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Porto de entrada dos escravos africanos no Brasil é reconhecido como Patrimônio da Humanidade pela Unesco; ‘É o mais importante e significativo sítio de memória da diáspora africana na América’

Salve o navegante negro
que tem por monumento
as pedras pisadas do cais

Os versos de João Bosco foram uma homenagem a João Cândido, o filho de escravos que comandou a Revolta da Chibata, em 1910, contra os castigos físicos na Marinha. Mas poderiam igualmente ter sido escritos em honra dos milhares de africanos escravizados que, muito antes, entraram no país pelo antigo Cais do Valongo, na zona portuária do Rio, reconhecido como Patrimônio Mundial da Humanidade no domingo (09/07). É o primeiro da América relacionado diretamente à escravidão.

[Por Roberta Jansen | Deutsche Welle | Rio de Janeiro – 13/07/2017 – 13h03] Diferentemente de outros 20 sítios no Brasil igualmente reconhecidos pela ONU, as pedras pisadas do cais por mulheres e homens trazidos à força da África em navios negreiros foram eleitas não apenas por seu valor arqueológico, arquitetônico ou mesmo histórico, mas, principalmente, por formarem um local considerado de “memória sensível” – mesmo caso, por exemplo, do campo de extermínio nazista de Auschwitz. Um lugar, portanto, de sofrimento, símbolo de um crime contra a humanidade.

“O Valongo é o mais importante, o mais significativo sítio de memória da diáspora africana na América. É o único vestígio material que temos do desembarque de africanos escravizados por aqui”, afirma o antropólogo Milton Guran, coordenador do grupo de trabalho que elaborou o dossiê da candidatura do cais à Patrimônio Mundial da Humanidade.

Único sítio ligado à escravidão no Brasil

Não se trata de um ponto de desembarque qualquer: dos 4 milhões de africanos escravizados que vieram para o Brasil em 300 anos de tráfico, 2,4 milhões entraram no país pelo Rio de Janeiro, 1 milhão deles pelo Valongo, entre 1774 e 1831— muito mais gente do que os Estados Unidos receberam (cerca de 400 mil) em toda a sua história de tráfico.

“O Cais do Valongo é o mais importante complexo negreiro do mais importante país na história da diáspora africana na era moderna, que é o Brasil”, resume o historiador Carlos Eugênio Líbano Soares, da UFRJ. “Nunca antes tantos africanos chegaram em tão pouco tempo a uma região do mundo atlântico.”

Segundo Guran, isso explica a importância do reconhecimento. “O Valongo não simboliza só a parte material, imediata, o porto de desembarque, mas toda a tragédia do tráfico no Atlântico, esse crime contra a humanidade”, explica Guran, que também é integrante do comitê científico internacional do projeto Rota do Escravo, da Unesco, que busca mapear os caminhos da diáspora pelo mundo.

Segundo o antropólogo, todos os outros sítios reconhecidos como patrimônio mundial ligados à escravidão estão na África. Esta é uma diferença crucial no que diz respeito ao reconhecimento da escravidão no Brasil, segundo especialistas.

“Sempre se trabalhou muito no viés da história oficial, que apagou a presença do negro na cultura e no processo civilizatório do Brasil”, afirma o diretor do Departamento do Patrimônio Material do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), Andrey Schlee. “Estamos tentando resgatar a importância dessa contribuição. Superamos a fase de valorizar áreas da classe dominante.”

Dificuldades para preservação

Na última segunda-feira, durante festa realizada no local para celebrar o reconhecimento, moradores reclamavam do abandono da região, parcialmente ocupada por moradores de rua. “O lugar não está bem conservado”, afirmou Carolina Soares, de 38 anos, do grupo Afoxé Filhos de Ghandi. “Todos querem enterrar a cultura negra, o descaso é grande. O título é louvável, espero que, com isso, as coisas melhorem.”

Do ponto de vista prático, como foi o próprio país que apresentou a candidatura do Cais do Valongo, ele é responsável por preservar a área. Um comitê deverá ser instituído nos próximos dias para apresentar um plano de uso e preservação da região. A ideia de ter um museu sobre a diáspora na área também já foi apresentada pela prefeitura.

