Caracas – “Quem está lá? As mulheres, onde estão? E os marmanjos? Levantem as mãos, para que possa vê-los. Minha mãe! Tem gente a perder de vista!”

Boina e jaqueta vermelha, camiseta preta, jeans e tênis, Hugo Chávez, presidente da Venezuela, está com um binóculo, falando ao microfone, no alto da tribuna de um imenso palanque montado na avenida Simon Bolívar, no centro de Caracas, na noite do domingo, 13 de abril. À sua frente, concentram-se, em quase dois quilômetros da via de oito pistas, cerca de um milhão de pessoas, a agitar bandeiras e a entoar palavras de ordem.

Acabou de cair uma chuva fina, coisa que não acontecia na capital do país andino há sete meses. “É um sinal dos céus!”, diz o presidente, “um sinal enviado para marcar este dia da dignidade do povo venezuelano!” Chávez está exultante. Com sua voz afinada, de baixo tenor, começa a cantar o hino nacional. O comício marca o primeiro aniversário da volta do presidente ao palácio de Miraflores, após a malogrado golpe midiático-empresarial que o tirou do governo por três dias.

 

Popularidade

A popularidade governamental, medida pelos institutos de pesquisa controlados pelos meios de comunicação privados, conta mais de 40% de aprovação. Após derrotar os golpistas, Chávez enfrentou uma ameaça tão difícil quanto aquela: um locaute nacional, de dois meses, no início do ano, que praticamente estancou a produção da PDVSA (Petróleos de Venezuela S/A), representante de 70% da pauta de exportações do país. Enfrentando um desabastecimento generalizado e uma queda vertiginosa do PIB – o FMI fala em 15%, número contestado por Chávez – a administração federal conseguiu dividir o campo adversário e retomar o controle da empresa.

 

Ali Rodriguez, presidente da gigantesca estatal, conta que para chegar a isso teve de demitir 17 mil funcionários, cerca de 40% do efetivo, envolvidos em atos de sabotagem e paralisações. Longe de ser uma medida arbitrária, o gesto vira um jogo que corria desde o início do governo, em 1998: o Estado, único acionista, não controlava a corporação, que muitas vezes tomava atitudes francamente contrárias às orientações oficiais.

 

Encontro Mundial

O comício da avenida Bolívar marca também o encerramento do chamado Encontro Mundial de Solidariedade à Revolução Bolivariana, promovido por diversas entidades, que agrupou cerca de 15 mil pessoas, incluindo mais de 500 estrangeiros de 57 países, entre quinta-feira (10) e domingo (13). Realizado no complexo hoteleiro do Parque Central – imenso conjunto de concreto interligado por rampas, passarelas e mezaninos, englobando auditórios, teatros, hotéis, centro de compras e restaurantes – o evento não teve como ser ignorado pela mídia, totalmente hostil ao governo (mais informações podem ser encontradas em www.forobolivariano.org.ve). Dois fatos talvez expliquem essa menção, que em outra situação não ocorreria.

 

O primeiro deles é a presença de diversas personalidades internacionais do mundo político e intelectual, como Evo Morales, Daniel Ortega, Ignácio Ramonet, Bernard Cassen, Tariq Ali, Perry Anderson, István Meszáros, Armand Mattelart, Jean Pierre Chevenmant, representantes de organizações como os zapatistas, Mães da Praça de Maio, MST, dentre outros (convidados, o PT e a CUT sequer deram resposta).

 

O segundo é o fracasso da manifestação marcada pela oposição, na noite de 11 de abril, data do golpe, no Parque Cristal, luxuosa área empresarial, na parte leste da cidade. Tendo, em outras ocasiões, juntado um público equivalente ao comício chavista, o leque de forças que tentou derrubar o governo conseguiu reunir apenas 4 mil ou 5 mil pessoas, exaustivamente convocadas pelas TVs e jornais.

 

Ofensiva

“A população percebeu que boa parte da crise econômica foi agravada pela ação dos golpistas”, garante Gilberto Gimenez, assessor em Miraflores.

Por conta disso, é nítida a percepção de que o governo rompeu a defensiva de meses atrás e desafia abertamente a direita. Os principais mentores do golpe, Pedro Carmona, empresário que chegou a assumir a Presidência por algumas horas, e Carlos Ortega, ex-alto funcionário da PDVSA que há décadas dirigia a Central de Trabalhadores da Venezuela (CTV), fugiram para o exterior. Vários outros estão sendo processados, após meses de tentativas de negociação e pesados ataques da mídia.

 

Iraque e globalização

O Encontro Mundial também definiu um claro protesto contra a agressão norte-americana ao Iraque. Tariq Ali, intelectual paquistanês radicado em Londres, definiu bem os dilemas das forças que invadiram o país árabe: “Alegaram que o Iraque tinha armas de destruição em massa.

Mentira, e a maior prova é a ocupação imperial. Os Estados Unidos só atacaram por saber que não havia tais artefatos, caso contrário pensariam duas vezes em fazê-lo”.

Na densa pauta de exposições e debates, abertos ao público, não faltaram temas como democracia popular, meios de comunicação, economia, petróleo, reforma agrária, globalização, direitos humanos, minorias, cultura e Alca.

 

Paz armada

Voltemos à avenida Bolívar. O discurso de Chávez, após duas horas e meia, está chegando ao fim. Ele enxuga o suor do rosto e bebe um gole d´água. Já falou de um de seus temas prediletos, a vida de Bolívar, “o Libertador”. Falou da guerra, da Alca, de sua amizade com Fidel Castro, da Constituição Bolivariana, do golpe e do ex-presidente chileno, Salvador Allende. Lembra que, a exemplo do governo da Unidade Popular, a Venezuela também realiza uma revolução pacífica, rumo ao socialismo. “Mas”, ressalta, “enquanto a revolução chilena era pacífica e desarmada, a nossa, com o apoio do exército, é pacífica e armada”.

O presidente ainda anuncia a realização de um encontro continental de comunidades indígenas, a ser realizado em julho. “Depois, chamaremos os sem-terra de diversos países. E as mulheres, os jovens, os trabalhadores. A Venezuela deve se tornar um palco mundial de debate, aberto a todos os que lutam contra a opressão da economia de mercado”, afirma.

 

Comentário

No fim, sobra um comentário para o Brasil. “Aquele povo, heróico como o venezuelano, também busca se levantar e elegeu um operário para a Presidência da República”. Segundo ele, Lula afirmou na posse “não poder descansar enquanto existir algum brasileiro passando fome”. Chávez toma mais um gole d’água e ressalta:

 

“Lula bem sabe que para que isso aconteça há que se fazer uma revolução. Não há outro caminho para nós da América Latina. Coisa diversa seria investir num trajeto que nos leva à derrota e à mentira.

 

O público delira. Chávez ainda entoa outra canção na úmida noite caraquenha, antes de descer exultante da tribuna.

 

(Por Maringoni/ Agência Carta Maior).