Em 4 de novembro deste ano se completarão 50 anos da morte de Carlos Marighella, político e guerrilheiro baiano que foi preso em duas ditaduras brasileiras. No final dos anos 1960, ele rompeu com o maior partido de esquerda de então (PCB) por optar pela luta armada. Para seu biógrafo, o jornalista Mário Magalhães, o momento atual da política brasileira reforça as polêmicas que acompanharam o guerrilheiro em vida. Magalhães afirma que Marighella “hoje, 50 anos após a sua morte, desperta mais amor e ódio do que no tempo em que viveu, incluindo o tempo em que foi declarado inimigo público número 1 do governo”. Para ele, Moura “está tendo a tremenda coragem de lançar o filme num país governado por um presidente nostálgico da ditadura. Acho isso admirável”. Confira a entrevista completa concedida à DW Notícias.
Em 4 de novembro deste ano fará 50 anos da morte de Carlos Marighella, político e guerrilheiro baiano que foi preso em duas ditaduras brasileiras e no final dos anos 1960 rompeu com o maior partido de esquerda de então para optar pela luta armada. Para seu biógrafo, o jornalista Mário Magalhães, o momento atual da política brasileira reforça as polêmicas que acompanharam o guerrilheiro em vida.
No atual contexto político de crítica a liberdades e direitos, a biografia Marighella: o guerrilheiro que incendiou o mundo (Companhia das Letras) serve de inspiração para o filme Marighella, dirigido pelo ator Wagner Moura e que estreia na 69ª edição do Festival Internacional de Cinema de Berlim.
Magalhães afirma que Marighella “hoje, 50 anos após a sua morte, desperta mais amor e ódio do que no tempo em que viveu, incluindo o tempo em que foi declarado inimigo público número 1 do governo”. Para ele, Moura “está tendo a tremenda coragem de lançar o filme num país governado por um presidente nostálgico da ditadura. Acho isso admirável”.
O filme, primeiro longa de Moura como diretor, terá quatro apresentações no festival, entre os dias 15 e 16 de fevereiro. Ainda não há previsão de estreia no Brasil.
DW: Como foi o processo de construção do livro e como essa história chegou ao cinema?
Mário Magalhães: Em 2003 eu era repórter especial da Folha, queria mais tempo e espaço para escrever uma história de fôlego. Foram mais de nove anos para pesquisar e escrever o livro, sendo cinco trabalhando exclusivamente nisso. Consultei arquivos públicos de cinco países e entrevistei 257 pessoas. O livro foi lançado em 2012 e está na sua oitava edição. No ano seguinte a atriz e gestora cultura baiana Maria Marighella, neta do Carlos Marighella, apresentou a obra ao Wagner Moura. Ele leu e fez a proposta para compra dos direitos de filmagem da obra.
Qual a principal diferença das duas obras, a literária e a cinematográfica?
É preciso ter uma coisa clara para os espectadores, uma coisa é a narrativa jornalística e literária, outra é o cinema, imagem e movimento. O livro que escrevi é de não-ficção. O filme é de ficção. Trato a literatura de não-ficção com uma narrativa jornalística em que não há licença para inventar nada. A criação e a arte estão na maneira de contar, mas no livro que escrevi nada foi inventado. No cinema de ficção é natural que haja muitos elementos com propósitos dramáticos para contar melhor a história.
Por que Marighella ainda provoca tanta discussão no Brasil?
Um dos aspectos mais fascinantes do Marighella é que ele não era a caricatura de militante político cuja vida era estreitada pelo cotidiano da militância. Ele era um cara que gostava de carnaval, de música e que desde novo foi poeta. Ele fez um poema aos 19 anos quando estava preso na Bahia que o fez ter o ódio eterno do então interventor e futuro governador da Bahia, Juracy Magalhães. O Juracy foi também embaixador do Brasil nos EUA em 1964 e disse a célebre frase “O que é bom para os EUA é bom para o Brasil”. Então o Marighella era um sujeito de uma curiosidade e uma vida que faziam dele uma figura muito diferente do militante sisudo e carrancudo, que é a imagem que se costuma ter do militante político.
