(Sônia Oliveira Pinto e Jaime Gonçalves Filho)
Márcio Amaro de Oliveira, vulgo Marcinho VP, é o ator principal do recém-lançado Abusado, de Caco Barcellos. Em entrevista exclusiva, o jornalista da TV Globo fala sobre seu novo livro, a violência no Rio de Janeiro e afirma que “o tráfico só vai morrer quando os empresários pagarem salários dignos”.
Rio de Janeiro – Ídolo de poeira, Deus de bermudas e imperador da favela Santa Marta, na Zona Sul do Rio de Janeiro, Márcio Amaro de Oliveira, vulgo Marcinho VP, é ator principal do cinematográfico e recém-lançado Abusado (Ed. Record), do jornalista Caco Barcellos. O livro-reportagem conta, em forma de romance, a história de uma quadrilha de traficantes do Rio de Janeiro cujo líder era Marcinho VP, transformado no personagem Juliano VP.
O jornalista há tempos queria fazer uma grande reportagem sobre o tráfico de drogas no Rio de Janeiro. Tentou iniciar os trabalhos primeiramente na favela do Jacarezinho e depois na Rocinha. As duas tentativas falharam, por motivos diferentes. Em 1996 teve o primeiro contato com Marcinho VP, dentro da carceragem da Polinter. Antes mesmo desse encontro, quando da gravação do famoso clipe do cantor Michael Jackson na favela, Caco já considerava Márcio uma figura interessante. “Pô, que coisa curiosa. Tem um cara com esse nível de consciência nas favelas”. Conversando com Márcio na cadeia, suas impressões se confirmaram, e surgiu então a nova tentativa de fazer a reportagem.
Com um grande personagem nas mãos e um cenário não menos interessante – a Santa Marta, favela vertical mais íngreme da cidade e com um dos maiores contingentes humanos por metro quadrado do país, Caco iniciou seu processo de apuração que durou cerca de cinco anos.
O livro costura a vida bandida dos traficantes, de suas famílias e de moradores da Santa Marta, em quase 600 páginas. Mostra como o Comando Vermelho se impôs na favela e liga acontecimentos recentes na guerra do tráfico de drogas na cidade, como no caso da morte do traficante Uê (Terceiro Comando), assassinado por Fernandinho Beira-Mar (Comando Vermelho), em setembro de 2002 – uma vingança, oito anos depois, pela morte de Orlando Jogador, assassinado por Uê “numa terça-feira de junho de 1994, o dia de uma traição histórica no universo do narcotráfico do Rio de Janeiro.”
No livro, Caco aborda também os famosos tribunais do tráfico, a cobertura dada pela imprensa às áreas mais pobres da cidade, a relação de Marcinho VP com o cineasta João Moreira Salles e outros intelectuais, sua fuga para a Argentina, seu desejo de encontrar o subcomandante Marcos, do movimento Zapatista no México, e tantas outras histórias. O Abusado traz ainda um encarte fotográfico com imagens do morro, de alguns traficantes já mortos e de reportagens antigas sobre a Santa Marta.
Em entrevista exclusiva, Caco Barcellos contou um pouco sobre o processo de produção do livro, falou sobre seu personagem principal, sobre desigualdades sociais no País, e, ao ser perguntado se há uma luz no fim do túnel, com relação à violência nas grandes cidades, foi enfático: “No dia em que os empresários começarem a pagar salários decentes, dignos, o tráfico começa a morrer no Rio de Janeiro. Junto com qualquer outro tipo de crime. Não acredito em nenhuma outra solução que não comece por isso.”
Agência Carta Maior – Queria que você explicasse como e quando surgiu a idéia do Abusado.
Caco Barcellos – É anterior ao Rota 66 até. Pensando no meu passado, acho que desde dos anos 70 eu já queria fazer algo assim. Na verdade eu já fiz até capítulos, se você observar isoladamente, no passado fiz reportagens dentro de quadrilhas. Eu sempre desejei ter a confiança de um grupo (para que ele se sentisse à vontade) para me contar detalhes. Eu adoro alguns escritores de não-ficção, alguns deles americanos, que já fizeram isso – só que não com quadrilhas. Como é o caso de Os honrados mafiosos, do Gay Talese, um livro que eu adoro, maravilhoso.
CM – Revolução das Crianças na Nicarágua já ia um pouco por esse lado.
