Por Sérgio Domingues*
Há um ramo da mídia grande que não chama tanta atenção. Trata-se da indústria dos chamados best-sellers. É verdade que num país como o Brasil, em que a leitura não é incentivada, o setor é minúsculo em relação aos poderosos veículos de radio e TV. Mas é bom prestar atenção. Principalmente, quando se trata de livros que certamente se tornarão longas metragens do tipo que estouram bilheterias.
É o caso de “Inferno”, a mais recente obra do estadunidense Dan Brown. O livro está há 14 semanas na lista dos mais vendidos, ocupando sempre os primeiros lugares. Trata-se do sexto título do escritor e o quarto protagonizado pelo professor de simbologia Robert Langdon.
O pano de fundo é a primeira parte de “A Divina Comédia”, de Dante Alighieri. Langdon precisa decifrar as mensagens contidas na imagem de uma pintura de Sandro Botticelli. Trata-se da obra, intitulada “Mapa do Inferno” e inspirada no poema de Dante. Ela conteria a chave que permitiria desarmar uma bomba química instalada em algum lugar da Europa.
Basicamente, um cientista genial está convencido de que o planeta não aguenta mais a superpopulação. Seja em relação à produção de alimentos, seja a pressão sobre o meio ambiente, a humanidade estaria se aproximando de um colapso. Por isso, a solução seria se livrar de dois terços da lotação planetária. Oferecer à maior parte da humanidade uma visita antecipada ao inferno.
Como em suas outras obras, o autor mantém um bom ritmo de suspense, prendendo a atenção de quem lê capítulo por capítulo. Em meio a correrias e enigmas, o texto despeja conhecimentos sobre pinturas, esculturas, monumentos e construções históricas, principalmente em Florença e Veneza.
A trama é bem costurada e deve agradar a grande maioria de seus leitores. O que surpreende, no entanto, é a total aceitação da tese do cientista maluco. Na verdade, uma reedição das hipóteses do matemático e demógrafo do século 19, Thomas Malthus. Em sua famosa obra “Ensaio sobre o princípio da população”, ele dizia que a produção de alimentos não acompanharia o ritmo do crescimento populacional. Por essa e outras, o estudioso inglês era contra leis de assistência a pobres, por exemplo.
As teses de Malthus foram refutadas por Marx, na época, e pelo próprio desenvolvimento do capitalismo. Realmente, continua a haver muitos famintos no mundo. Mas não por falta de alimentos. Citemos o trecho de um texto de Ester Vivas sobre isso:
Segundo a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), atualmente, cultiva-se o suficiente para alimentar 12 bilhões de pessoas, e no planeta somos 7 bilhões. Há comida. O problema é: em mãos de quem está a comida? Os alimentos converteram-se em um instrumento de negócio por parte de umas poucas multinacionais da agroindústria que priorizam seus interesses empresariais em detrimento das necessidades alimentares das pessoas. Dessa forma, se não tens dinheiro para pagar o preço cada dia mais caro da comida ou acesso aos meios de produção, como terra, água e sementes, não comes. (Comer insetos para acabar com a fome?)
Além disso, se o meio ambiente já não nos aguenta não é porque nos espalhamos feito uma praga pelo planeta. A raiz do problema está em um sistema que prioriza o lucro. Que só sabe funcionar através da superexploração dos recursos naturais e da força de trabalho da grande maioria de nossa espécie.
O final da trama de Brown praticamente obriga a uma continuação. Mas, neste livro, em momento algum o autor coloca em dúvida a ultrapassada tese de seu vilão. O próprio Malthus é citado sem que nenhuma avaliação crítica sobre suas conclusões seja feita. O herói Langdon apenas se recusa a aceitar a solução defendida por ele.
O resultado da leitura tende a ser uma naturalização o capitalismo e sua transformação em única possibilidade para nossa espécie. Buscar alternativas seria coisa de malucos. Só nos restaria conviver com o caos da melhor maneira possível. Ou seja, “se o inferno é inevitável, relaxa e torra”.
*Sérgio Domingues é sociólogo e autor do blog Pílulas Diárias.