Mais de 1,5 mil pessoas participaram de debates sobre os enfrentamentos do direito à moradia em São Paulo. Desde quando saiu o resultado de que os estados brasileiros seriam sede dos megaeventos, remoções e mais remoções começaram a ser feitas por todo o país. Moradores dos mais variados estados estão se reunindo para que as remoções não sejam mais feitas. No texto abaixo você vai encontrar um relato de moradores de São Paulo sobre o caso:

Texto de Patrícia Benvenuti

Despejos, assistência precária do poder público e falta de informação sobre o destino de comunidades inteiras. Em todo o país, crescem as reclamações sobre violações do direito à moradia alavancadas por megaprojetos com vistas à realização da Copa do Mundo, em 2014, e das Olimpíadas, em 2016.

Em São Paulo, que será uma das sedes da Copa, a situação não é diferente, e o crescente número de despejos aumenta a preocupação de uma série de moradores e entidades. Para chamar a atenção sobre o assunto, movimentos sociais e organizações não governamentais promoveram, juntamente com a Defensoria Pública, a 3ª Jornada pela Moradia Digna. O evento ocorreu no último final de semana, na Pontifícia Universidade Católica (PUC) no Ipiranga, na capital paulista.

Com o tema Megaprojetos e as Violações do Direito à Cidade, as atividades reuniram 1,5 mil pessoas para debater e construir alternativas às comunidades que estão ameaçadas por intervenções urbanísticas. O integrante do Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos Luiz Kohara explica que a meta principal da Jornada é reunir especialista, a fim de discutir as questões comuns e propor alternativas de enfrentamento.

“O objetivo [da Jornada] é desvelar o que está por trás desses megaprojetos e debater com a população, principalmente com aqueles que estão sendo atingidos”, afirma o integrante do Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos Luiz Kohara.

O evento reuniu moradores, lideranças comunitárias, militantes do direito à moradia, especialistas e defensores públicos de vários estados, que participaram de seminários, debates e oficinas. Houve também atendimento jurídico às famílias de áreas onde foram realizadas as pré-jornadas, que serviram de preparação.

O integrante da Central dos Movimentos Populares (CMP) Benedito Roberto Barbosa explica que o tema foi escolhido em função da quantidade de despejos que já estão acontecendo na cidade, justamente em áreas onde estão projetadas megaobras.

“Nós estamos vendo que esses projetos, na verdade, estão sendo feitos para expulsar os moradores pobres e higienizar mais a cidade e atrair o capital imobiliário para essas regiões”, diz.

Entre as intervenções consideradas mais problemáticas estão o Parque das Várzeas do Tietê, conhecido como parque linear, na zona leste da cidade; o projeto Nova Luz, no centro; as operações urbanas Água Espraiada e Água Branca, na zona sul e zona oeste; e a construção do Rodoanel, que atinge, entre outros locais, o bairro de Brasilândia, na zona norte, e o município de Mauá, na região metropolitana.

A estimativa das organizações é de que entre 70 e 80 mil famílias sejam deslocadas em São Paulo em função de obras de urbanização. Só o parque linear e a Operação Urbana Águas Espraiadas devem acarretar, juntas, a expulsão de 25 mil famílias.

Na avaliação do defensor público Carlos Loureiro, “a Jornada é um espaço de conscientização de direitos e também um espaço de repercussão, que pretende chamar a atenção da opinião pública para os problemas de moradia, especialmente em relação aos megaeventos e às violações maciças do direito à moradia e direito à cidade que eles impõem”.

Insegurança

 Durante a Jornada, foram recorrentes as reclamações a respeito da falta de clareza sobre as obras. Um exemplo é o Projeto Nova Luz, que propõe a “revitalização” do centro da cidade. A presidente da Associação de Moradores e Amigos da Santa Ifigênia e da Luz (Amoaluz), Paula Ribas, explica que os moradores estão preocupados porque o projeto não dá garantias sobre a permanência das famílias na área.

“Só há pinceladas e comentários muito abstratos e gerais sobre quem continuará na região, mas não há a garantia. Nós estamos pedindo um cadastramento desde o ano passado, em setembro, e até agora não tivemos nenhuma resposta”, conta.

Paula argumenta que os moradores são favoráveis às melhorias no centro, mas estão insatisfeitos com o atual plano apresentado pela Prefeitura. O projeto, segundo ela, baseado em experiências europeias, não leva em conta a diversidade do bairro e seus problemas específicos, como o alto número de pessoas em situação de rua e dependentes químicos. O principal problema, aponta, é a ausência de diálogo para ouvir as sugestões de quem vive ou trabalha na área.