O que diferencia ele é a ideia da ação quase como um fetiche. Ele dizia que era preciso falar menos e fazer mais. Se ele estivesse vivo hoje ia dizer: “Larguem o celular, larguem as redes sociais e vão para a rua!”. Ele usaria o celular para convocar e combinar a ida às ruas, mas não ficaria em casa tentando mudar o mundo digitando com dois polegares.
A escolha pela luta armada, que o fez inclusive romper com o PCB, é muito criticada. Como você observou esse lado do Marighella ao pesquisar a vida dele?
Para mim é importante dizer algo antes. Eu sou jornalista e escritor, a minha concepção é essencialmente jornalística. Ou seja, a minha biografia pertence ao gênero da reportagem. Portanto, não cabe ao autor de uma biografia jornalística ser juiz ou promotor acusador ou advogado [do biografado]. Cabe ao autor contar a história. Não foi uma biografia para promover o Marighella. Não faço juízo de valor sobre a escolha dele pela luta armada. Por exemplo, na quarta-feira (13/02) vai ter um julgamento simulado do Marighella promovido pela Defensoria Pública do Estado da Bahia. Eu vou fazer uma palestra depois do julgamento porque não quero influenciar na decisão final.
Pode-se concordar ou não com a decisão do Marighella de pegar em armas para lutar contra a ditadura militar. Ninguém é obrigado a amar ou odiar o Marighella, mas é impossível ficar insensível à vida trepidante que ele teve. É curioso: o Marighella hoje, 50 anos após a sua morte, desperta mais amor e ódio do que no tempo em que viveu, incluindo o tempo em que foi declarado inimigo público número 1 do governo em 1968 pelo ministro da Justiça Gama e Silva, conhecido como Gaminha. E isso tem a ver principalmente com o Brasil conflagrado e intolerante de hoje.
Carlos Marighella foi deputado federal pelo PCB baiano e fez parte da Constituinte de 1946. Você narra no livro que ele foi contrário ao termo religioso que remetia à proteção de Deus no começo da Carta e cita também questões dos direitos das mulheres que ele defendeu naquela época. O atual presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, teve como lema de campanha “Deus acima de todos”. E o debate sobre direitos das mulheres nunca esteve tão forte. Os temas sociais brasileiros são cíclicos? Qual o papel de Marighella nesse contexto?
É o Brasil de hoje que faz com que a vida Marighella seja atual. Vamos lembrar: em 1946 não existia 13° salário. Foram Marighella e os deputados do PCB que propuseram o que eles chamaram de abono de Natal e defenderam o 13° na Constituinte, mas não foi aprovado. Hoje nós temos um vice-presidente muito poderoso, como o general Hamilton Mourão, que considera o 13° uma jabuticaba, ou seja, uma aberração. A gente tem uma ofensiva fundamentalista religiosa e obscurantista que é justamente aquilo que o Marighella tratava ao ser contra uma benção divina no preâmbulo da Constituição de 1946.
Tem mais, para os termos da época, havia uma questão feminista forte no discurso do Marighella. Na constituinte ele já denunciava coisas como o tempo limitado que as trabalhadoras de uma fábrica na Bahia tinham para ir ao banheiro. Hoje se fala em carteira de trabalho verde e amarela retirando direitos históricos dos trabalhadores conquistados ao longo dos anos 20. O deputado Eduardo Bolsonaro, filho do presidente, já declarou que quer criminalizar o comunismo, o que significaria levar partidos como o PCB e o PCdoB para a ilegalidade. E a gente volta a lembrar que em 1947 o TSE declarou o PCB ilegal, e em janeiro de 1948 os parlamentares do PCB foram expulsos do Senado, da Câmara Federal e das assembleias legislativas e das câmara municipais.
