Por Valério Arcary, professor do IFSP (Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia), e doutor em História pela USP.
Quem a si próprio elogia, não merece crédito.
Sabedoria popular chinesa
A verdade é como o azeite: Vem sempre ao de cima.
Sabedoria popular portuguesa
Não se deve elogiar o dia antes da noite.
Sabedoria popular alemã
Historiadores se dedicam a narrativas que pretendem atribuir sentido ao que já aconteceu. Estas linhas são uma análise de um processo ainda em curso, portanto, um pouco inusitadas. Quem escreve a história do tempo presente sabe que, se o passado recente pode ser tantas vezes quase inexpugnável, o futuro pode ser inesperado. Mas, somente em ocasiões muitas raras o que será se revela, realmente, imprevisível. Existem tendências inscritas na realidade, e que expressam as relações de forças sociais e políticas que estão em disputa. Estas tendências são forças de pressão que restringem, em condições normais, as alternativas em disputa a poucas possibilidades.
A surpresa das eleições presidenciais de 2010 no Brasil é que, pela primeira vez desde 1989, elas não deverão ter nada de surpreendente. O Brasil passou a ser previsível. Não serão surpreendentes por duas razões: porque é improvável que Marina possa disputar de igual para igual contra Dilma e Serra (e seria motivo de estupefação o crescimento de uma das candidaturas da esquerda socialista), e porque é improvável que aquele que vier a ser eleito surpreenda a nação como Collor surpreendeu em 1990 (o choque do congelamento da dívida interna), FHC surpreendeu em janeiro de 1999 (o choque da desvalorização cambial), e Lula surpreendeu em 2002 (o choque do mega ajuste fiscal).
Seja eleita Dilma ou Serra não haverá nem surpresa nem choque algum, mas apenas “business as usual”, ou seja, a estabilidade para os negócios. Existe um grande consenso entre o mundo empresarial-burguês e os três c
andidatos eleitoralmente favoritos. Dilma como herdeira dos oito anos lulistas de concessões às grandes corporações, e políticas sociais focadas; Serra e os dezesseis anos paulistas de privatizações e choque de gestão dos serviços públicos; e Marina, porta voz de um lulismo sem o PT, ou seja, paz social com ajustes reguladores. O consenso remete aos desafios político-econômicos a partir de 2011: manter a busca do superávit fiscal acima de 3% do PIB para permitir a rolagem da dívida, mesmo com taxas básicas acima de 10% ao ano, sem sacrificar um crescimento do PIB próximo a 5% ao ano.
As eleições estarão se desenvolvendo em uma conjuntura determinada, essencialmente, pela evolução de três grandes fatores: (a) a maior ou menor incidência da crise econômica internacional sobre o Brasil; (b) a maior ou menor capacidade do governo de transformar as eleições em um plebiscito entre o Governo Lula e o governo Fernando Henrique Cardoso do PSDB; (c) a maior ou menor capacidade do governo Lula transferir para sua candidata a sua popularidade.
No contexto externo a crise econômica internacional evoluiu, no primeiro semestre do ano, para o que poderíamos denominar uma terceira fase: a crise de crédito de alguns Estados Nacionais europeus, como a Grécia, onde a iminência de uma moratória exigiu um mega pacote de US$1 trilhão como operação de resgate para evitar um contágio de desconfiança dos credores internacionais que poderia desestabilizar, também, Espanha e Portugal, além de Irlanda e até Itália.[1] Embora a situação da zona do euro ainda permaneça extremamente grave, porque a estabilização da moeda – ameaçada de forte desvalorização – depende de pacotes anti-populares que podem despertar feroz resistência social, como na Grécia, a economia do Brasil, ao contrário de setembro de 2002, deve atravessar os meses até outubro, relativamente, intacta, o que favorece a candidatura de Dilma Roussef .