Agência Brasil

Entre os séculos 16 e 19, Brasil recebeu 40% de todos os africanos escravizados que chegaram vivos à América, boa parte deles pelo Cais do Valongo

“A Unesco sabe que o Valongo vai muito além do Rio de Janeiro”, diz o historiador Carlos Eugênio Líbano Soares. “Ela toca em questões como a desigualdade racial e econômica no capitalismo, a divisão do trabalho no mundo, a invenção do subdesenvolvimento e do terceiro mundo, o lugar do africano na globalização. O Valongo como Patrimônio da Humanidade vai internacionalizar as questões sociais e raciais do Brasil, o que é positivo.”

Tráfico prosseguiu mesmo proibido

Durante os três séculos de vigência do regime escravocrata no Brasil, entre os séculos 16 e 19, o país recebeu 40% de todos os africanos que chegaram vivos à América, boa parte deles pelo Cais do Valongo.

A partir de 1774, o desembarque de escravos no Rio de Janeiro foi integralmente concentrado na região da Praia do Valongo, onde estava instalado também o mercado de escravos, um lazareto (hospital) para os que chegavam doentes e o Cemitério dos Pretos Novos, para onde iam os que não resistiam às cruéis condições da travessia.

O local só foi desativado como porto de desembarque de escravos em 1831, quando o tráfico transatlântico foi proibido por pressão da Inglaterra – determinação solenemente ignorada no país, onde recebeu a alcunha irônica de “lei para inglês ver”. O desembarque de escravos continuou ocorrendo, ainda que de forma dissimulada, em geral durante a noite.

Doze anos depois, em 1843, o antigo cais foi aterrado e reconstruído para receber a princesa Tereza Cristina, mulher do imperador Dom Pedro 2º, ganhando o novo nome de Cais da Imperatriz.

“Lógico que se buscava uma nova narrativa, a construção de uma nova memória, já que o nome Valongo foi varrido da nomenclatura municipal”, sustenta o historiador Carlos Eugênio Líbano Soares, autor de Cidades Negras. “Se reforça o consenso ideológico em torno da monarquia e, ao mesmo tempo, se apaga um passado nefasto para a cidade. É uma questão de imagem pública, tão ao gosto do marketing político da atualidade.”

Foi somente em 1850, no entanto, que o Brasil aprovou a Lei Eusébio de Queirós, que proibia a entrada de escravos no país. Ainda assim, há registros da chegada de africanos escravizados até 1872, poucos anos antes da Abolição, assinada, finalmente, em 1888 – bem depois de todos os países escravocratas da América.

Amnésias sociais

Em 1911, com as reformas urbanísticas da cidade comandadas pelo então prefeito Pereira Passos, o Cais da Imperatriz foi aterrado. Embora a sua localização estivesse demarcada por uma placa e um obelisco, foi somente durante as escavações realizadas em 2011, por ocasião das obras do Porto Maravilha, que os antigos resquícios do Cais da Imperatriz e do Valongo foram redescobertos.

“A arqueologia histórica tem por obrigação intervir naquilo que foi enterrado e deliberadamente ocultado, é um antídoto contra as chamadas amnésias sociais”, afirma a arqueóloga Tania Andrade Lima, do Museu Nacional/UFRJ, que coordenou os trabalhos de escavação na região. “Trouxemos à luz o que se queria esconder, para que possamos reviver esse passado tenebroso, para que aprendamos a lidar com ele. É uma parte vergonhosa da nossa história, sem dúvida, mas esconder não é a melhor forma de lidar com ela. É preciso expor a violência praticada ali para estimularmos a reflexão sobre a perversão do racismo, num momento em que o preconceito recrudesce no mundo. O Valongo é uma denúncia do que a humanidade é capaz de fazer contra o outro, contra o diferente.”

Por sugestão das Organizações dos Movimentos negros, o espaço foi transformado em monumento, aberto à visitação pública, passando a integrar o Circuito Histórico e Arqueológico da Celebração da Herança Africana, na região portuária, que inclui ainda o Cemitério dos Pretos Novos e a Pedra do Sal – onde, se acredita, o samba nasceu. A região ficou conhecida como “Pequena África”.

“O tráfico e a escravidão africana demoraram séculos e ainda passam mais como um costume incômodo do que um genocídio. Era como se fosse um extermínio em massa de baixa intensidade”, explica Líbano Soares. “Mas foi um extermínio.”

Fonte do artigo:  http://bit.ly/2wqb6nt