CB – Na revolução civil da Nicarágua, eu acompanhei os guerrilheiros, tive o privilégio de conquistar a confiança deles. Então, na verdade, é uma reprodução do que eu venho fazendo sempre, só que neste eu consegui de maneira mais intimista. Acho que eu nunca tive uma confiança tão grande e também não posso atribuir só à confiança, talvez mais à ingenuidade do que à confiança. Um dos motivos também por eu ter trocado os nomes. Há uma exposição muito grande e eu tenho consciência do que representa essa exposição. Mas para o meu ponto de vista da curiosidade profissional, do meu desejo de me aproximar da verdade, foi uma grande experiência.
CM – E a sua escolha foi primeiro pela figura do Marcinho VP?
CB – Sim. Quando do episódio do Michael Jackson, eu pensei: “Pô, que coisa curiosa. Tem um cara com esse nível de consciência nas favelas”. Eu já sabia que outros, no passado, do Comando Vermelho, pela proximidade do pessoal da esquerda armada, tinham desenvolvido trabalhos de autoproteção dentro das cadeias. É um movimento importante dento das cadeias, o Comando Vermelho. Porque a gente sabe que não há o cuidado com os direitos elementares deles. Então, num primeiro momento o CV exerceu esse papel. Só então ele saiu das cadeias, foi para os assaltos e depois para o comércio do pó. Então, aquela entrevista (com Marcinho VP) me impressionou, na época do Michael Jackson. Eu tive a oportunidade de falar com ele, depois da prisão, na Polinter, e ele se mostrou aberto para conversar. Na ocasião eu conversei muito também com o Lambari, que era o chefe do Jacarezinho, uma favela importantíssima. Mas o Santa Marta é uma favela vertical e, depois, a densidade demográfica é fantástica, o que faz com que todo mundo se conheça. E quando todo mundo se conhece, a possibilidade de fazer o cruzamento de histórias é muito grande, rica.
CM – Você já tinha tentado também a Rocinha, certo?
CB – É. Eu cheguei a “morar” na Rocinha, acho que por uns vinte dias, fazendo um Globo Repórter. O último capítulo do Rota 66 eu escrevi dento da Rocinha. Estava fazendo esse documentário lá, trabalhava e escrevia. Foi aí que eu conheci alguns dos que me ofereceram essa oportunidade. Teve brincadeiras e alguns sérios, dizendo: “Ó, em vez de você continuar enchendo o saco, fica aqui”.
CM – E foi muito trabalhosa a conquista da confiança no Santa Marta?
CB – Eu acho tão simples. Muitas vezes não passa de duas conversas. Tem o período de desconfiança, que é natural, mas se você ficar mostrando que você faz o que fala, eles entendem, acho que todo mundo entende, é muito simples. Acontece que eles também não são habituados a ter uma relação de respeito com pessoas de fora do morro. Então, quando eles têm, até estranham. E eu deixo muito claro que sou mané, que eu sou otário, que eu não quero me igualar em conhecimento, que eu não tenho do universo deles, que eu estou lá para aprender. É difícil no início, mas chega um momento que não tem porquê desconfiar. Então, eles pensam: “Esse cara disse que vinha aqui mostrar a vida dos universitários do morro, cinco dias depois tá lá na televisão a história dos caras. Disse que não mostraria o tráfico, olharam e não tem o tráfico”. Aí, dois mais dois são quatro. É natural.
CM – Há alguns anos você declarou, em uma entrevista, que o Marcinho VP era uma grande figura. Disse até que ele tinha algo de Robin Hood. Naquela época você não o conhecia tão bem. Continua achando o mesmo?
CB – Eu não conhecia nada dele. Tinha tido, no máximo, uns dois encontros com ele e acho que tinha razão. Se eu não achasse ele uma pessoa interessante, provavelmente teria desistido. Acho que ele tem consciência disso, talvez sem muita consistência ideológica, mas ele está no caminho de se tornar um cara que, se tiver mais apoio, um cara importante, uma liderança política importante do morro. Mas ele precisa de muito apoio, como todo jovem precisa de apoio intelectual. Ele tem a grande empatia de um líder (leia abaixo trecho 1 do livro sobre esse assunto) – e é quase iletrado. Imagina se tivesse tido a formação de um menino rico, por exemplo. Em qualquer setor da sociedade ele seria um cara de liderança. Um sonho que eu tenho é que figuras como ele virem políticos, para defenderem as teses que eles têm.
CM – Você acredita que a ajuda do João Moreira Salles (que pagou por alguns meses uma mesada a Marcinho VP, condicionada ao afastamento dele do tráfico e à produção de um livro sobre sua vida) poderia contribuir nesse sentido, de ser o apoio necessário que ele não teve?
