Por Sheila Jacob

Moradores de favelas e periferia do Rio e de Niterói foram duramente atingidos pelas enchentes no início do mês de abril. Até o dia 7 de abril, o saldo era de 133 mortos no Estado do Rio, além de centenas de feridos e pessoas desaparecidas. O governador do Rio, Sérgio Cabral, chegou a culpar os moradores dos locais de risco pela tragédia. Mas, para o historiador
Guilherme Marques, uma das principais causas deste infeliz quadro é a falta de uma política habitacional decente na cidade, que possa atender a toda a população, oferecendo moradias com boas condições, localizadas em área com infra-estrutura urbana e transportes públicos de qualidade. Para ele, “deveria ser considerado crime culpar as vítimas dessas tragédias”.
Guilherme Marques é historiador
do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (Ippur/UFRJ). Ele foi um dos organizadores do Fórum Social Urbano, realizado no Rio de Janeiro entre os dias 22 e 26 de março, paralelo ao Fórum Urbano Mundial.  O FSU foi promovido pelos movimentos sociais e entidades que lutam pela democracia urbana. Lembrando as propostas do encontro, Marques defendeu que é preciso que a sociedade se organize e lute pelo combate à desigualdade e o atendimento aos mais necessitados. “Somente nossa luta e nossa pressão política poderá mudar essa dura realidade que vivemos”, avalia o pesquisador.

 

Boletim NPC: Como você avalia as políticas públicas em relação ao espaço urbano do Rio de Janeiro?

Guilherme Marques – As políticas públicas no Rio de Janeiro, com uma ou outra exceção, visam melhorar a imagem da cidade para atração de capitais. Esse é o centro das políticas públicas no Rio desde os tempos do ex-prefeito, César Maia. Do programa “Favela Bairro” até as candidaturas olímpicas, a questão da imagem está sempre no centro das políticas públicas. A preocupação mais forte dos nossos governantes é sempre esconder a miséria da cidade.

Fatos trágicos como o que estamos vivendo, porém, revelam a dura realidade dos trabalhadores cariocas. Aliás, o fato de as tragédias serem reveladoras de realidades que tantas vezes passam desapercebidas não é um privilégio nosso. Veja, por exemplo, o caso do Furacão Katrina em Nova Orleães. Muita gente achava que nos EUA não havia pobres. Aquela tragédia demonstrou para todo mundo que não só há muitos pobres nos EUA, mas como os governos de lá também não se preocupam com os pobres. Os pobres de Nova Orleães (a maioria negros, como aqui) morreram por que lá não há transportes públicos eficientes, e por não terem carros para fugir do alagamento. Eles morreram afogados em suas casas.

 

Hoje, no Rio de Janeiro, todas as políticas públicas estão voltadas para preparar os mega-eventos que ocorrerão aqui: Jogos Mundiais Militares em 2011; Rio + 20 em 2012; Copa das Confederações em 2013; Copa do Mundo em 2014 e Olimpíadas em 2016 etc. E, com esses mega-eventos como desculpa, o governo federal, estadual e municipal priorizam políticas que atendem as demandas do capital e dos mais ricos. Um exemplo disso é a prioridade total anunciada para os aeroportos (no caso do Rio o Tom Jobim – Galeão). Por várias vezes já ouvimos os nossos governantes, assim como os presidentes da CBF e do COB dizendo que o Galeão, comparado com os aeroportos de Paris ou de Barcelona, é uma tragédia, uma carroça etc. Sim, eles até podem ter razão nessa comparação. Mas será que eles já compararam o Metrô de Paris com o do Rio? E o sistema educacional de Barcelona com o do Rio, eles já compararam? Comparem também os modelos de saúde, de segurança, os salários, os trens etc. Mas, como eles não estão preocupados com o povo carioca, muito menos com os pobres, eles só conseguem olhar pros aeroportos, ou seja: para as necessidades do capital e de seus representantes.