Os estatistas reguladores petistas – e seus aliados do PCdB, PSB, PDT, e etc.- estão felizes da vida, porque, do alto dos índices de popularidade de Lula, sabem que José Serra não pode reivindicar o balanço do governo Fernando Henrique Cardoso, sem ser derrotado antes da luta eleitoral começar. No entanto, deveriam lembrar, também, que a transferência de votos de Lula para Dilma é uma batalha ainda por fazer. Exemplos das eleições dos últimos vinte e cinco anos, como a eleição de Fleury por influência de Quércia em 1990, de Pitta pela de Maluf em 1996, e de Kassab pela de Serra em 2008, só para lembrar três processos, confirmam Dilma Roussef como favorita, mas de forma muito diferente da eleição de Lula em 2006, que já foi, por sua vez, muito distinta de 2002.
As bases sociais da votação de Lula em 2006, e da sua popularidade em 2010, não são as mesmas que permitiram a vitória em 2002: o PT tem hoje menos autoridade nos setores organizados da classe trabalhadora, embora o lulismo tenha mais influência do que nunca nos setores desorganizados do proletariado. Essa dinâmica do deslocamento social do voto petista do proletariado urbano e das classes médias assalariadas, e do Sudeste e Sul para o Norte e Nordeste, e das cidades para os interiores, parece repetir o deslocamento da influência eleitoral do PMDB entre 1978/1994. Um deslocamento eleitoral que reflete a redução crescente do voto petista em voto lulista, ou seja, um processo de desgaste político que pode não ser ainda tão significativo a ponto de ameaçar a vitória de Dilma Roussef, mas que sinaliza a dependência do PT diante do caudilhismo de Lula.
Ainda que a intenção do governo Lula seja fazer da eleição um plebiscito, confiante de que nesse cenário a transferência de voto poderia acontecer até o primeiro turno, muitas incertezas sugerem alguma prudência. É possível que as eleições se reduzam a um plebiscito, reduzindo muito o espaço para outras candidaturas, como a de Marina Silva. Mais difícil será ainda o espaço para as candidaturas da oposição de esquerda, através do PSTU, PSOL e PCB. Não obstante, estarão colocados, na verdade, somente dois grandes projetos estratégicos: os que defendem a regulação política do capitalismo em circunstâncias de crise, e os que defendem a necessidade de uma ruptura anticapitalista.
Dilma, Serra e Marina: três propostas de capitalismo regulado
Foram duas, retrospectivamente, as grandes interpretações históricas para o balanço desanimador do capitalismo brasileiro desde o fim da ditadura. Os que consideram que a dinâmica raquítica do crescimento até 2004 – em torno de 2,4% ao ano – foi provocada por fatores externos, portanto, econômicos e exógenos (choque do petróleo; elevação vertiginosa do custo de rolagem da dívida externa; insuficiência da poupança interna); e aqueles que consideram que a estagnação teve na sua raiz os custos sociais da estabilização do regime democrático, portanto, políticos e endógenos (deslocamento das classes médias para a esquerda e forte disposição de luta de uma nova classe trabalhadora; conflito distributivo ao final da ditadura militar e super-inflação; imaturidade da representação política através de partidos nacionais capazes de manter maiorias legislativas; ausências de políticas sociais como políticas de Estado para preservar a paz social).
Não sendo incompatíveis, estas duas perspectivas sustentaram análises polêmicas durante muitos anos. O primeiro campo ideológico foi orientado pelos critérios teóricos do pensamento conservador-liberal (ainda que com concessões ecléticas ao neo-keynesianismo estatal), sobretudo, ao longo dos anos noventa. O segundo campo pelos critérios do pensamento liberal-estatista (ainda que concessões ecléticas às correntes neo-social-democratas de inspiração habermasianas), sobretudo, depois da virada do milênio. Os primeiros giraram para o centro, lentamente, e os segundos para a direita, vertiginosamente, e foi só uma questão de tempo para se encontrarem. Evoluíram para um campo de propostas comuns na última década, diminuindo as arestas do debate político-teórico, com a assimilação mútua
de um projeto comum, e dissolvendo as diferenças políticas táticas que foram características da luta de partidos. Os liberais-sociais do PSDB, os sociais-liberais do PT, e os ecologistas-liberais do PV, todos travestidos, quando lhes convém, de keynesianos reguladores se regozijam porque vêm um Brasil cada vez melhor.
