem está na favela, muito pelo contrário”. Ele atentou para a necessidade de criação de canais de comunicação nas universidades e no judiciário, para se tentar construir uma outra concepção sobre o morro.