Por Sérgio Domingues, fevereiro de 2004

O Big Brother Brasil da Globo acumula o que há de pior em termos de preconceito, intriga, ambição cega. É a janela que mostra como a dominação burguesa esvaziou nossa vida privada de sentido. Um ralo por onde passa o vencedor. O campeão do esgoto.

Circula uma mensagem pela Internet que denuncia as ligações entre os participantes do BBB4 e figurões da Globo. Antonela teria tido um caso com Boninho, diretor do programa. Eduardo seria sobrinho de um dos diretores da Globo Minas. Marcela seria madrinha do filho de Galvão Bueno. E assim por diante. Não sei se essas informações são verdadeiras. Se forem, deve haver alguns artigos em códigos jurídicos brasileiros nos quais os responsáveis pelo programa deveriam ser enquadrados. 

Mas o que importa aqui é ressaltar que se isso for verdade, só confirma a idéia de que o BB não passa de outra obra de ficção. A diferença é que o enredo quer parecer o máximo possível com a vida cotidiana. Com uma diferença. Tenta se aproximar do que ela tem de pior. Intrigas, mesquinharias, mentiras, chantagens etc. É a filmagem de um grupo se autodestruindo até que deles, reste um só. Vitorioso e absoluto no final. Estampando a solidão da estupidez. E da cobiça, claro. Tem um belo prêmio a sua espera.

O problema é entender como é que um programa com essas características conquista boa audiência e dá o que falar nos locais de trabalho, cabeleireiras, botecos, almoços em família etc?

Minha teoria é a de que BB é uma tentativa de retornar à experiência de vida cotidiana de épocas antigas. Anteriores à existência da imprensa, da fotografia, do cinema e da própria tevê. Não simplesmente um retorno. Mas uma descida em espiral para os andares em que se situam os esgotos.

Vejamos. A escrita foi criada há uns 3 mil anos. A imprensa, há uns 550 anos. Mas a escrita só foi popularizada muito tempo depois de sua invenção e do surgimento da imprensa. Antes disso, era monopólio de poucos sábios e sacerdotes. Então, as experiências que uma aldeia, uma cidadezinha, um lugarejo, tinham fora de sua vida rotineira, eram as histórias contadas por forasteiros. Viajantes ou mercadores que vinham de quando em quando. Traziam novidades dos lugares por onde passaram ou de pessoas com quem encontraram.

Hoje, as pessoas falam “é verdade. Eu vi na tevê”. Antes, diziam “estava escrito no jornal”
Com o desenvolvimento do capitalismo, a popularização da palavra escrita virou necessidade. Seja, para qualificar força de trabalho, seja para transmitir os novos valores mais rapidamente ou até como necessidade de desenvolver a ciência para fazer avançar os meios de exploração da natureza, incluindo aí as pessoas. Muitos já podiam ler. A imprensa transformou-se no agente novidadeiro nas comunidades. Hoje, as pessoas falam “é verdade. Eu vi na televisão”. Antes da tevê, elas diziam “estava escrito no jornal”. 

A palavra escrita juntou-se à imagem. A fotografia deixava ainda mais confiável a notícia escrita. “Eu li e vi” é mais forte. Quando a imagem ganhou movimento e som, aí sim, a verdade do veículo comunicador ficou inegável. Cinema e tevê, principalmente, são poderosos meios de dizer que alguma coisa é verdade.

O problema é que o viajante que passava por uma aldeia, contava sua história segundo sua visão. Exagerava ou não. Mentia ou omitia. Mas, ia-se embora. Se o caso fosse bom, a aldeia ficava com ele em seu patrimônio de relatos. As gerações iam mudando o caso aqui e ali. Se o mesmo viajante voltasse um dia muito mais tarde, seria capaz de encontrar um relato completamente diferente.

Com a escrita, já não era assim. O papel impresso passava de mão em mão. A novidade podia ganhar versões diferentes. Mas sempre era possível recorrer ao pedaço de papel para recuperar a história original. 

Antes, o trem ou o carro dos correios passavam deixando em cada lugar as cartas e publicações que diziam o que ia pelo mundo. Mas, quando a imagem em movimento e sonora passou a chegar diretamente à casa das pessoas, ela passou a ser uma janela para o mundo.

A tevê é a janela. A paisagem é a programação

Agora, é a vida rotineira das pessoas em suas casas, mansões e barracos que parece um veículo em movimento. Seu morador é um viajante olhando a tevê como se ela fosse a janela. A paisagem é a programação. Antes, uma novidade podia ser distorcida, recontada, exagerada. Hoje, ninguém duvida do que vê. O máximo que a maioria faz é dar interpretações para o fato. Mas o modo como o fato foi mostrado jamais é questionado.

Antes, a vida dos lugarejos e aldeias era pacata e rotineira. Mas, era feita por seus moradores. Estava cheia de sentido para quem morava ali. Se havia o proprietário da terra que vinha regularmente levar uma parte do que fora produzido pela comunidade, isso era feito à luz do dia. Todo mundo sabia que ali estava um homem poderoso, que tinha o direito de fazer aquilo. O direito dado por Deus, pela natureza, por seu sangue nobre ou porque tinha um exército ao seu lado. O que importa é que a dominação era escancarada.

No capitalismo, não. Ninguém obriga um trabalhador a vender sua força de trabalho. Não há lei para isso. Quem quiser, que trabalhe. Claro que há uma lei. Mas não é a
lei escrita. É a lei da sobrevivência. Então, a maioria das pessoas não entende porque continua na pobreza. Continua privada das coisas mais elementares, como se vestir, comer, estudar, se divertir. Só pode ser culpa delas. Afinal, quem tem dinheiro, fez por merecer. Trabalhou, perseverou, é inteligente, esperto etc. Pelo menos é assim que a maioria entende a organização de sociedade atual (1).