 

 

Boletim NPC: E como ficam os trabalhadores e a população pobre em relação à política habitacional do Rio?

No Rio (como em todo o Brasil), não há um programa habitacional decente. É só perguntarmos quantos imóveis abandonados do Governo do Estado, da Prefeitura ou do Governo Federal estão sendo disponibilizados para serem transformados em moradia popular. Todos os terrenos públicos, que deveriam ser usados para produção de habitação social, estão sendo vendidos, como o caso dos 73 terrenos do metrô. Ou como na Zona Portuária, que ao invés de área para moradia popular, estão vendendo os direitos de construção para a especulação imobiliária. Assim, onde eles querem que os pobres morem? Favelas e moradias em “áreas de risco” não são uma questão de vontade, mas de necessidade dos trabalhadores por falta de alternativas. São resultados
da política dos governos, que não têm projetos sérios de habitação popular.  

 

 

Boletim NPC: Você acha que, de certa maneira, esta tragédia tem como principais responsáveis as medidas do Governo estadual e a Prefeitura em relação às cidades, ao invés de a causa ser meramente natural ou então culpa dos moradores, como tem sido afirmado ultimamente?

Culpar as vítimas, quando acontecem tragédias, é sempre fácil. É o discurso que as classes dominantes gostam. O Globo adora esses discursos. No editorial do Globo de hoje, eles fazem uma forte defesa das remoções forçadas. E o decreto do prefeito Eduardo Paes (publicado no dia 8/04) diz que as famílias que residem em áreas de riscos poderão ser removidas à força. Mas o decreto podia dizer também que vão ser construídas novas e boas casas para essas famílias. Mas isso nem o decreto nem o Globo dizem. Deveria ser considerado crime culpar as vítimas dessas tragédias.

 

Outra forma muito badalada de culpar as vítimas é criticar quem deixou ocupar. Dizem que os governantes que deixaram os morros serem ocupados eram omissos e faziam demagogia. Mas nenhum deles diz que a culpa é de quem não teve (ou não tem) uma política habitacional que atenda aos mais pobres. Ninguém diz que os projetos como o Favela-Bairro eram projetos de maquiagem. Ninguém diz que o PAC-Favelas, em cada comunidade destrói 2 mil casas e constrói apenas 600 (como em Manguinhos). Eles estão preocupados sim é com o elevador panorâmico do Cantagalo, com os muros na Rocinha ou na Maré e com as remoções. Mas esses problemas que estamos vivendo não se resolvem com muros, e sim com casas. E com moradias boas, pois as que fizeram em Manguinhos, com as obras do PAC, foram todas alagadas com as chuvas dessa semana, a ponto de alguns moradores do 1º andar terem que ser resgatados para não morrerem dentro de suas casas.

 

Pela nossa constituição, a moradia é um direito de todos. E esse direito nunca foi respeitado. Se um governante não pagar em dia os juros das dívidas com o tesouro, pode até ser preso, por conta da lei de responsabilidade fiscal. Mas, se ele deixa a população morrendo em tragédias como essa e não tem uma política habitacional séria, o que acontece com ele? Ele diz que fará remoções, que colocará a polícia para bater e remover os pobres na marra e é aplaudido pelos meios de comunicação.

 

 

Boletim NPC: Uma das questões discutidas recentemente no Rio durante o Fórum Social Urbano  foi exatamente a “mercantilização” das cidades, e os empreendimentos que, em nome de um certo “progresso”, geram degradação ambiental e exclusão/ omissão em relação à população pobre. Como as questões discutidas nesse grande encontro, organizado pelos movimentos sociais, estão relacionadas com essas mortes por causa da chuva?

