Para Ricardo Antunes, especialista em precarização do emprego, trabalhador tem a sensação de que “no deserto das ruas ele é a peça que não conta”.
[Por Liana Melo para Colabora] Combinando rigor na pesquisa sociológica com um compromisso intransigente com os trabalhadores, Ricardo Antunes, professor da Unicamp e autor, entre outros títulos, de “O Privilégio da Servidão – o novo proletariado de serviços na era digital”, é um dos maiores pesquisadores brasileiros do mundo do trabalho. A pandemia do novo coronavírus evidenciou o que o cientista social vem chamando, há alguns anos, de “burguês-de-si-próprio” e “proletário-de-si-mesmo” – uma legião de trabalhadores e trabalhadoras que, em pleno século XXI, viraram “escravos digitais”.
É nas ruas praticamente vazias em época de isolamento social que a ‘uberização’ do trabalho vem mostrando seu lado mais cruel: de carro ou de bicicleta, e, na maioria das vezes, sem equipamentos de proteção, como luvas e máscara, esses trabalhadores não têm a possibilidade de evitar as ruas. Ao contrário. É nas ruas, circulando o dia inteiro, que eles enfrentam o flagelo do desemprego. A projeção para um mundo pós-vírus é de uma brutal recessão global, onde o léxico ‘uberização’ vai dominar o mundo do trabalho.
#Colabora – Em seu livro “O Privilégio da Servidão”, o sr. chama a atenção para o fato de “estarmos vivenciando o crescimento exponencial do novo proletariado de serviços”. Em que medida a pandemia do novo coronavírus amplificou a escravidão digital?.
RICARDO ANTUNES – A pandemia, pelo sentido devastador que ela tem, e por ela estar ocorrendo em um período marcado por uma profunda devastação dos direitos do trabalho e de redução do crescimento econômico, tende a ter como consequência o aumento brutal do desemprego. Ou seja, a precarização ainda mais profunda da classe trabalhadora. A primeira consequência desta economia e deste modo de vida destrutivo, se não for combatido em profundidade, será o aumento da devastação social, da piora nas condições de trabalho e da vida da classe trabalhadora. Aqueles que continuarem no trabalho ‘uberizado’ terão uma jornada ainda mais intensificada, porque uma grande parte deste contingente vai perder o trabalho. Estamos projetando uma situação desesperadora não só no Brasil, mas no mundo todo, especialmente no Sul do mundo, onde os níveis de precarização são ainda mais acentuados do que aqueles existentes no Hemisfério Norte.
#Colabora – Em “Você não estava aqui”, o cineasta britânico Ken Loach começa seu último filme com a seguinte frase: “Prefiro ser meu próprio chefe”. Ele trata no filme da desigualdade social no mundo ‘uberizado’. O sr. acredita que este trabalhador ainda acredita que está virando um empreendedor?
ANTUNES – Só se torna uberizado’’ o trabalhador ou a trabalhadora que perdeu o emprego. Antes de ‘uberizarem-se’, todos os trabalhadores que entrevistei ou eram engenheiros, motoristas de caminhão, metalúrgicos… É impressionante o leque de profissões. Todos, com raras exceções, estão desempregados, ainda que existam alguns que usem o trabalho ‘uberizado’ para complementar a renda. No trabalho ‘uberizado’, a jornada é intensa, podendo chegar a 14 horas diárias. Alguns dos trabalhadores que entrevistei para o meu livro relataram que chegam a ganhar cinco reais por cada refeição entregue a domicílio. Na medida em que o trabalhador ou trabalhadora está na condição de desemprego, qualquer dinheiro que entra é bem-vindo. É aí que o ideário manipulador do empreendedorismo pega. Você é autônomo, trabalha se você quer; se não quiser, não trabalha. Aos poucos, o trabalhador ‘uberizado’ percebe que a falácia do empreendedorismo não se sustenta. Nem mesmo a velocidade da moto, ou da bicicleta, este trabalhador consegue controlar, porque ele precisa correr – e muito. Caso contrário, a mercadoria não será entregue no prazo exigido. Num contexto de crise como o atual, num capitalismo extremamente destrutivo e que dilapida a força de trabalho, esse cenário de um mundo cada vez melhor está cada vez mais distante. A menos que haja uma mudança profunda do modo de vida.
#Colabora – Como deve ser conviver com a constatação de que nem mesmo o afastamento social é uma opção em tempos de pandemia como a do coronavírus?
ANTUNES – A percepção de que você não tem nada é brutal. Se você for, por qualquer motivo, impedido de trabalhar, a primeira manifestação é profundamente contraditória. Eu quero fazer isolamento, porque eu não quero pegar o coronavírus, não quero contaminar a minha família. Mas, ao mesmo tempo, eu tenho que sair para trabalhar. Com a pandemia, estes trabalhadores estão na ponta pior, no degrau mais próximo do inferno. Eles não têm previdência social, não tem salário, não têm direitos. E como, muitas vezes, não têm mais nem contato com o consumidor, que está com medo de contaminação, esses trabalhadores não são mais nem alvo de empatia. Eles perderam o mínimo de sociabilidade. A sensação que esse trabalhador tem é que no deserto das ruas ele é a peça que não conta. O risco desse trabalhador se contaminar não é levado em conta. O que resta para ele é trabalhar sem direito nenhum. Só há uma situação pior do que essa: o próprio desemprego.