A história de Carlos Marighella com PCB representa uma cisão da esquerda na luta contra a ditadura militar. É possível encontrar paralelo com a fragmentação atual da esquerda no Brasil?
Há uma fragmentação histórica da esquerda, nas eleições de 2018 isso ficou mais evidente. O que houve no segundo turno foi que direita e centro-direita se uniram em torno do Bolsonaro sem constrangimento. Ele recebeu apoio inclusive de liberais. Mas acho que um liberal de verdade não pode caminhar ao lado de gente que com um cabo e um soldado se fecha o STF.
A ida do Marighella para a guerrilha era a expressão do que havia em vários locais do mundo. Havia cisões de partidos comunistas que iam para a luta armada, isso ia contra o posicionamento da União Soviética, que era contra a luta armada na América Latina.
Houve um trauma na esquerda brasileira, que foi a derrota sem luta em 1964. Esse trauma fez com que setores considerassem que antigos métodos de luta estavam ultrapassados e que era preciso enfrentar o governo que tinha se imposto pelas armas com a mesma moeda. É por isso que o Marighella vai para a guerrilha. Teria sido muito mais cômodo continuar como um dirigente do PCB. A ruptura dele quando vai para a guerrilha, abrindo mão de um aparelho político forte, é para um sonho arriscado de combater a ditadura pelas armas. Esse gesto de botar a própria vida em risco é um gesto que impressiona, principalmente nessa época de profundo egoísmo em que a gente vive.
Você mencionou que está escrevendo um livro sobre o ano de 2018. Há algum personagem tão marcante nessa história como Marighella?
É uma biografia sobre um ano que vai influenciar a vida do Brasil por muito tempo. O livro se chama O ano do apocalipse, uma biografia de 2018. Ainda está sem editora. Não saberia dizer se temos um novo Marighella, mas o livro de 2018 tem três protagonistas: Marielle Franco, Jair Bolsonaro e Lula.
Como foi sua relação com a produção do filme?
Cheguei a conversar com o Wagner Moura, que também assina o roteiro, mas não tive participação. Conversamos algumas vezes e acompanhei parte das filmagens e vi muitas cenas prontas. Acho que é um trabalho magnífico deles. O filme identifica algo no Marighella que é a mesma conclusão da biografia escrita, que ele era um homem de ação. A primeira epígrafe do livro, do Fausto de Goethe, que é “no princípio era a ação”. Então o livro que escrevi é muito marcado pela ação, e o filme mais ainda, porque o Wagner fez o filme focado na terceira parte do livro, que é de 1964 a 1969.
Seus trabalhos jornalísticos são bem combativos com relação ao atual governo brasileiro, e o mesmo acontece com os posicionamentos públicos do Wagner Moura, que dirige o filme sobre o Marighella. As duas obras, livro e filme, trazem alguma mensagem política para os tempos atuais?
O desafio que o Wagner teve foi monumental, de contar em duas horas a história do Marighella. Além disso, acho uma tremenda coragem o Wagner ter resolvido estrear como diretor de cinema com a história de um personagem que ainda hoje é tido como maldito no Brasil, que é o Marighella. Foi uma tremenda coragem ter filmado durante o governo Temer, e ele está tendo agora a tremenda coragem de lançar o filme num país governado por um presidente nostálgico da ditadura. Acho isso admirável.
Eu acho que as lutas do Marighella, os perrengues que ele viveu, as grandezas e as misérias dele – todo ser humano tem suas grandezas e misérias, tudo isso é muito atual no Brasil de hoje. Porque o Marighella viveu duas ditaduras, ficou preso no Estado Novo e na ditadura militar, que o matou. A vida dele, as questões com as quais se debateu, tudo isso é muito atual por conta do Brasil que insiste em retroceder e fazer com que a história não passe ou evolua muito lentamente.
As pessoas falam muito de Marighella, mas costumam conhecer muito pouco sobre ele. Seria existencialmente interessante e intelectualmente indispensável que elas conhecessem mais para poderem se pronunciar. O filme vai ser uma grande oportunidade para isso.