Cidade de Deus já atraiu um público de mais de 3,2 milhões de pessoas no país. O filme é considerado o maior sucesso brasileiro dos últimos dez anos. Na época de seu lançamento escrevi um artigo criticando o filme basicamente por ter deixado de lado o contexto social que gerou e alimenta a violência do bairro carioca.

Essa crítica não tinha nada de original. Várias opiniões mais capazes que a minha apontaram o mesmo problema. Meirelles respondia a essas críticas dizendo que fez um filme e não uma tese sociológica. Na entrevista à Época ele voltou a dizer o mesmo e talvez seja hora de encarar essa questão.

A idéia de distanciamento crítico de Brecht já era. O negócio é emoção

Vamos aos trechos da entrevista. Em um dado momento Meirelles diz que “que Brecht prestou um desserviço à humanidade ao cunhar o jargão distanciamento crítico. A paixão é tão responsável pelas transformações quanto a razão. (…) penso que o lado emocional e envolvente do filme, que para alguns parece pejorativo, foi o que fez a diferença aqui.”

A concepção de “distanciamento crítico” a que se refere Meirelles foi criada pelo dramaturgo alemão Bertold Brecht. Seria um efeito em que a trama causa emoções no espectador sem que este perca seu senso crítico. É por isso, por exemplo, que nas peças de Brecht o patrão tem cara, roupa e corpo de patrão. O operário, de operário, e assim por diante. Recursos como esses impediriam que o espectador se envolvesse de tal maneira com o jogo cênico que perderia a capacidade de julgar objetivamente a ação.

Cidade de Deus realmente está longe desse modelo. Lembro que durante a exibição do filme de Meirelles fiquei bastante animado com o ritmo, o enquadramento, a fotografia, a trilha sonora, a narrativa circular e, claro, com a qualidade do elenco. Mas, depois de sair do cinema minha companheira chamou-me a atenção para aspectos discutíveis no filme. Conversas com outras pessoas reforçaram esses aspectos. E acabei por fazer um artigo criticando a obra. Quer dizer, o distanciamento crítico só veio depois, não durante o filme. Além disso, veio com a ajuda de conversas e discussões com pessoas com preocupações sociais. Elas me alertaram para as interpretações racistas, conservadoras e distorcidas a que o filme poderia levar sobre a realidade da periferia das grandes cidades brasileiras.

Impossível distanciamento crítico com Ratinho, Cidade Alerta, comerciais, novelas

A pergunta é: quantas das mais de 3 milhões de pessoas que assistiram ao Cidade de Deus tiveram essa oportunidade de se distanciar? Esses 3 milhões de espectadores fazem parte dos mais de 50 milhões que assistem TV todos os dias. São expostas a manifestações que estão longe de qualquer distanciamento crítico. Por exemplo, o Ratinho e seus discursos virulentos. Programas como Cidade Alerta, Repórter Cidadão, Brasil Urgente. Novelas cheias de intrigas, vilões, galãs e beldades. Os comerciais com carrões, mulherões e homenzarrões. Tem alguma coisa de distanciamento crítico nisso tudo? De jeito nenhum. É pura aproximação hipnótica. E o jornalismo da Globo? Esse então é mais sutil. O distanciamento crítico já vem pronto para usar. No Jornal Nacional, são as caras certas e frias de Bonner e Bernardes. No Jornal da Globo, é o rosto de louça da apresentadora, Padrão até no nome. Todo o visual gelado é coerente com a embalagem pretensamente neutra que escolhe dados e abordagens sob medida para desqualificar opiniões diferentes e omitir contradições.

Em resumo, imagino que num país dominado pela telinha da Globo e assemelhados e por uma indústria especialista em produzir lixo cultural em grande quantidade, somente uma minoria teve a oportunidade e os meios de enxergar um contexto diferente daquele que o filme sugere.

A maioria é bombardeada pela TV, cinema e pela publicidade com imagens chapadas do bem e mal, do certo e errado. Mais do que isso, sofre a violência das grandes cidades. Está com medo. Nem o imaginário da grande mídia, nem a realidade brutal dão condições a qualquer olhar distanciado.

Mas aproveitemos esse aspecto da questão para seguir à frente com os trechos da entrevista de Meirelles.

Diminuindo a duração para não perder público. Foi-se o contexto

Perguntado sobre o que mais o incomoda em Cidade de Deus, o diretor diz ter sido “a falta de mais personagens não ligadas ao tráfico.” Pois aí que está. Um amigo me fez notar que o filme não mostra personagens pertencentes ao mundo do trabalho (com exceção de Mané Galinha que tentou ser cobrador). É verdade. Quem assiste ao filme sai com a impressão de que todos os moradores do bairro vivem de produzir e consumir drogas. Meirelles diz que isso aconteceu porque teve que cortar muitas cenas. Se mantivesse o tamanho original o filme “certamente perderia muito público”.

