[Terra Sem Males] Di Florentino, diretor do documentário Pulsão, e Sabrina Demozzi, pesquisadora e roteirista do projeto, conversam sobre a produção do longa, as dificuldades de retratar acontecimentos em movimento, e a importância de conhecer o potencial do ativismo político digital. Documentário trata da influência das mídias digitais na política e estreia online no dia 4 de setembro. | Leia a entrevista completa.

Di Florentino, diretor do documentário Pulsão, eSabrina Demozzi, pesquisadora e roteirista do projeto, conversam sobre a produção do longa, as dificuldades de retratar acontecimentos em movimento, e a importância de conhecer o potencial do ativismo político digital.

Pergunta: O “Pulsão” começou como um filme sobre um evento, e se transformou em algo maior. Como foi o processo de refinamento deste roteiro?

Di Florentino: As primeiras conversas vieram da vontade de fazer um documentário sobre o Circo da Democracia, um evento importante de resistência realizado em 2016 em Curitiba e que tivemos a oportunidade de produzir os conteúdos audiovisuais, até com transmissão ao vivo. Esse trabalho também teve um bom retorno de público nas redes sociais. Como o material é muito importante historicamente, a gente queria transformá-lo em um longa-documental. Portanto, em conversas com os envolvidos na concepção da obra e uma vontade de tratar de temas que estavam aflorando na época, como é o caso dos efeitos da desinformação nas redes sociais e do uso dos algoritmos para disseminar o ódio, surgiu o Pulsão. Eu havia escrito um argumento de curta-metragem que acabou não indo pra frente que se chamava Pós-verdade, tema que interessava a Trópico (produtora audiovisual do diretor), e se a ideia era a gente realizar uma obra que falasse sobre política no Brasil, o que mais poderia somar na cinematografia realizada no Brasil eram esses temas. E estamos aqui em 2020. Um tema difícil de lidar que desafiou e vem desafiando o campo jurídico.

Pergunta: Este projeto é diferente as produções anteriores da Trópico? O que te atraiu nele?

Di Florentino: Antes de realizar o Pulsão, a Trópico havia produzido uma websérie documental chamada #manifesto– política de pessoa para pessoa. Foi um projeto independente com conteúdos postados nas redes sociais da produtora e que acompanhava as manifestações contra e a favor da saída de Dilma Rousseff da presidência da República. Foi possível acompanhar no “campo” a polarização política, as primeiras manifestações pró-Bolsonaro, pró-Lava-Jato e depois contra Michel Temer. Chegamos a uma marca de 3 milhões de visualizações e muitos compartilhamentos, comentários de pessoas contra e a favor do golpe. Em paralelo a isso, a Trópico realizou o #nosmanteremosfirmes, um curta-metragem sobre a Primavera Secundarista com a participação da atriz Letícia Sabatella e na sequência Acima da Lei, documentário premiado no Olhar de Cinema e que trata do primeiro encontro entre o ex-presidente Lula com o então juiz da Lava-Jato, Sérgio Moro. Todos esses projetos foram factuais. Depois disso veio o Pulsão, um filme de montagem, com muita pesquisa de imagens.

Pergunta: E o trabalho de pesquisa? Como vocês chegaram nas fontes, e quais dificuldades enfrentaram?

Sabrina Demozzi: A pesquisa é a base mais elementar de qualquer documentário e também tem diferentes etapas. Fazer leituras, participar de eventos, conversar com pessoas e assistir a referências norteadoras foram alguns dos caminhos adotados. 

Mas, também foi preciso fazer uma netnografia, isto é, entrar em grupos do WhatsApp e do Facebook, bem como, seguir canais no Youtube, que de alguma forma apresentavam comportamentos mostrados no filme. 

Para além disso, muita gente colaborou com sugestões e ideias que íamos trabalhando e vendo se encaixava na narrativa. O desafio, neste sentido, foi o de tentar conciliar diferentes expectativas que eram muitas e se transformavam continuamente.

Pergunta: Como foi a experiência de trabalhar por tanto tempo neste projeto? Vocês gostariam de repetir?

Sabrina Demozzi: Documentários levam anos para serem finalizados, pois são diversas etapas que exigem dedicação, pesquisa e imensa “capacidade de adaptação” para lidar com a realidade, que é dinâmica. Isso significa dizer que, diferente da ficção, um documentário pode se transformar no caminho já que as pessoas mudam, as situações se renovam e assim por diante. Apenas como exemplo: os documentários recentes indicados ao Oscar, Honeyland e American Factory, levaram respectivamente cinco e nove anos para finalmente poderem ser exibidos ao público. Nós adoramos audiovisual e documentários, essa é a nossa razão de ser. Repetir processos, contudo, não é o mais adequado, pois cada filme e história pedem posições e intenções diferentes de quem está criando e se envolvendo no projeto.

Di Florentino: Fazer filmes é como fazer uma tese. Eu costumo brincar que escolher ser cineasta é viver fazendo teses, pois a cada objeto escolhido precisamos nos aprofundar e muito, ainda mais se tratando de longa-metragem. Agora, pensemos na responsabilidade de fazer escolhas num filme que trata do tema político. 

Somado a isso, pensemos em realizar um filme vivo sobre política, que nem nós mesmos como realizadores sabemos a reviravolta política que vai acontecer no Brasil. Foi difícil fazer escolhas. Daqui pra frente prefiro ter distanciamento histórico para tratar de alguns temas.

