Por Rosângela Ribeiro Gil – NPC
O segundo dia do 22º Curso Anual do NPC, realizado entre 16 e 19 de novembro, no Rio de Janeiro, foi finalizado com o lançamento do livro “O problema é ter medo do medo – O que o medo da ditadura tem a dizer à democracia” com a presença da autora, a jornalista sindical Ana Helena Ribeiro Tavares e do cineasta Sílvio Tendler. Primeiramente, Tavares disse que era uma honra poder estar no curso idealizado, há duas décadas, por Vito Giannotti, a quem conheceu na inauguração, em 2014, de busto em homenagem a Rubens Paiva, na Praça Lamartine Babo, na Tijuca, em frente ao 1º Batalhão de Polícia do Exército, antigo DOI-Codi, que foi torturado e morto pelos militares naquele local.
O livro foi lançado, pela primeira vez, em 15 de março último, no Sindicato dos Jornalistas do Rio de Janeiro. “Mas lançá-lo aqui no curso é muito especial e importante”, destacou. Na sequência, ela narrou ao público como se deu a ideia e produção do livro, intimamente ligado à resistência comunicacional. “Ele nasceu como um trabalho jornalístico alternativo”, disse, porque Tavares decidiu ingressar na carreira profissional de jornalista fora da imprensa empresarial brasileira, optando por estar em sites alternativos, como o Outras Palavras, do Le Monde Diplomatique. “A nossa imprensa manipula, manipula, manipula de forma cruel e sórdida. Não queria ser mais uma ´lambe-botas´ de patrão.”
O trabalho começou a ser pensando quando o Supremo Tribunal Federal (STF) rediscutia a lei da anistia (6.683), mantendo-a como está até hoje, anistiando quem se opôs ao regime militar e os agentes do Estado que torturaram, sequestraram e mataram. “Não entendo uma anistia que é dada para quem nunca foi punido”, criticou. Também contribuiu para o projeto um fato acontecido, logo após o golpe civil militar de 1964, com um tio da autora que foi preso quando saía de um cinema na praça carioca Saens Peña. “Ele foi preso, mantido incomunicável durante quase cinco dias. Ele não pertencia a nenhum movimento ou orientação política, mas assim mesmo foi torturado para falar o que sabia ou o que não sabia”, contou.
A sua vontade de conhecer e mostrar mais a história de pessoas que tiveram suas vidas alteradas e interrompidas levou a jornalista a percorrer muitos quilômetros pelo território nacional em busca dos depoimentos. A obra traz 26 entrevistas com militares cassados, bispos da Teologia da Libertação, indígenas, jornalistas, poetas, cineastas, sindicalistas, guerrilheiros e advogados.
“O meu livro tem tudo a ver com o tema do curso do NPC sobre a manipulação das consciências. Comecei-o em 2009, quando tinha 23 anos de idade, e passava por um conflito grande sobre qual caminho seguir no jornalismo.” Nessa trajetória profissional, Tavares acabou ingressando nos sindicatos dos policiais civis e dos vigilantes do Rio de Janeiro. “Não queria fazer jornalismo me submetendo a uma linha editorial que massacra o povo brasileiro.”
Um dos capítulos do livro, “Trabalhadores golpeados – o voo que o Brasil não deu”, se debruça sobre como a ditadura, durante mais de 20 anos, atingiu a classe operária do País. Para falar sobre o tema, ela entrevistou Dom Waldyr Calheiros, bispo Emérito da Diocese de Barra do Piraí-Volta Redonda, falecido em 2013, que desempenhou papel fundamental na greve dos metalúrgicos da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), em 1988, onde três operários foram mortos pelas forças de segurança, e na redemocratização do Brasil. Outro testemunho no mesmo capítulo é do comandante Paulo de Mello Bastos, hoje com 97 anos de idade. “Ele era piloto do presidente João Goulart e grande líder do Comando Geral dos Trabalhadores (CGT) e nos conta como os trabalhadores foram atingidos pelo golpe.” Para Tavares, esse capítulo nos faz refletir sobre quais as forças desde Getúlio Vargas até hoje impedem o Brasil de voar, de ser uma potência mundial. “São forças muito parecidas que estiveram na situação que levou Getúlio ao suicídio, na deposição de João Goulart e estão no Brasil de hoje.”
Um dos entrevistados é Dom Pedro Casaldáliga, atualmente bispo emérito da Prelazia de São Félix do Araguaia (MT), inspirador do nome do livro: “Perguntei se ele não tinha medo, e ele respondeu que é claro que teve medo, que é natural, mas que o problema é você ter medo de enfrentar o medo.”