Meirelles admite que fez uma escolha. A de cortar o filme para não perder público. Tudo bem. O cara está fazendo filme comercial. Mas, a diminuição no tempo de exibição não implica necessariamente cortar cenas que dessem um contexto mais concreto e fiel à complexidade social de um bairro de periferia. Um bairro muito violento, é verdade. Mas que tem uma vida social. Tem trabalhadores e trabalhadoras, igrejas, associações de moradores, etc.

Não. A escolha foi de outra natureza. Na entrevista, o cineasta diz que “tinha o objetivo de fazer tudo claro e didático para o público brasileiro da classe média que vai ver filmes em shopping centers. Um filme é um filme, uma tese de sociologia é uma tese de sociologia.”

O filme não é uma tese de sociologia. Mas é uma tese

Ora, é claro que um filme não é uma tese de sociologia. O problema é que ele mesmo diz que há uma didática no filme. Que didática e essa? O que ela ensina sobre um lugar chamado Cidade de Deus? Que seus moradores se dedicam ao tráfico, morrem e matam por uma pisada no pé? Não é uma tese de sociologia, mas é uma tese.

Qual tese? A do senso comum. Aquela que está presente na cabeça da maioria das pessoas. A da violência intrínseca do mundo moderno. De uma consciência rendida diante da miséria e da injustiça. Que não quer impor soluções, mas acaba mostrando mundo cruel como ele é. Abrindo espaço para soluções autoritárias, como a “Rota na rua”, expulsão de migrantes, prisões cada vez maiores etc. Ficar no senso comum quer dizer abrir espaço para as soluções autoritárias. Então não tem essa de que “só estamos mostrando a realidade”. Cada filme, livro, poema, artigo, panfleto é um recorte da realidade. Tem responsabilidade pelo que mostra.

Aí alguém diria: “Mas o que você quer? Um filmão arrastado? Com discursos, análises, propostas?” Sou suspeito para falar, pois eu diria “É isso mesmo”. Mas felizmente para a humanidade não sou cineasta.

Ken Loach: combinando distanciamento com envolvimento

Vamos usar o exemplo de um cineasta dos bons. O inglês e marxista Ken Loach dirigiu Terra e Liberdade, que é sobre a guerra civil espanhola. O filme faz uma mistura entre distanciamento crítico e envolvimento emocional. Envolve o espectador com cenas emocionantes e de ação, mas não abre mão de utilizar episódios que estimulam a reflexão. É o caso da cena que mostra uma assembléia em que membros da milícia republicana discutem sobre a necessidade ou não de confiscar terras de pequeno proprietários. Há outras cenas como essas, mas não comprometem a dinâmica da narração e informam minimamente o espectador sobre o que estava em jogo na guerra civil espanhola. Ninguém vai sair do cinema especialista na questão, mas desperta o interesse.

Mas aí é o caminho difícil. Tem menos mercado. Coisa pra revolucionário, etc.

Mas então o que é Cidade de Deus? Em outro trecho da entrevista, Meirelles diz que “Cidade de Deus é um produto (…). Se é uma obra de arte, não sou eu quem dirá. Arte e produto não se excluem.”

Que o filme é um produto é inegável. Quanto a ser obra de arte, minha competência para afirmar o que seja tal coisa é insuficiente. Saber se arte e produto não se excluem, então, nem se fala. O que arrisco dizer é que o filme de Meirelles não é uma obra de arte.

Um produto estético que não é arte é entretenimento

Em minha opinião Cidade de Deus encaixa-se naquela classificação que somente os norte-americanos com sua poderosa indústria cultural poderiam criar: o entretenimento. Muita ação, velocidade, emoções contrastantes etc. Uma verdadeira montanha russa de sensações. É só lembrar dos vários momentos durante a exibição do filme em que engasgamos no choro, caímos no riso, sentimos raiva, ficamos assustados. Na verdade, Meirelles se revelou um excelente discípulo de Tarantino (não à toa, Spielberg o procurou para saber como ele fez a filmagem da perseguição à galinha).

Resumindo a embrulhada, Meirelles está sendo coerente ao considerar o distanciamento crítico brechtiano como um mal. Não é fácil fazer um filme com a qualidade que Meirelles fez. Mas suas escolhas estéticas cedem à facilidade do senso comum, do conformismo com a realidade social em nome do sucesso de público. Nada a ver com a produção estética que procura despertar a crítica e a ação nas pessoas, mesmo que isso implique bilheterias modestas.

Fevereiro de 2003