(Juliana Andrade – Agência Brasil)
O jornalista Caco Barcelos, da TV Globo, afirmou na segunda, dia 5, que o argumento do descontrole da violência tem funcionado no Brasil como uma retórica de conservadores para justificar a repressão, o autoritarismo e a injustiça social. Agraciado com o prêmio de Direitos Humanos, na categoria Imprensa, em solenidade no Palácio do Planalto, ele emocionou o público com um discurso incisivo contra a indústria da segurança, comandada por militares e delegados de polícia.
Caco nasceu em Porto Alegre e iniciou sua carreira jornalística há 30 anos. Durante a ditadura militar, trabalhou em veículos da imprensa alternativa. A partir de uma reportagem para a revista Versus, escreveu seu primeiro livro, intitulado “A Revolução das Crianças”, sobre a revolução sandinista, na Nicarágua. Trabalhou nas revistas Repórter, IstoÉ e Veja. Desde 1985, trabalha na Rede Globo, como repórter do Jornal Nacional, do Fantástico e do Globo Repórter. Atualmente, é correspondente da emissora em Londres.
Íntegra do discurso
“Senhor presidente da República em exercício, José Alencar, secretário Nilmário Miranda, ministros José Dirceu e Maurício Corrêa, demais autoridades aqui presentes, ministros, governadores, amigos da Comissão dos Desaparecidos Políticos e parceiros ativistas de longa data no trabalho de defesa dos direitos fundamentais:
Eu quero aproveitar os valiosos cinco minutos que nos foram concedidos para dizer muito obrigado em nome dos agraciados deste prêmio, que representa, sem dúvida, um grande incentivo para todos nós e ajuda a acreditar que estamos no caminho certo, apesar dos riscos e dos obstáculos, sobretudo nas áreas da injustiça social e da violência.
E me foi pedido falar aqui de dois desses obstáculos. Graves obstáculos. Ambos verdades ou meias-verdades da prática e da retórica dos conservadores. De gente que no passado fez a ditadura militar ou que deu apoio a ela e que hoje tenta nos impor outras formas de autoritarismos nos segmentos da justiça, da segurança e da imprensa.
Uma dessas verdades é o chamado descontrole da violência. É verdadeiro, sim, que mais de 40 mil pessoas, mais de 40 mil brasileiros são mortos todos os anos. Muitos deles vítimas de assaltos nas esquinas e de outras formas de crimes que ocorrem nas áreas mais nobres e contra pessoas bem situadas na sociedade. O quadro é grave, mas é uma meia-verdade.
É preciso ser dito e repetido que a esmagadora maioria das vítimas é formada por gente pobre e que nas áreas onde eles moram – e onde a cidadania nunca chega – a violência está fora de controle desde o início dos anos 80 e nunca os conservadores reclamaram disso.
Os conservadores da imprensa e de outros segmentos escondem que os assaltantes que matam para roubar são responsáveis por não mais que 4% do universo total das mortes em qualquer cidade, grande ou pequena, do norte ao sul do Brasil. E escondem para pedir repressão dura, e muitas vezes brutal, contra os criminosos de baixa renda e somente contra eles. E o resultado disso é chamado combate corajoso do crime organizado, outra meia-verdade dos conservadores.
Legitimada por esse equívoco, a polícia – é importante que se frise, em alguns estados do Brasil, para citar apenas os exemplos das duas maiores cidades, Rio de Janeiro e São Paulo – tornou-se mais violenta que os piores criminosos do país. São responsáveis hoje por 10% das mortes, mais que o dobro em relação ao número de latrocínios.
As outras 85% das mortes são praticadas por pessoas comuns, que matam porque a mulher ou o marido traíram, porque brigam com o vizinho, porque são fechados no trânsito, sempre por motivos banais.
Deixar de contextualizar os números da violência é crime de ignorância, ou crime de má fé.
Essa visão conservadora de quem só pensa em segurança na defesa do patrimônio criou uma outra deformação: o exército dos homens de preto. Em outras palavras, a polícia privada dos ricos. E já formam um contingente com mais de 500 mil homens armados. Supostamente para prevenir crimes contra seus patrões, já mataram mais de 500 pessoas em São Paulo e no Rio de Janeiro, apenas no ano passado.
Aliás, assim como a indústria da segurança, comandada por coronéis e delegados de polícia, muita gente está faturando alto com a epidemia da violência, gente que aposta no “quanto pior, melhor”. Refiro-me à indústria das armas, por exemplo, refiro-me à indústria do álcool, principalmente a da cachaça.
É verdade que o comércio de cocaína e de maconha tem relação direta com a violência, mas a da cachaça também – e pior – mata mais que o pó, a maconha e que muitas drogas ilegais.
Segurança democrática não se pratica com brutalidade contra os fracos, tampouco com a omissão contra os crimes e a irresponsabilidade dos poderosos. Muito obrigado”.