Pergunta: Quais dificuldades se apresentam na hora de fazer um filme sobre eventos que ainda estão acontecendo?

Sabrina Demozzi: Existem inúmeras formas de fazer documentários e o registro “factual” ou do tempo presente é algo que é bastante comum e relaciona-se com as reportagens especiais, próprias do jornalismo. O aspecto negativo disso, em minha leitura, é o risco da superficialidade na construção da narrativa, que tende a se tornar demasiadamente pedagógica em detrimento da história e da potência visual. A definição de “recortes” da realidade é bastante importante para o desenvolvimento de documentários e neste sentido, creio que as dificuldades se deram mais nesta linha, a de chegar um momento em que muita coisa “tinha” que ser dita.

Di Florentino: Como chegar em uma profundidade temática de algo que ainda nem foi investigado, que está vivo? Apesar de escolher um lado, como fazer escolhas narrativas que possa trazer o espectador para a reflexão em um momento tão polarizado? Em um momento de tanta informação nas redes sociais, tantas mídias, quais as melhores escolhas imagéticas para levar pra ilha de edição?

Pergunta: Como foi trabalhar com um tema tão polêmico quanto “Política”? Vocês se sentiram frustrados em algum momento com os acontecimentos que retrataram?

Sabrina Demozzi: A Política é indissociável da nossa vida e como todo tema pertinente à nossa existência como indivíduos que vivem em sociedade, deve ser discutido. Transformar política em “polêmica” é um jeito de afastar as pessoas de debates essenciais para a cidadania, a justiça social e a dignidade. Vejo que devemos refletir sobre isso em nosso cotidiano, como trazemos em “Pulsão”, buscando mostrar para as pessoas os impactos de determinadas atitudes, sentimentos e posições que ganham corpo nas redes sociais e nos transformam profundamente.

Pergunta: Vocês acham que foram afetados por este trabalho de alguma forma? O filme faz um mergulho sobre a influência das redes sociais. Isso mudou algo na forma como vocês encaram ou usam essas ferramentas?

Sabrina Demozzi: Certamente, tanto em aspectos subjetivos quanto objetivos. Vejo que se trata de uma postura em que devemos “nos apropriar” da tecnologia para nos potencializarmos como seres humanos e não o contrário. 

Creio que a radicalização abordada no filme, trouxe diversos temas à tona e também novas formas de lidar com discursos de ódio, violência e desinformação. Trata-se de uma luta que não vai cessar e por isso, precisamos entender o funcionamento desse universo.

Di Florentino: Eu digo que foi muito doloroso fazer parte desse processo e não poder fazer nada mais. Não poder mudar a história, entender semioticamente várias coisas e de certo modo estar impotente. Ver nascer e disseminar de forma inimaginável tantas fake news. Testemunhar um Brasil soberano para um Brasil cheio de ódio.

Pergunta: Vocês estão satisfeitos com o produto final? Há algo que mudariam?

Sabrina Demozzi: Estamos contentes sim. Dedicamos muito trabalho e energia nesse processo. Mudaria algumas abordagens… Acho que esse é um sentimento comum de quem trabalha com audiovisual. Não vou contar o quê pra não estragar a surpresa de quem vai ver o filme. Fica aí como uma resposta em aberto.

Di Florentino: Não sou mais o mesmo realizador que realizou determinado filme há dois, três ou mais anos. A gente muda. Esses dias mesmo revisitei filmes e hoje mudaria coisa ou outra. Acho que nós cineastas nunca estamos satisfeitos. Mas se tem uma coisa boa é quando, por mais que você queira mudar coisa ou outra num filme passado, você sente que fez boas escolhas como diretor, você se sente espectador, esquece dos perfeccionismos e embarca na história.

Pergunta: Vocês revisitariam o tema com distanciamento histórico? Daqui 10 ou 20 anos?

Sabrina Demozzi: Naturalmente. O tema é potente e os desdobramentos podem ser muitos. Pessoalmente, gostaria de crer que daqui a 20 anos, possamos ter aprendido com o que estamos vivendo e trazer um olhar mais propositivo sobre as relações entre cultura digital e política no Brasil.

Pergunta: O documentário não tem um ponto final. Vocês gostariam de continuar acompanhando essa história?

Sabrina Demozzi: Vejo que cada pessoa vai construir sua leitura sobre isso, até porque a realidade político-tecnológica no Brasil é tão surpreendente quanto o que trazemos no filme… Eu gostaria, conforme mencionei anteriormente, daqui 5, 10 anos, retratar uma “virada” nessa história, quem sabe até mais otimistas em relação ao nosso futuro.

Di Florentino: Meu desejo é fazer o que for possível para que possamos nos livrar de tanto ódio e mentiras no que se refere à política no Brasil. Que venha um cuidado especial com o meio ambiente, um país regido por alguém que transmita paz e realize ações pela a transformação social. 

Pergunta: O filme inspirou alguma ação ou projeto?

Sabrina Demozzi: Como a Trópico trabalha a partir das bases do Audiovisual de Impacto, sempre pensamos na continuidade dos conteúdos produzidos para que mais gente possa ter contato com mensagens importantes. Provavelmente, após a exibição, devemos compartilhar alguns materiais que tem propósito educativo e de discussão.

Di Florentino: Inspirou um próximo projeto de ficção, quero voltar a realizar um filme com este formato. Só não posso revelar o recorte do tema ainda.