CB – Difícil imaginar qual seria a trajetória do Márcio. Agora, eu duvido um pouco que ele conseguisse, só através de uma mesada, esquecer todo universo dele. Ele é uma pessoa muito despreparada para encarar a vida – tão difícil que é a vida dos trabalhadores que precisam se dedicar dez horas por dia para ter uma renda miserável. Acho muito difícil se conformar com isso, que qualquer jovem do morro aceite reproduzir a história do pai. No caso dele, teria uma renda boa, mas não é só dinheiro. Não sei se teria ferramentas para dar continuidade, nem até que ponto o João prosseguiria dando uma mesada tão alta, para ele continuar a vida. Pelo que disse o João naquela época, era um ajuda para fazer o livro. Mas quando o livro acaba, e aí? Vai competir no mercado com as pessoas muito mais preparadas? Não posso ter a pretensão de avaliar as possibilidades. Mas acho que realmente a iniciativa foi de boa fé, dos dois lados, disso eu não tenho nenhuma dúvida.
CM – Você disse não querer fazer comentários em relação a participação do João Moreira Salles na produção do teu livro.
CB – Tem umas questões ali que são delicadas e não quero polemizar, porque tenho certeza de qu
e se eu fizer isso, no dia seguinte a imprensa vai falar do meu livro. Se eu fosse oportunista, eu faria isso, seria vingativo. Acho que a história dele no livro é obrigatória, trouxe luz ao Marcinho, então eu tinha que falar dele. Mas é o que está ali e só.
CM – É possível fazer uma relação direta entre a guerra das crianças da Nicarágua, tema de seu primeiro livro, e a guerra das crianças do tráfico?
CB – Eu acho que pode ser feita uma comparação, sim. Sempre a gente tem que considerar as diferenças sociais, causadoras de violência, de revolta popular. Eu acredito muito fortemente na relação entre essas duas coisas. Eles estavam debaixo de uma ditadura de 42 anos, que matou seus pais, seus parentes, que não distribuiu renda, um sistema muito parecido com o nosso, e chega um momento de dar um basta. Eu acho que os números são muito claros da prova dessa relação. O índice Gini, que avalia o grau de injustiça econômica no mundo, sempre aponta as mesmas nações. O Brasil vem acumulando renda há vinte anos. Não sei há quantos anos existe o índice Gini, mas nos últimos sete, dez anos, sempre o Brasil é campeão ou vice-campeão da injustiça. A África do Sul parece o Brasil, parece uma filial brasileira, sempre no topo do ranking de violência, de injustiça econômica. A Jamaica, a mesma coisa. Mesmo se você analisar isoladamente um país com suas diferenças regionais, você encontra o mesmo fenômeno. Os Estados Unidos é um país relativamente não violento, com índice de 11 mortos para um grupo de cem mil, o Brasil chega a 39 por cem mil. Mas há Estados como Washington, onde há negros, pobres sendo explorados por uma casta de elite e tal, onde você encontra violência tão alta quanto a de São Paulo e a do Rio de Janeiro. Fechando o universo, vamos para o Rio de Janeiro, nem falo do Estado, vamos analisar bairro: é tão seguro morar no Leblon quanto no Japão. Chega a ficar sete meses sem uma morte no Leblon, em Ipanema. E a cinco quilômetros dali você tem 120 mortes por cem mil, a pior violência do mundo, supera duas vezes a da Colômbia.
CM – Existe um tipo de leitor que se identifica com o seu trabalho e certamente o lerá agora. Mas e o leitor que pensa de maneira ideológica e diametralmente oposta a sua – esses que clamam por pena de morte e se escondem atrás das grades dos condomínios – podem se interessar pelo Abusado?
CB – Eu acho até que é meu principal foco. Não é meu público potencial. Minha expectativa é com aqueles que pensam de uma forma diferente, uma tentativa de convencê-los. Alertá-los que se querem pena de morte para quem mata, não é esse povo que mais mata no Brasil. Os assaltantes brasileiros matam 4% das vítimas de morte no Brasil. Quatro por cento você pode atribuir aos assaltantes, que matam para roubar. Noventa e seis por cento não são crimes de latrocínio, são de homicídio. Homicídio envolve não criminosos “profissionais”, são crimes derivados da desarmonia social; quem mata é o marido que foi traído pela mulher, o cara que foi fechado no trânsito. Então, vamos ter de matar gerentes de banco, vamos matar chefes de família, tem de matar, se a pena de morte é pra quem mata… Matar 95% de pessoas da sociedade organizada e 4% cento da sociedade desorganizada. Vocês querem isso? Então, bala em vocês! Vou ser coerente com o discurso de quem defende a pena de morte. Eu acho que geralmente quem defende a pena de morte quer na verdade pena de morte para quem agride o patrimônio, não para quem agride a vida. Infelizmente, no Brasil, as pessoas dão mais valor ao dinheiro do que à vida.