No FSU fizemos uma série de discussões que estão muito ligadas ao que estamos vivendo hoje. Uma discussão que foi central foi sobre esse modelo neoliberal de cidades. Segundo esse modelo, as cidades devem ser vistas como empresas que competem entre si, ao invés de se ajudarem. Elas competem por atração de capitais, especialmente de capital estrangeiro. E para atrair esses capitais, as cidades devem ser atraentes (obviamente atraentes pro capital). E o que são cidades atraentes pro capital? São cidades que devem ter uma farta infra-estrutura de luxo pros representantes do capital. Devem ter também muitas e boas oportunidades de negócios pro capital. E esses negócios devem ser bastante lucrativos para serem atraentes. Ou seja, as cidades devem dispor de mão de obra barata, de incentivos fiscais para o capital (e não para os pobres), devem ter os governos como seus parceiros, financiamento público para os investimentos etc. Resumindo: devem ser amigáveis para o capital. E eles trabalham muito para isso. Quem paga a conta são os trabalhadores e o povo que morre em eventos como o que vivemos essa semana.

 

 

Boletim NPC: E o que foi discutido no Fórum em relação aos mega-eventos que ocorrerão na cidade?

No FSU, discutimos que esses mega-eventos são uma boa oportunidade de negócios, do ponto de vista da classe dominante. Mas, para os trabalhadores, eles são uma severa ameaça. Ameaça de remoções forçadas, de repressão policial, de despriorização dos serviços públicos, como educação e saúde, que atendam aos pobres etc. E essas não são meras ameaças. Lembremos dos Jogos Pan-americanos em 2007. Dias antes de começar o
s Jogos, houve o massacre no Alemão, com 19 mortos. Era um recado para que as comunidades nem pensassem em se manifestar durante o PAN. No dia seguinte ao fim do evento, a prefeitura tentou demolir as casas no Canal do Anil, ao lado da Vila do PAN. Era uma tentativa de expulsão dos pobres de uma área valorizada pelas obras e em benefício sempre da especulação imobiliária. E, com tudo que disseram na época, quem pagou todas as dívidas das obras pros Jogos? Como sempre, foi o poder público, ou alguém acha que o capital procura dívidas para pagar em vez de lucro fácil?

 

 

Boletim NPC:Tendo toda essa exclusão em vista, quais foram então as propostas do FSU?

No FSU discutimos muito que esse modelo de cidade deve ser combatido. Decidimos que devemos, desde já, começar a nos organizar para enfrentar esses projetos. Devemos, por exemplo, enfrentar essa política preconceituosa de remoções. Ao invés de remoções forçadas, basta oferecer uma moradia em boas condições, em área com infraestrutura urbana e transportes, que as pessoas se mudam na hora. Agora, se a remoção é forçada, é porque a alternativa oferecida é pior do que a situação atual desse morador. E isso não pode ser aceito pacificamente. Discutimos também que devemos travar uma grande luta por melhoria nos sistemas de transportes. O nosso metrô é uma vergonha e um atentado contra a segurança dos cariocas. Nos trens, tratam o povo como gado, com chicotes. Os ônibus são caríssimos, ruins e demorados. Esse sistema de transporte força as pessoas a terem que morar perto do trabalho, o que agrava a situação das favelas e áreas de risco.

 

Enfim, no FSU discutimos que devemos, nós mesmos, trabalhadores, estudantes e moradores como um todo, lutar para melhorar nossas cidades. Percebemos que se ficarmos dependendo da boa vontade dos nossos governos e do interesse do capital, eles farão uma cidade pra eles, conforme os seus interesses e contra os nossos. Agora, no momento da tragédia pela qual passamos, devemos exigir que para cada casa que foi destruída, sejam construídas duas. Que para cada família que eles querem remover, sejam construídas duas novas moradias. Que todos os prédios, casas e terrenos abandonados em áreas que possuem infra-estrutura sejam reformados e usados para moradia popular. Devemos dizer que a prioridade da cidade deve ser o combate à desigualdade e o atendimento aos mais necessitados. Somente nossa luta e nossa pressão política poderá mudar essa dura realidade que vivemos. E essa luta deve ser de todos nós, deve ser uma verdadeira luta de classes: luta por uma vida, uma cidade e um mundo melhor!