Têm cinco grandes acordos econômicos e políticos de balanço que, alegremente, comemoram: (a) a proporção da dívida pública em relação ao PIB foi reduzida para menos de 50%, o que favorece, potencialmente, a atração de capital externo do cassino financeiro, mesmo com a permanência da crise mundial, porque a margem para endividamento do Estado é, comparativamente a outros países, grande; (b) o controle da inflação foi conquistado com a lei de responsabilidade fiscal, e os superávits fiscais de, pelo menos, 3% do PIB, asseguraram a confiança da burguesia na moeda nacional, e têm permitido que os interesses dos rentistas estejam protegidos; (c) a abertura comercial e financeira dos anos noventa permitiu uma plena integração no mercado mundial, as importações ajudaram a controlar a inflação, favoreceram a reestruturação produtiva, e o Brasil se beneficiou do aumento da demanda das commodities que exporta, e não deve ter grandes perdas comerciais, mesmo em um cenário de possível depressão mundial; (d) a manutenção da independência do Banco Central; o favorecimento do agro-negócio exportador; o impulso do BNDES à formação de grandes monopólios nacionais pela concentração de capital, inclusive, com financiamento público das aquisições, potencializaram as condições para que o Estado eleve os investimentos na economia para um patamar acima de 2% do PIB, abaixo dos 4% dos anos setenta, mas mais que o dobro dos últimos 25 anos; (e) a preservação da relativa paz social alcançada com a parceria dos sindicatos e Centrais sindicais com os governos, e as políticas compensatórias para os setores populares mais desorganizados, permitem prever um cenário de estabilidade política, com o isolamento social dos setores sindicais mais combativos e a marginalidade da esquerda independente.
Os porta vozes desta avaliação otimista serão nas eleições de outubro, indistintamente, José Serra, Dilma Roussef e Marina Silva. Haverá diferenças de tom, mas a música será a mesma. Seus programas eleitorais serão, declaradamente, pró-capitalistas, com ênfases variadas sobre o tipo de regulação mais ou menos social, ambiental e desenvolvimentista que pretendem fazer do capitalismo. Os três candidatos reconhecem diferenças entre si, mas admitem, também, e com estarrecedora franqueza, que são irrelevantes. Haverá alguma poeira levantada no ar por polêmicas, essencialmente, secundárias. Não foi por outra razão que Marina adiantou que, se eleita, convidaria para ministros quadros do PT e do PSDB. Serra, para não ficar atrás, em generosa reciprocidade, respondeu que convidaria quadros do PV e do PT. Não há porque duvidar que Dilma, se eleita, faria, também, os convites mais esdrúxulos, já que o próprio Lula não hesitou em chamar Roberto Rodrigues para a Agricultura e Meirelles para o Banco Central. Tudo isso é possível.
Defensores de Serra, de Dilma e de Marina estão igualmente satisfeitos e reconciliados com quatro apreciações estratégicas: (a) a preservação intacta do aparelho repressivo das Forças Armadas e Polícias Militares herdado da ditadura militar, inclusive, a anistia aos torturadores, como conquista política de um patamar de disputa civilizada; (b) a consolidação da democracia-liberal como regime político, com seus vícios, cronicamente, escandalosos de corrupção eleitoral financiada pelos monopólios, em uma espécie de bi-partidismo entre governo e oposição, ampliado pelas coligações regionais que garantiram uma maioria congressual nos últimos vinte e cinco anos (afinal o PV participou, entusiasdamente, tanto dos governos Serra em São Paulo e César Maia no Rio, quanto Lula em Brasília); (c) as desnacionalizações, privatizações e parcerias com o grande capital em áreas como telefonia/comunicações, distribuição de energia, obras públicas e infra-estrutura, incluindo a participação estrangeira na exploração do pré-sal; (d) a manutenção de um modelo misto – público/privado – de gestão da educação, da saúde, da previdência e da segurança interna.
