Por Sérgio Domingues, setembro de 2004

Galvão Bueno citou Serginho, da seleção de vôlei, como exemplo. Não é. É exceção. Assim como Daiane. Ambos são negros e têm origem pobre. Já o talentoso Robert Scheidt soube aproveitar as oportunidades de uma origem menos dura. Os três juntos formam o retrato da desigualdade brasileira.

Cada copa do mundo ou olimpíada, é uma enorme oportunidade para que a grande mídia tente mostrar o Brasil como país destinado a ser vitorioso nos esportes. No caso do futebol, isso é verdade. Mas, as Olimpíadas mostram melhor o quanto o país tem poucas vitórias na educação e formação de seus jovens. Os esportes olímpicos exigem uma infância e adolescência dignas. Algo quase impossível para a grande maioria dos jovens brasileiros.

A mídia comemora a campanha brasileira em Atenas. Foi a melhor desde que o país participa dos Jogos. O Brasil ficou com 10 medalhas. O problema é que isso significa dez vezes menos do que Estados Unidos, primeiro colocado, com 103 medalhas. Não que haja algo errado em torcer por um bom desempenho das equipes nacionais. O problema é a forma como boa parte da imprensa utiliza essa torcida. Galvão Bueno é o campeão nesse tipo de jogo.

Na bela vitória da seleção masculina de vôlei, o locutor da Globo citou o jogador Serginho como exemplo, referindo-se a sua origem pobre. Daiane também é lembrada como exemplo de dedicação apesar das dificuldades financeiras e sociais.

Apesar de todo o esforço e talento de Serginho e Daiane, eles não são exemplos. São exceção. Daiane escapou ao destino de milhões de jovens que engravidam cedo ou têm que trabalhar para ajudar a família. Que não encontram empregos e, com sorte, conseguem ocupações sem registro em carteira e baixos salários. O mesmo pode ser dito de Serginho. Com o agravante de que ambos são negros. Uma faixa de cidadãos que sofrem mais com o desemprego, a falta de informação, de acesso à escola e desrespeito aos direitos.

Galvão quer tirar as diferenças sociais de cena
Negros e pobres costumam ter maiores chance em esportes mais populares. Principalmente, o futebol. Mas, mesmo este vem “embranquecendo” nos últimos tempos. O vôlei e a ginástica olímpica são dominados por atletas brancos e de classe média. É o caso de Robert Scheidt, no iatismo. O maior vencedor olímpico brasileiro é descendente de alemães. Antes de optar pelo barco à vela, praticava tênis e atletismo e é formado em administração pela Universidade Mackenzie. Trata-se de um grande talento, mas teve oportunidades negadas a milhões de outros brasileiros.

Mas, quando Galvão fala em exemplo tenta esconder tudo isso. Quer dizer que cada jovem abandonado a sua própria sorte nas periferias pode sair do desespero, da frustração e da falta de expectativas se tiver determinação e vontade. Com seu patriotismo cego, quer tirar as diferenças sociais de cena.

A recente divulgação de uma pesquisa da Fundação Seade sobre a cidade de São Paulo pode ajudar a entender o tamanho dos erros de Galvão. Os números mostram que a periferia concentra a maioria dos jovens. A subprefeitura de Perus, por exemplo, fica na região norte. Um pouco depois de Pirituba, onde Serginho foi criado. Lá crianças e jovens representam 30%. Estas subprefeitura, mais as de Parelheiros, Cidade Tiradentes, Guaianases e Itaim Paulista reúnem juntas uma população jovem que é o dobro da encontrada nas 5 subprefeituras que têm menos crianças e jovens. Pinheiros e Vila Mariana, estão entre estas últimas.

Os especialistas dizem que a concentração de população jovem nas periferias pode ser explicada pelas maiores taxas de nascimentos e maior proporção de mães com menos de 20 anos. Ou seja, muito provavelmente, o fenômeno está ligado à falta de informação e de acesso aos métodos anticoncepcionais. A afirmação combina com o fato de que essas subprefeituras estão entre as que têm menos de dez equipamentos culturais. Ou seja, faltam cinemas, centros culturais, bibliotecas. E considerando novamente as 5 subprefeituras com população mais jovem, a média de anos de estudo não chega a sete. Menos que o ensino fundamental completo.

Além disso, é na periferia que os jovens são alvo do maior desemprego. A Grande São Paulo tem 220 mil desempregados na faixa de 15 a 17 anos. Mas a situação é pior nos bairros distantes do centro. Na parte mais distante da região leste, por exemplo, a taxa de desemprego é de 23%. Quase o dobro da região central, que foi de 12%, em 2003.

Entre os negros, o desemprego atinge mais os jovens e o trabalho infantil, as crianças
Jovens pobres sem lazer, emprego, informação e esperança, concentrados em lugares esquecidos pelas administrações públicas. Tudo isso resulta numa combinação explosiva. Utilizando um exemplo da zona sul, a chance de jovens morrerem assassinados em M Boi Mirim é 19 vezes maior do que para os que vivem em Pinheiros. Mantendo a comparação entre estes dois bairros, descobrimos que em M´Boi Mirim, os negros ultrapassam os 50% dos moradores. Em Pinheiros, os moradores brancos representam mais de 90%.

É verdade que Daiane é de Porto Alegre. Mas, a realidade das grandes cidades são muito parecidas. Em 2001, nas seis áreas metropolitanas do Brasil que incluem Porto Alegre, as taxas de desemprego para negros e negras, entre 15 a 18 anos de idade variavam entre 17% e 23%. O dobro da média encontrada para a população adulta total, que era de 8%. É o que diz o artigo “Alcance e limites das políticas de identidade”, de Mary Garcia Castro, pesquisadora da Unesco – Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura (www.ibase.br).

O mesmo artigo mostra também que a taxa de ocupação das crianças e adolescentes entre 10 e 13 anos era de 9,2%, em 2001. Duas vezes maior que a taxa apresentada pelas crianças brancas, que era de 4,9%. Se o desemprego atinge mais os adolescentes negros, o trabalho infantil faz mais vítimas entre as crianças negras. Exatamente na idade em que Daiane iniciou sua carreira vitoriosa.

Daiane, Serginho e Scheidt merecem os parabéns. Mas, os dois primeiros são sobreviventes. Os três juntos formam o retrato da desigualdade brasileira que Galvão Bueno tenta esconder com seu patriotismo histérico.

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