#Colabora – A pandemia do novo coronavírus evidenciou ainda mais a vulnerabilidade dos terceirizados, dos informais e daqueles trabalhadores que atuam em aplicativos. Como o sr. analisa essa situação?
ANTUNES – Temos alguns movimentos que são possíveis arriscar. O primeiro deles é com relação aqueles que ganharam e ganham até hoje fortunas. Essas pessoas vão querer redesenhar o mundo a sua imagem e semelhança. Ou seja, a situação acalmando, essas pessoas vão querer colocar em funcionamento o “moinho satânico” (a expressão foi criada pelo austríaco Karl Polanyi ao escrever sobre a reconstrução da expansão da economia de mercado na Grã-Bretanha do século XIX). A questão que se coloca é que o trabalhador ou trabalhadora que perderem seus empregos terão que aceitar um trabalho ainda mais precarizado. O que se avizinha é um cenário próximo ao da Índia, país asiático onde milhares de pessoas vivem sem trabalho. Esse é o cenário que se coloca no quadro brasileiro. Não temos sequer direitos trabalhista preservados, como em alguns países da Europa do Norte e escandinavos, onde a população tem ainda um estado de bem-estar social. Aqui, nós temos a perspectiva do vale-tudo.
#Colabora – Como o sr. imagina o Brasil pós-vírus?
ANTUNES – Temos uma burguesia que só pensa em retomar o saque. É o caso, por exemplo, de empresários, como o grotesco dono da Havan, Luciano Hang, que se autointitula “Véio da Havan”. Ele anunciou que vai demitir 22 mil trabalhadores, mas que, para ele, está tudo ok, porque ele vai de avião para uma praia. No Brasil, temos uma burguesia predatória que pensa, exclusivamente, no quanto está perdendo e quando vai voltar a ganhar dinheiro. É em momentos como o atual que precisamos parar e refletir: o trabalho é um valor dotado de sentido ou é um meio para sobreviver? É possível que o trabalho, qualquer trabalho, possa continuar existindo sem direitos? É imperativo pensar que não é mais possível nenhum trabalho sem direitos. Todos os trabalhos têm que ter direito.
#Colabora – Dizem que em momentos de crise é a hora de dar uma parada e repensar tudo. O sr. concorda com essa máxima?
ANTUNES – A economia atual é voltada exclusivamente para, no máximo, 3% da população. Esse pequeníssimo e irrisório contingente, da alta burguesia global, ganha o equivalente ao que produz 60% a 70% da humanidade. No caso brasileiro, cinco a seis indivíduos, aqueles que estão na lista dos mais ricos, ganham o equivalente ao que rendimento somado de cerca de 100 milhões de pessoas. O sistema financeiro, por sua vez, continua ganhando, mesmo em tempos de crise, seja endividando o Estado ou a população. É o capitalismo financeiro, que nada mais é do que um dinheiro parasitário, que comanda o mundo. Isso coloca um desafio crucial: precisamos reinventar um novo modo de vida. Como ficará a questão ambiental? Estamos obrigados, neste momento, a pensar em outro modo de vida. Ou seja, tem sentido produzir mercadorias destrutivas? Faz algum sentido trabalhadores e trabalhadoras trabalharem 12 horas, ou até 14 horas por dia, e uma outra centena de milhares de pessoas não terem nem emprego e nem trabalho? O capitalismo contemporâneo está focado numa produção destrutiva. Como cientista social, estou convencido de que precisamos reinventar um novo modo de vida, onde a riqueza terá que deixar de ser dominante e a produção no sentido coletivo e humano da vida venha prevalência.
#Colabora – Seja ortodoxo ou heterodoxo, os economistas de um modo geral concordam que vem aí uma recessão global profunda. O que sr. acha?
ANTUNES – Qualquer perspectiva dentro da lógica atual e, em particular, nessa fase mais recente que chamamos de neoliberal e financista, não podemos imaginar como sair dela com alguma coisa positiva. Mas algumas questões são vitais. Dentro deste contexto de crise, os recursos do estado não podem ir para as empresas. Esses recursos precisam ir para a classe trabalhadora. Temos que acabar com essa ideia de parte dos economistas que só falam em superávit fiscal. Esse léxico nefasto do neoliberalismo, desumano, antissocial. Para que precisamos de superávit fiscal, para garantir o lucro dos bancos? Mas quem são os bancos, ou seja, três ou quatro famílias no Brasil ou uma dezena no mundo controlando a riqueza do mundo.