Serra e a oposição burguesa: um programa para um novo ajuste antioperário
Isto posto, a visão de Serra remete às ansiedades da grande burguesia, sobretudo paulista, – bancos, empreiteiras, monopólios, multinacionais – que insistem em uma avaliação econômica do que consideram as três fragilidades estruturais do país: (a) o Brasil cresceu menos do que poderia porque, em função das necessidades de legitimação do regime democrático, depois de vinte anos de ditadura militar, o Estado agigantou-se, elevando a carga fiscal (de 25% do PIB em 1985, para 36% em 2010) para patamares incompatíveis com taxas de expansão mais altas do que 3% ou 4% ao ano; (b) o peso da máquina pública (6 milhões de funcionários com salários 50% superiores, em média, aos salários de 40 milhões de carteiras assinadas no setor privado) e da previdência social (25 milhões de aposentados e pensionistas), associado ao aumento dos gastos sociais, inibiu os investimentos estatais na modernização da infra-estrutura; (c) a proporção do consumo das famílias e do Estado sobre o PIB aumentou, mas a poupança interna permaneceu muito pequena, enquanto o déficit na conta corrente das transações externas cresce, vertiginosamente, e só fecha em função dos investimentos estrangeiros.
Como se pode concluir, é uma análise, essencialmente, economicista. A premissa é que para voltar a crescer o país precisaria produzir mais e consumir ainda menos, para aumentar as exportações e financiar o déficit externo. Sem um aumento da super-exploração dos que vivem do trabalho seria impossível atrair investimentos produtivos, e o Estado não pode e não deve ser o grande investidor, a não ser em parcerias com o capital privado. O único critério é a saúde dos grandes negócios, ou seja, as possibilidades maiores ou menores do capital de valorização mais rápida, em um contexto de grande competição internacional. Serra se apresenta como o porta voz da grande burguesia brasileira articulada de forma indivisível ao grande capital internacional, como destacou Álvaro Bianchi: “nas décadas de 1980 e 1990, teve lugar uma recomposição profunda da economia nacional que reconfigurou a burguesia (…) Houve, também, uma enorme expansão do setor finan ceiro e um importante crescimento da agricultura e da pecuária vinculadas à exportação (…) Se antes era difícil falar de uma burguesia nacional, agora é uma completa impropriedade” (BIANCHI, 2008).
Destas premissas, Serra retira quatro conclusões: (a) não é possível aumentar impostos, e seria melhor reduzir a carga fiscal do Estado, porque as economias periféricas com as quais o Brasil compete têm encargos muito mais leves, e o peso fiscal do Estado desencoraja investimentos que serão indispensáveis para explorar o petróleo do pré-sal; (b) não é possível manter os atuais níveis de consumo do mercado interno, porque a poupança nacional e a taxa de investimento são insuficientes, portanto, vai ser necessário reduzir gastos de custeio do Estado, despesas públicas com políticas sociais e realizar um arrocho salarial, porque a sociedade vive acima dos seus meios, e não pode continuar contando, indefinidamente, com o financiamento externo; (c) não é possível financiar por mais tempo o déficit externo nas contas correntes, porque o câmbio valorizado do real em relação ao dólar e euro desestimula as exportações e favorece as importações, portanto, a desvalorização da moeda está de novo no horizonte; (d) não é possível competir no mercado mundial, em especial, com economias em estágio semelhante de desenvolvimento, como China e Coréia do Sul, por exemplo, porque as pressões sociais por redução da jornada de trabalho, expansão dos gastos sociais, seja em programas compensatórios como o Bolsa-família, seja em políticas públicas universais como investimentos em educação, SUS ou previdência, são incompatíveis como taxas de investimento estatais em infra-estrutura.
