Alexandre Stockler fez de “Cama de Gato” uma denúncia da violência e impunidade entre jovens da classe média. Mostra a miséria de sentido que o capitalismo representa em suas vidas. A esquerda também deve denunciar essa situação, mas evitando armar novas camas de gato.
Comentar “Cama de Gato” é complicado porque sua exibição deve ficar restrita a poucas salas de cinema. Mas, o tema do filme provoca questões importantes demais para passar em branco.
O filme começa como um documentário. A câmera e o microfone da equipe diretor Alexandre Stockler recolhem depoimentos de jovens em bares e esquinas da noite urbana, falando sobre baladas e violência.
A parte ficcional tem início com a cena de três adolescentes tentando acessar a internete sem sucesso. Cainan Baladez é Gabriel, Rodrigo Bolzan é Chico e Caio Blat é Cristiano. A situação parece simbolizar a situação remediada da classe média a que os personagens pertencem. Usam conexão discada, caminho cada vez mais complicado para quem não pode pagar uma conexão através de banda larga. Ou seja, eles podem se conectar com o mundo através da tecnologia, mas de modo precário e incerto. Cristiano, por exemplo, diz que eles são “muito ricos para serem pobres e pobres demais para serem ricos”.
Isso não os priva de pequenos privilégios. Eles não precisam trabalhar, estudam durante o dia, utilizam os automóveis dos pais, participam de festinhas com muita cerveja e alguma cocaína etc. Cada um dos personagens parece estar bem encaminhado na vida. Dois são calouros na faculdade e Cristiano está fazendo cursinho pré-vestibular. Também têm tempo suficiente para imaginar coisas e experimentar sensações. É o que fazem ao tramar um plano para transformar em sexo grupal um encontro de Cristiano com uma garota (Rennata Airoldi) que ele acaba de conhecer. O plano não dá nada certo. A garota reluta em participar da experiência e acaba sendo estuprada pelos três. A confusão acaba envolvendo a mãe de Cristiano e, no final do filme, os adolescentes acabam às voltas com três cadáveres, um deles “morto” duas vezes! Em nenhum momento passa pela cabeça dos jovens pedir a ajuda de pessoas mais velhas, como os pais ou autoridades. Ao contrário, os momentos de desespero se alternam com infantilidades como sugestões tiradas de filmes, apostas para ver quem imagina a melhor saída e tristeza pela impossibilidade de ir a um show de forró logo mais à noite.
Na tentativa de se livrar dos corpos, os três só se enrolam ainda mais. Daí vem o nome do filme. Cama de gato é aquela brincadeira em que uma pessoa entrelaça um laço de barbante em seus dedos formando uma espécie de cama. Outra pessoa faz certos movimentos que transferem o barbante para suas mãos com um novo formato. Depois de algumas manobras que alteram a forma da “cama”, esta volta ao desenho original e a brincadeira começa novamente sem novidades. As confusões dos rapazes às voltas com cadáveres também se repetem com poucas variações. A única certeza que um ingênuo espectador teria é a de que os três só podem estar caminhando rapidamente para uma situação sem volta. Vão acabar sendo pegos pela justiça e penalizados.
A impunidade no horizonte e o desprezo pelos “excluídos”
O final da história desmente essa impressão. A impunidade aponta no horizonte, não sem a colaboração dos adultos com seus conselhos nada responsáveis. O caso do índio incendiado por jovens em Brasília, em 1997, é lembrado pelos próprios personagens de modo confuso. Como se não fosse nada muito sério. O mesmo desprezo pelos chamados “excluídos” aparece quando escolhem um lixão para se livrarem dos corpos. O motivo é que naquele lugar, qualquer um que por acaso os visse não representaria ameaça. Mendigos e catadores não contariam como testemunhas qualificadas.
O filme termina apelando novamente para os depoimentos dos jovens nas ruas e bares. Perguntados como reagiriam a uma situação parecida, a grande maioria responde que tentaria se livrar dos corpos. A saída é queimar, dissolver com ácido, enterrar num lugar distante, jogar num rio ou lago. Diante da sugestão de avisar a polícia, a reação é unânime. A polícia não é confiável. A justiça não é imparcial. Estas conclusões ficam mais enfáticas quando os entrevistados são jovens negros. Estes afirmam que policiais são “bandidos de farda, nada mais”.
