(Lili Amaral)

“E a história humana não se desenrola apenas nos campos de batalha e nos gabinetes presidenciais. Ela se desenrola também nos quintais, entre plantas e galinhas, nas ruas de subúrbio, nas casas de jogos, nos prostíbulos, nos colégios, nas usinas, nos namoros de esquinas. Disso eu quis fazer a minha poesia. Dessa matéria humilde e humilhada, dessa vida obscura e injustiçada, porque o canto não pode ser uma traição a vida, e só é justo cantar se o nosso canto arrasta consigo as pessoas e as coisas que não tem voz…”

Ferreira Gullar

O poeta Ferreira Gullar não poderia ter sido mais feliz ao precisar a importância da ação cotidiana. Pablo Neruda, o poeta dos humilhados e oprimidos sempre colocou a exigência de estar na rua e no combate. Maiakovski, o poeta da revolução, sempre lutou pela idéia de liberdade presente em seus versos, em seu teatro, em seu cinema, em seus pôsteres e em seus gestos, como bem define Fernando Peixoto em biografia sobre o poeta. Gullar, Neruda, Maiakovski, assim como tantos outros não menos importantes, são a expressão desta arte revolucionária que parece sufocada em suas mais variadas expressões neste nosso mundo tomado pela sofreguidão do mercado.

Esta arte, que muitas vezes caminha na escuridão, é uma arma poderosa para os artistas que têm consciência das necessidades históricas de sua ação. Eles também promovem movimento e através de sua arte fomentam mudanças. E a cultura e seus interlocutores – que também sofreram os reveses do mercantilismo e da hegemonia imperial – estão contaminados pela efervescência gigantesca do debate que cresce no planeta e no Brasil a favor da vida. Queiram ou não a história tomou novo rumo no Brasil com a eleição de um operário, sindicalista e nordestino. Mais ela não se fará somente no gabinete presidencial da estrela vermelha do PT parafraseando Gullar.

Nós, profissionais da comunicação e formadores de opinião, discutimos a contra-hegemonia na informação. Mais esse movimento, essa construção da mudança, que está acontecendo em toda a sociedade já se realiza na cultura. É a Roda da Solidariedade, um espaço de discussão e propostas aberto a artistas e operadores sociais que valorizam diferentes expressões artísticas e culturais. O que se busca? “A construção de uma contra-hegemonia, a partir de outros sujeitos sociais, resgatando valores como solidariedade, justiça, igualdade, autonomia, autodeterminação e respeito à diversidade”, explicam seus idealizadores em nota. Citando Neruda, é um caminho entre os corações e as esperanças do povo.

Debates – Há seis meses artistas começaram  a se reunir na sede da Federação para Assistência Social e Educacional (FASE), no Rio, discutindo cultura e cidadania. Surgiu então a Roda da Solidariedade para despertar uma arte voltada para o social. O primeiro debate promovido no Rio, dia 28 de novembro, no Espaço Fundison, na Fundição Progresso, Lapa, que teve como tema “Um outro mundo é possível: Arte e Cidadania”, marcou o início dos trabalhos da Roda. Na mesa um trio de peso: Marcelo Yuka (ex-Rappa), Amir Haddad (Cia de Teatro Tá na Rua-RJ) e Guilherme Vergara (diretor da Divisão de Arte/Educação do Museu de Arte Contemporânea de Niterói, no estado do Rio de Janeiro).

O objetivo foi trazer o tema para o debate atual, pois o papel da cultura que ficou relegado nos Fóruns Sociais anteriores, terá agora seu devido espaço no Fórum Social Mundial (FSM) de 2003. E a Roda, nesse sentido, levanta a reflexão sobre a importância da luta por outras concepções e práticas artísticas culturais distintas da lei do mercado neoliberal globalizado. A Roda da Solidariedade analisa que para considerar o FSM como espaço de discussão de cultura é preciso superar a idéia de arte como mercadoria, “muitas vezes endossada involuntariamente por aqueles que combatem a lógica do mercado”. O grupo propõe então que o FSM favoreça a produção política da cultura encarando-a como sinal efetivo de politização. A Roda quer sim que se levante o questionamento inclusive da própria produção da cultura, procurando revelar assim outros modelos, outras mídias e outras formas de circulação.

A Roda da Solidariedade, esse movimento da cultura alternativa, já existe em outros estados e fora do país. No Rio, seus organizadores idealizaram um ciclo de debates e o próximo está marcado para 14 de janeiro. Estes debates, a serem feitos ao longo do ano, servirão de base para a realização de um Fórum sobre o papel do artista na sociedade no final de 2003. Um site está em construção e aqueles que estiverem interessados em se integrar a Roda o endereço eletrônico é rodasolidariedade@fase.org.br

Desafios –  Despertar as manifestações culturais do país em toda sua diversidade, retirar dos guetos a cultura alternativa utilizando-a como instrumento de transformação da sociedade. Disputar a hegemonia diante de uma produção artística e cultural vinculada ao mercado que valoriza o desempenho, a concorrência e o individualismo e gera alienação, passividade e  despolitização. É a tarefa e o desafio destes artistas engajados na construção de um mundo melhor. É valorizar a identidade e a história da população brasileira, redefinir os espaços para as manifestações artísticas derrubando as paredes que separam a arte da maioria da população, como diz o diretor da Divisão de Arte/Educação do Museu de Arte Contemporânea de Niterói, Guilherme Vergara. É ir mais fundo na disputa da expressão cultural e da informação nas periferias das cidades – tomadas pelas facções do tráfico
– como ressalta o músico Marcelo Yuka. É o movimento da transformação em que o engajamento é o comprometimento com o meio social, como afirma o diretor de teatro Amir Haddad.