CM – Você poderia explicar melhor o papel da Igreja dentro no Santa Marta? Tanto em relação à fé, quanto à instituição – que, pelo menos no livro, parece bem forte e atuante.
CB – Pra vida deles, pro cotidiano ali da comunidade, é inesquecível, inesquecível! Qualquer avanço que o morro conquiste, é pra sempre e pra cada segundo da vida deles. Então, se tem uma rede aérea de distribuição de água, que veio com o apoio da Igreja, e a água está na casa das pessoas, toda hora que eles abrem a torneira a água está ali, pingando ali, então, é inesquecível. E quem fez foi a Igreja Progressista, foi Dom Hélder Câmara e os seguidores dele. E ele veio e derrubou as árvores também. “Ele é ilegal. Por que eu não posso ser?” É ilegal, mas foi legítima a ilegalidade dele. Se a sociedade não dá espaço para as pessoas morarem, vamos arranjar. A Igreja, aliás, defende o crime famélico, considera que não é crime você roubar para comer. Isso é uma coisa legal da Igreja, é legítimo roubar para comer, se a sociedade não te dá oportunidades.
CM – Nesse sentido a atuação do Dom Hélder Câmara foi revolucionária para o morro.
CB – Por isso é odiado pela classe média, odiado pelo empresariado. O Brizola também. Eu nem gosto de falar, porque aqui (a entrevista foi realizada no Rio de Janeiro, nos estúdios da TV Globo) falar em Brizola é levar ovo na cara. Fui dar uma entrevista na Rádio CBN e o locutor começou a fazer “Êêêêêêê….”, me vaiando, quando eu falei que o Brizola foi o único governador que levou benfeitoria para o morro. “Isso é gauchismo seu”, ele disse. Suba o morro para ver as casas de alvenaria, por exemplo. Os helicópteros também, que passaram tanto tempo dando tiro lá de cima para baixo e ele proibiu isso. Amarrou as mãos da polícia, impedindo que matassem. Exigiu que houvesse mandado judicial para invadir os barracos. Você já viu alguém invadir uma residência do Leblon, sem mandado judicial? Nunca. Por que lá pode? Se fosse gauchismo meu… todos os ditadores eram gaúchos e eu fiz cinqüenta mil matérias contra os ditadores gaúchos, que são uns assassinos.
CM
– Depois de passar a noite dentro de um barraco, muitas vezes miserável, como no trecho em que você narra o lugar onde mora o menino Nein (leia abaixo trecho 2 do livro sobre esse assunto), como é voltar para tua casa, para o teu conforto? Você conversa sobre essa realidade com seus filhos?
CB – Converso. E quando eu consigo envolvê-los – e nem sempre eu consigo, porque eles estão ligados em outras coisas –, eles adoram ouvir as histórias. É impressionante como meu filho de 12 anos é preocupado com a realidade, com as diferenças. Ele fica mais ativo. Eu só não permiti que ele lesse o livro. Ele começou a ler alguns capítulos, mas começou a ficar preocupado: “Pai, não vou dormir essa noite e tal”. Ficou um pouco emocionado também, aí eu comecei a protegê-lo disso. Acho que ele tem que trilhar pelos caminhos dele, eu sempre respeitei muito isso, mas é inevitável chegar e conversar. Eu procuro também as histórias que são menos traumáticas, mas não abro mão de dar umas chocadas de vez em quando. Eu sou verdadeiro.
CM – Queria que você falasse sobre o nível de aproximação ou envolvimento afetivo com as personagens com as quais você conviveu durante o trabalho. Como é, por exemplo, o momento de descrever atrocidades cometidas (leia abaixo trecho 3 do livro sobre esse assunto) por essas pessoas? Você não acha que há o risco de usar dois pesos e duas medidas e acabar romantizando o papel do bandido?