A primeira pessoa a ser entrevistada, em 2010, foi o advogado Hélio Pereira Bicudo, que, à época do período da ditadura (1964-1985), teve papel fundamental contra o esquadrão da morte em São Paulo. A jornalista, todavia, destaca o nome do advogado Modesto da Silveira, falecido recentemente: “Ele me ligava sempre pedindo para eu não desistir do livro.”
Um fator que acabou criando um ambiente favorável para que o livro seguisse adiante foi a Comissão Nacional da Verdade (CNV), cujo trabalho se encerrou em 2014. “A Comissão foi fundamental para que conseguisse fazer as entrevistas e falar sobre o tema com as pessoas”, observou.
Entrevistados
Tavares entrevistou: Paulo de Mello Bastos, Dom Waldyr Calheiros, Brigadeiro Rui Moreira Lima, Capitão Fernando de Santa Rosa, Capitão Luiz Carlos de Souza Moreira, Coronel Ivan Proença, Dom Tomás Balduíno, Dom Pedro Casaldáliga, Tiuré Potiguara, Affonso Romano de Sant’Anna, Alberto Dines, Evandro Teixeira, Milton Coelho da Graça, Silvio Tendler, Sérgio Ricardo, Dr. Hélio Bicudo, Dr. Modesto da Silveira, Dr. Marcelo Cerqueira, Dra. Rosa Cardoso, Cid Benjamin, Celso Lungaretti, Carlos Eugênio Paz, Aluízio Palmar, Marília Guimarães, Cecília Coimbra, Dra. Margarida Pressburger. A obra também pode ser adquirida na Livraria Antonio Gramsci. Leia também entrevista especial com a autora no Boletim NPC.
Ícone da resistência cultural
Conhecido como o “documentarista dos vencidos” e o “cineasta dos sonhos interrompidos”, Sílvio Tendler deu seu importante testemunho a arte como resistência. “É um prazer estar com vocês nesse trabalho genial do Vito Giannotti. Venho dar meu depoimento como artista, falar um pouco dessa categoria que tem uma coisa curiosa, ela está sempre na contramão. Ao longo da história, estamos sempre questionando a sociedade.”
Ele fez uma rápida e breve digressão sobre as resistências da arte a partir do golpe civil militar de 1964, no País. “No governo João Goulart, vai ter a articulação da arte no grande movimento do CPC (Centro Popular de Cultura) da UNE (União Nacional dos Estudantes), com Vianinha (Oduvaldo Vianna Filho), Ferreira Gullar, Sérgio Ricardo, Joaquim Pedro de Andrade. Grandes atores, músicos, dramaturgos vão organizar a resistência ao golpe de 1964.”
Tendler, que tem uma filmografia com mais de 40 títulos, lembrou que enquanto os sindicatos foram fechados, parlamentares cassados, militares contrários ao golpe foram expurgados das Forças Armadas, os setores que ficaram livres para resistir e expressar, publicamente, foram os jornalistas e os artistas. “Os anos pós-1964 mesmo na grande imprensa contou com a brava resistência de grandes jornalistas, que conseguiam driblar a censura e escrever ou desenhar, cito Márcio Moreira Alves, Millôr Fernandes e Jaguar.” Importância igual se teve no jornalismo fotográfico “como uma resistência crítica ao golpe de 1964”.
Artistas também se organizaram em grupos de teatro, como José Celso Martinez Correia, fazendo “peças críticas e seminais que faziam circular na sociedade o sentimento de que a resistência era possível e mais do que isso, necessária”. E prosseguiu: “Esses artistas ajudaram a puxar grandes manifestações de massa no Rio e depois em todo o Brasil que recomeçam em 1966, 1967 e tem o ápice em 1968. Vão participar de toda a resistência ao golpe, agindo, atuando, os artistas da música, Edu Lobo, Gil, Caetano, Chico, Gonzaguinha.”
“A resistência sempre existiu através da arte”, ensinou Tendler. No Brasil pós-golpe de 2016, o cineasta observa que a resistência é muito grande só que ela não vem da classe média, mas vem da periferia com os funkeiros e o pessoal do hip hop. “A arte é sempre uma das correntes mais atingidas pelo sistema. Em 1964 a 1969, muitos artistas foram presos e torturados. Vimos neste ano, após o impeachment da presidente Dilma Rousseff, que o primeiro ato do governo foi a extinção do Ministério da Cultura. Aqui no Rio, o governo do Estado acabou de fechar a secretaria da cultura e o prefeito eleito Crivella já anunciou que pretende fundir a secretaria da cultura com a de turismo.”
E concluiu: “Percebemos que o sistema não vê a arte como um valor cultural de questionamento da vida e da sociedade, mas como uma forma exclusiva de entretenimento.”