“Sabe qual é o tempo de cada morador pra debater um projeto na audiência pública? Três minutos de fala. Como a gente vai ter um diálogo democrático, com participação, onde o morador tem três minutos pra falar?  Eles [Prefeitura] estão impondo uma qualidade de vida para nós, e a gente quer participar disso”, defende.

Problema mundial

O andamento dos projetos de urbanização para a Copa do Mundo também preocupa a relatora especial
da Organização das Nações Unidas para o direito à moradia adequada Raquel Rolnik. Segundo ela, a relatoria tem recebido uma série de denúncias a respeito de despejos e outras violações do direito à moradia nas cidades. “Com as obras nós estamos produzindo mais sem tetos e mais gente sem casa do que se está conseguindo, a duras penas, construir como alternativa de moradia adequada para as pessoas”, afirma.

Ela afirma que o mesmo processo está acontecendo em outras cidades-sede como Rio de Janeiro, Porto Alegre, Belo Horizonte e Fortaleza, mas ressalta que a situação não é exclusividade do Brasil, e sim de todos os locais do mundo que recebem eventos e atraem, assim, grande quantidade de capitais. “Não tem megaprojeto sem megaoperação de despejo. Isso está atingindo milhares de pessoas em todo o mundo”, destaca.

A relatora também se diz preocupada com a falta de assistência relatada pelas famílias, que em geral recebem apenas a oferta de bolsas-alugueis e cheques-despejo, o que é insuficiente para conseguir uma moradia em local adequado. “Tirar as pessoas de onde elas vivem e colocá-las a 50 quilômetros de distância, na não-cidade, é alimentar a máquina de exclusão territorial e as ocupações em áreas de risco, porque é isso que vai acontecer”, prevê.

Ela destaca que não é contra a realização dos jogos, mas defende que os torneios deixem um legado positivo para as cidades, como o reassentamento de todas as famílias que se encontram em situação precária. “Se está cheio de capital internacional por aí, porque não pode financiar esse projeto [de moradia popular]?”, questiona.

Raquel prometeu ainda encaminhar as conclusões da Jornada para a ONU. No entanto, ela destaca que o mais importante é a organização em todos os níveis. “Se em cada uma das cidades pudermos organizar comitês e fazer uma luta nacional, nós poderemos influenciar nesses projetos”, pontua.

Estado de exceção

O defensor público Carlos Loureiro, que acompanha a situação das comunidades, também vê com preocupação a realização dos megaeventos na cidade. Segundo ele, as obras de preparação não estão levando em conta os direitos das populações atingidas. “Projetos como a [Operação Urbana] Água Espraiada estão sendo gestados dentro de um estado de exceção, de violação aos direitos. A legislação urbanística está sendo completamente ignorada”, afirma.

Loureiro analisa ainda que as intervenções urbanísticas mostram que o crescimento econômico verificado no país nos últimos anos não vem acompanhado de distribuição das riquezas.

“É importante frisar o acontecimento dos megaeventos dentro de um ambiente de crescimento econômico como uma ferramenta a mais de exclusão socioterritorial e de promoção de pobreza. Hoje nós temos mais recursos para promover desenvolvimento, mas estamos usando esse dinheiro para construir cidades mais injustas”, avalia.

O defensor destaca ainda a importância de levar os casos à Justiça, a fim de tentar garantir mais direitos às populações. Entretanto, ele destaca que a batalha judicial não é suficiente.

“É necessário não confiar demasiadamente na judicialização de conflitos urbanos. É uma ferramenta, mas é apenas uma ferramenta. O mais importante de tudo é fortalecer os movimentos sociais para que eles possam, de fato, fazer o enfrentamento e tirar os direitos do papel”.

Mobilização

Ao final da Jornada, mostrava-se consenso entre os participantes a necessidade de união e mobilização para resistir às violações de direitos.

Para Benedito Roberto Barbosa, da Central de Movimentos Populares, o momento ainda é de conquistar a conscientização dos moradores. “Quando chega o despejo, as pessoas não sabem exatamente o que está acontecendo. Elas têm entender que existe uma lógica articulada do capital imobiliário e do governo para tirá-las daí, que é uma coisa muito maior”, afirma o militante…

“Queremos mobilizar a população, para que se crie um fórum de debate dessas questões, e queremos que os movimentos estejam preparados para fazer esse enfrentamento”, completa o integrante do Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos Luiz Kohara.