Nos últimos dois meses, 27 mil ações trabalhistas reivindicam direitos que foram desrespeitados em demissões na pandemia
Nos últimos dois meses 27.986 das 139.816 ações protocoladas na Justiça do Trabalho tratam de demissões, que citam Covid-19, coronavírus ou pandemia. O número representa 20% do total de processos no período de 11 de abril a 9 de junho. Os dados são inéditos e foram levantados a partir da análise do Termômetro Covid-19 na Justiça do Trabalho, desenvolvido na parceria do site Consultor Jurídico com a instituição de educação Finted e a startup Datalawyer Insights.
De acordo com dados, se forem analisadas as ações trabalhistas desde o começo da pandemia no país, em março, já foram movidas 35.699 ações trabalhistas relacionadas à Covid-19. O valor total das causas ultrapassa R$ 1,99 bilhões, equivalente a uma média de R$ 55.715 por processo.
Das 27.986 ações nos últimos dois meses apenas 8,47% foram julgados procedentes, 0,88% parcialmente procedente e 8,7% tiveram acordo homologado. Enquanto ainda estão pendentes 78.04% dos processos, ou seja, 21.840.
Insegurança
Segundo a análise do diretor-técnico do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), Fausto Augusto Junior, esse número de ações trabalhistas não se deve somente ao aumento do número de demissões durante a pandemia – e à falta de pagamentos dos direitos trabalhistas –, mas também pela confusão criada pelas Medidas Provisórias (MPs) 927 e 936, que alteram dispositivos da legislação trabalhista e correm no Congresso Nacional.
“Como você está mexendo em uma legislação que foi historicamente consolidada, isso já aconteceu na reforma trabalhista de 2017, você vai colocando todo sistema de relação de trabalho em crise e de fato você vai criando insegurança jurídica. Quando as medidas provisórias aparecem isso se dá de maneira mais efetiva, até a Justiça se pronunciar isso vai levar um tempo. Isso causa muita insegurança.”
Entre as alterações geradas por medidas provisórias estão a redução pela metade o pagamento da multa do Fundo de Garantia npor Tempo de Serviço (FGTS), bem como férias e 13º salário proporcionais, com base na MP 927, e a redução de jornada ou a suspensão dos contratos de trabalho em acordos sem a participação dos sindicatos, permitidas pela MP 936. O texto da medida prevê que o acordo individual só seja possível para trabalhadores com salários de até R$ 3.135 (três mínimos) ou acima de R$ 12.202,00. Mas, segundo o diretor do Dieese, esse tipo de acordo também está sendo aplicado para essa ampla faixa intermediária de rendimentos, para a qual é exigido o acompanhamento das entidades representativas. Daí a quantidade de ações trabalhistas.
“De um lado insegurança para que algumas empresas implementem essas medidas e outras que implementam e erram, e outras que implementam e se aproveitam, inclusive, dessa instabilidade jurídica para fazer o que eles acham que tem que fazer e segura a bronca no judiciário depois”, explica Junior.
Culpa do governo
O economista explica que, no caso das empresas que não agem de má-fé, os processos trabalhistas se devem a erros nas interpretações das medidas provisórias ou mesmo à falência dos empresários, que não têm dinheiro para o pagamento das demissões.
Problema gerado, segundo ele, “por culpa” do governo de Jair Bolsonaro (sem partido) que implementou um programa para financiar a folha de pagamento que não funcionou, uma vez que poucas empresas conseguiram acessar, e não previu nenhum tipo de auxílio para pequenas empresa.
“Na cabeça desse governo a única coisa que o patrão tem que fazer é mandar o cara embora e não pagar os direitos, quando na verdade num momento que nós estamos a primeira política deveria ser manter o emprego. Se não manter o emprego você tem que garantir mecanismos que o sujeito receba o que de direito é, porque no caso do trabalhador, essas verbas de rescisão são para sobrevivência, precisa dela para encarar, inclusive, o enfrentamento da pandemia. O governo poderia ter medidas para mitigar isso”, aponta.
Má-fé
Já no caso de empresas que se aproveitaram da crise, fragilidade dos trabalhadores, que está com medo de perder o emprego, e das oportunidades que o governo coloca em especial com a MP 927 para deixar de pagar verbas trabalhistas, reduzir jornada ou suspender contrato sem acordo coletivo, a demora do sistema jurídico é a “aposta”.
“São ações trabalhistas que vão se arrastar e um dos motivos, inclusive, que uma das emendas que se colocou na 936, no Congresso Nacional diz respeito a correção dos passivos trabalhistas na Justiça. Então você alonga joga isso para frente que um dia o trabalhador talvez receba. Essa é aposta de várias empresas que trabalham esses movimentos de má-fé”, ressalta Junior.
O que fazer em caso de violações de direitos?
O advogado trabalhista e membro da Associação Brasileira dos Juristas pela Democracia (ABJD), Thiago Barison, pontua que o aumento das ações tendo por objetivo as dispensas, as suspensões de contrato e redução da jornada relacionadas a pandemia é “preocupante”. Para ele o cenário mostra um “fracasso” das medidas legislativas do governo Bolsonaro de manter os empregos e garantir minimamente a renda do trabalhador.
Gráfico do Termômetro Covid-19 na Justiça do Trabalho mostra a evolução dos processos trabalhistas que tratam de demissões na pandemia do coronavírus / Termômetro Covid-19 na Justiça do Trabalho (FintedLab, DataLawyer e ConJur)
Barison explica que em caso de violação de direitos, os trabalhadores devem em primeiro lugar procurar o sindicato da categoria para verificar se há alguma possibilidade de alguma medida coletiva, em segundo lugar judicializar a questão.
“A gente sempre orienta primeiro procurar o sindicato, procurar uma saída coletiva, porque aquele problema daquele trabalhador pode ser o problema de outros trabalhadores e a união de todas essas pessoas faz a força. É diferente quando a gente está tratando de uma questão puramente individual, nesse caso da covid-19 é mais provável que as questões sejam coletivas, porque a redução da jornada, suspensão do contrato e eventualmente a demissão vai sacrificar a um conjunto dos trabalhadores, por essa razão a gente acredita que o sindicato e a negociação coletiva pode amparar os trabalhadores.”
E no limite, ainda que haja negociação, o empregador descumprir as normas negociadas e a lei, deixar de repassar, por exemplo, o benefício emergencial de preservação de emprego e renda, deixar de pagar as verbas rescisórias, qualquer coisa do tipo. É necessário reparar essas violações e, geralmente, para fazer isso é uma ação judicial, podendo ser individual ou coletiva.
Mas o que o advogado trabalhista tem visto é uma “chantagem ou o trabalhador assina e concorda com a redução da jornada ou é dispensado” aí se vê que não tem negociação efetiva.
Saída
Segundo o diretor-técnico do Fausto Augusto Junior, a prioridade da tramitação das MPs 927 e 936 no Congresso Nacional deve ser a inclusão da participação do movimento sindical nas negociações nas medidas.
“Quando você coloca um sujeito, um individuo que a única coisa que ele tem é a força de trabalho e emprego pra negociar com a empresa, no limite sempre tem a prerrogativa de mandar ele embora, isso fragiliza muito a relação. Então eu acho que a principal mudança que se pleiteia é que você derrube a negociação individual e que a negociação passe a ser coletiva. Porque a negociação tem mais capacidade e mais autonomia, inclusive, e proteção para esses trabalhadores”, destaca.
Para o especialista está em jogo um embate entre as visões de relações de trabalho. Se a empresa poderá fazer o que quer ou um teremos um modelo de relação de trabalho que tenha negociação coletiva como princípio.