Diários de Motocicleta, de Walter Salles Jr., encanta, diverte e emociona. Mostra o lado quixotesco de Che Guevara, por ele mesmo assumido. Ser quixotesco é bonito quando se trata da firmeza e correção dos ideais. É trágico quando isola a luta socialista de pessoas comuns, como Sancho Pança.

A produção mostra a viagem que os jovens Ernesto Guevara e Alberto Granado fizeram juntos em 1952, de uma ponta a outra da América espanhola. Logo no início do filme, Granado mostra a Guevara o trajeto da viagem num mapa. Ele vai do Chile à Amazônia peruana, passando ao largo de um grande território que não foi incluído no caminho. 

Trata-se do Brasil. O gigantesco pedaço da América que foi colonizado por portugueses é solenemente ignorado pela dupla aventureira. Nada a estranhar. Também pouco sabemos sobre a parte americana colonizada pelos espanhóis. Daquele lado de nosso semi-continente, como no lado de cá, é mais fácil que olhos e ouvidos estejam atentos à Europa e aos Estados Unidos do que aos vizinhos. Coisas de quem vive na periferia. Enxergamos o centro. Distante, rico e diferente. Estamos cegos para o lado pobre e semelhante, que fica próximo de nós. Mas se um dia quisermos superar as diferenças entre centro e periferia, teremos que começar nos entendendo por aqui, entre os americanos cá de baixo. E também, pelo lado de lá do Atlântico, já que somos descendentes da tragédia africana. Todos com os olhos fixos na luta socialista.

No que diz respeito ao lado de cá, o filme de Salles Jr. faz sua parte. Mostra o primeiro contato do futuro líder da revolução cubana com a pobreza e a injustiça e com a produção de marxistas nativos da região, como o peruano Mariátegui. Isso incomoda a nós, socialistas e internacionalistas, mais informados sobre Comuna de Paris, a Rússia revolucionária ou a social-democracia européia do que sobre as lutas dos indígenas e povos latino-americanos.

Por outro lado, aborda o aspecto contraditório da militância do mais popular líder socialista latino-americano. Pouco antes de partir para a viagem, Granado compara sua motocicleta com o cavalo Rocinante, de Dom Quixote. Guevara chama Granado de gorducho. Portanto, já temos Rocinante e alguém para o papel do fiel Sancho Pança. Representar Dom Quixote cabe a Ernesto. 

O lado Sancho Pança de Fidel
Os acontecimentos ao longo da viagem confirmam a natureza quixotesca da dupla. Ernesto é sempre franco, correto e sonhador. Granado é malicioso, pragmático e dissimulado. Usa de artifícios para obter possíveis auxílios em comida, abrigo ou dinheiro. Ernesto é estudante de medicina. Quando encontram um senhor de quem esperam obter abrigo e comida, este mostra a Ernesto um caroço que lhe apareceu no pescoço. Guevara diz que se trata de um tumor. Granado protesta, dizendo que o diagnóstico é prematuro. Tem medo de assustar o homem e perder a hospedagem. É exatamente isso o que acontece depois que Ernesto insiste em confirmar seu diagnóstico. Granado diz que nem sempre se deve dizer toda a verdade a uma pessoa. Não só por razões pragmáticas. Também por motivos humanitários.

Em outro momento, Ernesto insiste em desrespeitar as regras da clínica para tratamento de leprosos onde vão trabalhar, em plena selva amazônica. Não usa luvas para tratar os doentes e não freqüenta a missa. Isso transforma a madre superiora, dirigente do local, em sua inimiga. Mas, ganha os corações dos pacientes. Todos pobres, indígenas ou negros. Guevara é atrapalhado com as mulheres, não sabe dançar e sua ingenuidade o coloca em apuros. Granado seduz as garotas que encontra no caminho, dança bem, deita com prostitutas e tira Ernesto de algumas encrencas.

Assim, o perfil quixotesco da dupla aparece como uma combinação contraditória entre o voluntarismo heróico de Ernesto e a bondade maliciosa e “pé no chão” de Granado. Uma contradição que faz parte da própria atuação política do Che e da militância socialista em geral. Como transformar a vontade revolucionária do militante em ações transformadoras, protagonizadas por pessoas comuns?

Em 1964, Che Guevara escreveu uma carta renunciando aos postos governamentais que tinha em Cuba. Estava deixando a ilha para lutar pela revolução socialista em outras regiões. Na carta, referiu-se a si mesmo como um moderno Dom Quixote à procura de gigantes para combater. Uma imagem bonita e problemática. Guevara deixou Cuba, entre outras coisas, por desconfiar das intenções imperiais da União Soviética. Fidel também não gostava dos soviéticos, mas seu lado Sancho Pança acabou por fazê-lo adaptar-se à situação em nome da sobrevivência do novo regime na ilha, isolada pelo embargo norte-americano. O mesmo senso de adaptação que o fez trocar seu anticomunismo de antes da revolução pela defesa cega do stalinismo, como se este fosse o socialismo.

Mirar nos gigantes e acertar nos moinhos
Guevara foi para o Congo, numa ação completamente desastrada. Não conhecia a região, não conhecia o povo, não falava sua língua, mal distinguia as diferenças entre os grupos políticos do país. Tinha apenas uma arma nas mãos e uma teoria na cabeça. A de que bastaria um grupo de guerrilheiros bem treinados, convictos ideologicamente e de moral revolucionária firme para desencadear um processo revolucionário entre a população pobre. Algo que deu certo em Cuba por uma série de condições muito particulares, que não se repetiriam nem no Congo, nem na Bolívia, para onde Che foi e repetiu a campanha desastrada da África. Desta vez, resultando em seu assassinato cruel e traiçoeiro.

A morte de Guevara foi obra do exército boliviano, sob ordens da CIA. Mas foi facilitada pelos erros cometidos pelo Che, movido por seu heróico entusiasmo revolucionário. É por isso que a indústria do consumo encontra facilidade em utilizar a imagem do revolucionário argentino como produto comercial. Ele representa a bonita rebeldia de um Quixote que sabe que é preciso combater os gigantes. Só que o lado ruim do quixotismo é mirar nos gigantes e acertar moinhos de vento. Os jovens se identificam com a vontade de mudança de Che. Isso é bom. Mas é fácil perder o entusiasmo quando a realidade não se mostra dócil às investidas da vontade. Foi o que aconteceu no Congo e na Bolívia. Aí, a rebeldia pode isolar-se em atitudes individualistas. Virar uma caricatura que assusta ou diverte as pessoas comuns. É o famoso “idealista”. Respeitado… e sozinho.

É só lembrar a imagem do jovem Ernesto encostado a uma parede, enquanto todo mundo dança na festa. Esta é uma cena que caracteriza muitos militantes socialistas. A dificuldade em fazer parte do cotidiano da maioria. Não é o caso de convocar a militância a tomar aulas de dança. Mas, é um chamado a pensar que, ou a revolução será feita e defendida pela maioria das pessoas comuns, ou será derrotada. Che é grande e sua memória deve ser respeitada. Mas, Sancho Pança precisa mais do que isso. Precisa sentir a seu lado um Quixote preparado para atacar os gigantes, mas que não viva a confundi-los com moinhos de vento.