Não há como discordar dos entrevistados quanto à descrença reinante em relação a instituições que só cuidam da segurança e da justiça em favor de alguns poucos privilegiados. Além disso, é preciso considerar que os depoimentos foram dados em clima de conversa informal, temperados por bebidas e pelo espírito de turma, em que o autor da maior barbaridade pronunciada ganha pontos com o restante do pessoal.
O fato é que a violência da situação não assusta a grande maioria dos entrevistados. E em alguns deles é possível sentir um ânimo conservador muito forte. É o caso do rapaz que adverte no melhor estilo malufista: “estupra, mas não mata”.
Uma conclusão fácil a ser tirada do filme é a de que não há valores fortes o suficiente para que sejam respeitados pelos jovens. E não precisa ser apenas valores como a família, religião, honestidade, caridade. “Ideologia! Eu quero uma pra viver”, cantava Cazuza nos anos 1980. Pode ser uma ideologia também. Talvez, o socialismo, o anarquismo, a solidariedade de classe.
A tentação de oferecer a saída de uma religião sem Deus como saída
Mas o filme de Stockler parece dizer que isso seria apenas armar novas camas de gato. Aos três adolescentes não faltam informações e formação. Não são garotos criados em bairros pobres, sem comida, educação, lazer, cultura. Chico vai ser médico e acredita em Deus. Vive invocando o nome divino, apesar de ser o mais intolerante e violento dos três. Gabriel vive a culpar a globalização por todos os males do mundo, mas não hesita em apontar um revólver para um mendigo. Cristiano parece estar a meio caminho de ambos. Tem uma sensatez que não o impede de complicar as coisas tanto quanto seus dois companheiros.
É tentador afirmar que o que falta a esses jovens é a compreensão do mundo e de sua lógica exploradora e alienante. Que só acesso a informações não basta. É preciso saber o que fazer com elas, combater as deformações ideológicas que a classe dominante as submete.
Construir a resistência dos que estão embaixo na escala social.
É tentador, mas não acho que seja o caso. Na verdade, a própria esquerda precisa repensar suas formas de atuação em relação a todos os que lhe interessa ganhar para a luta. Mulheres, homossexuais, negros, indígenas e… jovens. Muitas vezes montamos nossas próprias camas de gato. Oferecemos a militância socialista na forma de uma religião sem Deus. Algo em que os partidos comunistas se especializaram após a tomada do poder por Stálin. Não serve. Experiências políticas e organizativas são muito diferentes de experiências religiosas. As primeiras, para serem libertadoras, precisam ter como regra a recusa de dogmas e divindades.
Os jovens, em especial, estão numa fase da vida em que as certezas trocam de lugar com as dúvidas de forma muito freqüente e radical. E se um outro mundo tem que ser possível, a luta socialista tem que respeitar e assimilar as enormes vontades libertárias deles. Jovens de classe média correm muito menos riscos do que a abandonada juventude das periferias. No entanto, uns e outros inventam experiências interessantes. Algumas vezes, podem ser perigosas para eles próprios. Outras vezes, são bonitas e grávidas de inúmeras possibilidades.
“Cama de Gato” mostra a repetição de um padrão traduzido em humor negro. Cortar as amarras dessa triste brincadeira pode passar pela defesa da revolução, mas só isso é insuficiente. Os jovens têm que sentir sua vontade de liberdade respeitada e atendida. Até para que identifiquem os limites dessa liberdade e nos ajudem a forçá-los.
P.S.: A obra é o primeiro filme do manifesto Trauma (www.trauma.art.br). Uma resposta bem-humorada ao manifesto Dogma 95, cuja maior figura é o cineasta Lars Von Trier, de Dogville. Os responsáveis pelo filme dizem que a produção custou exatos R$ 13.096,00. Menos do que custa um carro popular. Se isso for verdade, os obstáculos financeiros para fazer filmes já não têm o mesmo tamanho. A esquerda socialista tem que ficar de olho nisso.
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