CB – Olha, é a coisa mais delicada mesmo, em qualquer trabalho de reportagem que a gente faça. E o livro é uma reportagem com extrema profundidade, comparando com as que normalmente a gente faz. Eu não consigo me aproximar sem me envolver. Agora, por conta do meu dever profissional, eu procuro sempre manter um distanciamento razoável, mas é muito difícil, porque as pessoas não permitem o distanciamento, elas estão sempre forçando alguma forma de envolvimento. Mas elas sempre foram absolutamente respeitosas, até talvez auxiliadas pela minha postura de ficar ali como observador. Eu sou muito rigoroso no que diz respeito à situação presente e à situação futura. Eu impedia que eles me envolvessem em uma situação presente que envolvesse crime e me fizessem relatos de situações futuras. Não quero nem devo saber, para eles jamais desconfiassem de mim. Se ele me disse que o plano é atacar o Banerj e que vai matar o gerente, eu tenho o dever de chegar para o gerente e dizer: “Vai ser morto. Suma”. O cidadão tem que estar sempre à frente do repórter. Agora, um outro exemplo, se ele me revela o esconderijo dele e for preso ou morto no dia seguinte, os parente vão, naturalmente, me colocar no rol dos potenciais delatores. Eu não quero estar nesse rol, por uma questão de defesa pessoal. Agora quando chega na coisa delicada, é muito difícil falar de pessoas que cometem absurdos, se você gosta delas. O meu recurso para falar disso é o de ouvir sempre o maior número possível de pessoas, sobretudo do lado das vítimas. Relato pelo olhar da vítima, colocando o peso do relato do assassino também. É uma maneira de eu ficar de bem com a minha alma, me comportando dessa maneira.
CM – O livro é dividido em três partes, que levam o nome de livros do Ernest Hemingway. Qual o motivo da homenagem?
CB – Ele está na lista dos meus escritores favoritos. O meu livro é uma tentativa de copiar alguns descaradamente. Eu gosto muito do Gay Talese, que é um repórter maravilhoso e que costuma ficar dez anos envolvido numa história, para escrever sobre ela. Adoro, adoro, adoro o Truman Capote. É dele um dos melhores livros que já li na minha vida, sobre o crime (A Sangue Frio). Acho que é possível escrever sobre criminosos sem glamorizar a história. O criminoso é uma pessoa como a gente, que tem um lado fora da lei. Mas o resto é muito parecido, as pessoas são muito parecidas. Sobre a pretensão de também fazer uma leitura agradável, de entretenimento, eu acho que no Rota 66 não consegui, porque tinha uma denúncia que pesou muito nas minhas mãos. Eu não imaginava que fosse denunciar que eles matavam inocentes, achava que só matassem criminosos. Aquilo me assustou demais e o livro perdeu a leveza, que eu acho necessária para se conquistar o leitor.
CM – No livro você explica detalhadamente a história da traição de Uê contra Orlando Jogador, que mudou a estrutura do tráfico de drogas no Rio de Janeiro. Qual a importância, para essa mesma estrutura, do motim comandado por Fernandinho Beira-Mar (em setembro de 2002), que culminou com o assassinato de Uê e de mais dois traficantes dentro de Bangu I?
CB – Eu acho que faz, sim, um novo desenho, sem dúvida. Primeiro é a vingança, de oito anos passados. Isso, na concepção deles, alguém tinha que fazer. E o Fernandinho Beira-Mar disse: “Ó, o Comando Vermelho é mais forte”. Vingou aquele episódio, porque o Orlando Jogador era uma figura, naquela época, de muita ascendência sobre os outros. Então, eu acho que consolidou o poder do Fernandinho Beira-Mar. E teve aquela traição do Celsinho da Vila Vintém, que provocou um racha. Eu não sei se a imprensa está falando sobre isso, mas sei que existe uma guerra entre o Terceiro Comando e o ADA (facção criminosa Amigos dos Amigos), que é a primeira conseqüência daquele episódio. Agora, não sei, temos que apurar a partir de agora o que vai acontecer no universo deles. Até onde eu acompanhei, sem dúvida, foi, talvez, como episódio de estrutura e desenho, o mais importante de todos.
CM – Há uma luz possível no fim desse túnel?
CB – Eu sou bem simplista. No dia em que os empresários começarem a pagar salários decentes, dignos, o tráfico começa a morrer no Rio de Janeiro. Junto com qualquer outro tipo de crime. Não acredito em nenhuma outra solução que não co
mece por isso. Acho muito legal ter 50 mil propostas de ONGs etc., mas é tudo pra minimizar. País justo não precisa ser solidário. Com salários dignos, podem ir embora todas as ONGs do Brasil. O Governo também é secundário, a sociedade é que é importante.
CM – Você já teve algum retorno do Márcio, sobre o livro?
CB – Não, não tive. Falei com ele uma semana antes do livro sair. Sei que ele não leu o livro ainda, mas espero falar com ele depois que ler. De orelhada eu tive retorno, gente dizendo que ele está preocupado, mas acho que não vale. Quero falar diretamente com ele, depois da leitura. Como é que ele vai dizer que o livro pode prejudicá-lo, sem ler. Depois que ler, aí sim. Mas eu acho que sem dúvida pode, acho que basta falar dele pra ter medo.