Nesse mundo frustrante, a maioria encontra na paisagem da tevê as emoções agradáveis que lhe faltam na vida chata do dia-a-dia. Ou explicações simplistas para suas tristezas.

É por isso que a indústria dos filmes, das novelas, dos desenhos animados, entope os televisores com coisas fantásticas e emoções acumuladas. Assista a algumas horas de tevê e você verá várias experiências condensadas e distribuídas em pacotes. Nas novelas, programas humorísticos e filmes, em questão de minutos somos levados do amor ao ódio, da calma à fúria, da tristeza ao riso. Nos programas jornalísticos, encontramos uma seqüência em alta velocidade de pedaços do real que no conjunto levam à apatia. Diante de tudo o que acontece em todos lugares, das mais variadas maneiras, com as mais diferentes pessoas e situações. Diante de tudo isso, não há como não pensar que você não passa de um piloto de controle remoto. Não há como não pensar que o mundo é assim mesmo. É essa loucura. Sempre foi assim e sempre será.

Felizmente para nós, a vida social não se desenvolve sem contradições. A dificuldade que a maioria tem de enxergar que sua pobreza não é resultado de falta de talento, de sorte, inteligência, de vez em quando é superada. São brechas por onde o povo ergue a cabeça e enxerga a “vida de gado” que vem levando. Aí, podem acontecer revoluções, rebeliões, ou apenas greves e grandes manifestações.

O feitiço contra o feiticeiro: a apatia atinge os índices de audiência

Mas isso não se manifesta apenas de modo espalhafatoso. O insistente desfilar de maravilhas como as da novela da Globo, em que o centro das tramas é a vida dos ricos. A seqüência de proezas de heróis, super-heróis, garotões e mulherões. Tudo isso, começa a soar falso. Principalmente, em situações de crise econômica. Aí, fica claro que a vida comum não é assim. As pessoas não são assim. Nada é assim. A janela cansa. Volta ser apenas um aparelho transmitindo ilusões. O feitiço volta-se contra o feiticeiro e a apatia atinge os índices de audiência.

Mas, desligada a televisão, o individuo já não tem mais uma vida comunitária para onde voltar. A vida pública já era faz tempo. Cada um está trancado em sua casa com medo de assaltos. Quase não tem tempo. Mal chega em casa, e já é hora de ir dormir. Tem que acordar de madrugada e partir novamente para fazer trabalhos cada vez mais precários. Ou, simplesmente, já não tem o hábito da conversa. Nem mesmo da antiga e corriqueira fofoca.

Aí, surgem os programas como os do Ratinho. Os programas que dizem que mostram a vida como ela é. Claro que a vida também não é o que esses programas mostram. Se fosse, a vida social já teria desaparecido. Pelo menos, abaixo da linha do Equador. Nem todos suportam tamanha exposição de aberrações.

A última cartada? O chamado tele-realismo (os “reality shows”). Dizem que os primeiros “espetáculos de realidade” surgiram devido à grande greve de roteiristas de 1988, nos Estados Unidos. Sem roteiristas, ou seja, sem contadores de histórias, a indústria áudio-visual teve que apelar para improvisações. Olha aí a história da contradição, de novo. Foi um conflito entre patrões e empregados e não um cálculo frio que criaram coisas como Big Brother (só não vale ter raiva dos companheiros roteiristas pelo resultado que a greve teve a longo prazo).

Voltando ao Big Brother, a própria seleção dos participantes deixa claro para o telespectador que há manipulação. Não estou falando das denúncias sobre apadrinhamentos. Mas, de indivíduos selecionados para provocar reações dentro do grupo. A gostosa, na versão fria e calculista ou no tipo burra e medrosa. O garanhão briguento, metido a líder. O cara mais intelectual e esperto. O feioso e a feiosa. E por aí vai.

A população só não tem plena certeza de que tudo é combinado porque nem tudo é combinado. Imagino que há um roteiro básico que pode ser modificado pelos diretores conforme os índices de audiência. Conforme o desempenho de um ou outro etc. Deixar tudo combinado de antemão seria burrice.

O lado podre das relações humanas do dia-a-dia

E qual é o conteúdo desse tipo de programa? São as intrigas, os fuxicos, as panelinhas, a chantagem, a hipocrisia, alianças temperadas com sexo. Todos conhecemos coisas assim de relações familiares, ou entre amigos, entre casais, no trabalho, na escola, na faculdade. A janelinha azul abre-se para rotina diária. Mas não para todo e qualquer cotidiano. É o lado podre das relações humanas do dia-a-dia. É o que sobrou para a vida privada depois de que foi esvaziada de sentido por séculos de dominação burguesa.

A sociedade burguesa não se livra dos preconceitos anteriores a ela. Usa a superstição, o lado perseguidor da religião, o machismo, o ódio ao estrangeiro. Usa tudo isso e junta com a exploração econômica, a comercialização da vida, o amor pelos objetos acima do respeito pelas pessoas. 

Big Brother é a condensação de todos os preconceitos. São indivíduos voltados para o sórdido. Se for preciso, um usa o machismo. O outro, o racismo. Ela apela sexualmente. Este, semeia a discórdia. Aquela, é boa na mentira. É um gran

de ralo aonde a podridão vai se juntando. Um a um, os candidatos vão caindo pelo ralo. O último, o vitorioso, também vai passar pelo ralo. Mas, diferente dos outros, não vai afundar na imundície. Vai ficar boiando. Que nem merda.