Dilma e a armadilha da política de colaboração de classes sem reformas
Depois de terem passado mais de vinte anos na oposição a Figueiredo, Sarney, Collor e Fernando Henrique, os petistas descobriram, quando chegaram ao poder em 2002, quase da noite para o dia, que o crescimento lento do capitalismo brasileiro durante vinte e cinco anos tinha incontáveis explicações, mas nenhuma delas era responsabilidade da burguesia rentista. Assim como FHC pediu que se esquecesse tudo o que tinha escrito antes de chegar ao poder, Lula pediu que se perdoassem as bravatas de vinte anos de oposição.
Os trabalhadores ficaram sabendo que o fiasco do capitalismo estagnado teria resultado, afinal, de um cenário externo adverso, e das dificuldades internas de conseguir que o Estado pudesse voltar a cumprir o papel de fomento que tinha tido antes de 1980, pelo peso das dívidas, ou seja, aderiram à visão dos governos aos quais fizeram oposição. Por isso, o governo Lula manteve como orientação central oferecer garantias aos credores das dívidas externa e interna, ampliando as políticas compensatórias. Seu principal lastro não foi nem o aumento do salário mínimo, nem o Bolsa família, nem o ProUni, nem a ampliação do crédito consignado. Foi a recuperação econômica que reduziu o desemprego entre 2004 e 2008. O prestígio de Lula, embora abalado pela crise do mensalão em 2005, preservou-se. Ocorreu, também, um deslocamento de posições de força entre frações burguesas. Como assinalou Armando Boito: “sustentamos que o Governo Lula alterou a relação do Estado brasileiro com a burguesia ao melhorar a posição da grande burguesia interna industrial e agrária no interior do bloco no poder” (BOITO, 2006).
A questão de fundo, todavia, é que essa recuperação foi transitória – acompanhou o crescimento mundial – e não foi e não parece sustentável no marco da crise mundial. Para compreender as razões deste impasse é preciso perspectiva histórica. A sociedade brasileira entre 1930 e 1980, mesmo considerando-se os limites impostos pelo seu estatuto subordinado na periferia capitalista, foi uma das economias com mais dinâmica no mercado mundial. Perpetuaram-se as desigualdades, porque a concentração de renda aumentou, não diminuiu. Mas existiu, durante cinco décadas, em função da conjuntura internacional do boom do pós-guerra, um capitalismo com taxas aceleradas de crescimento econômico, enquanto se realizavam as tarefas históricas de urbanização e industrialização. Os dois processos foram simultâneos, ainda que não tenham tido a mesma proporção em todo o país. No entanto, o certo é que existiu mobilidade social para a maioria do povo na fase das grandes migrações do campo para a cidade. Existiu, também, mobilidade relativa beneficiando a classe média.
O crescimento econômico foi mais significativo que a escolarização, mas é provável que tenha ocorrido uma sinergia na confluência de causas. Logo, a promessa de que seria possível ir além dos limites do capitalismo agro-exportador, e fortalecer um crescimento apoiado na expansão do mercado interno e, portanto, viver melhor, através de reformas como uma educação pública universal – a percepção popular do nacional-desenvolvimentismo – era uma promessa que alimentava esperanças. Garantia alguma coesão social para a estabilidade dos regimes políticos entre 1945 e 1964. A força de inércia das ilusões reformistas repousou nessa história, que culminou com a experiência interrompida do governo JoãoGoulart. Lula foi, depois de 1980, o herdeiro destas ilusões.
As condições históricas que permitiram esse crescimento econômico se perderam no pós-guerra. Reformas progressivas na época da decadência do capitalismo só foram possíveis em situações excepcionais, como concessões para evitar a precipitação de revoluções. As poucas reformas do períod
o democrático pós-1985 foram efêmeras e instáveis. Não se construiu um Estado de bem estar social: não ocorreu redução significativa da jornada de trabalho. Ela caiu de 49 para 44 horas semanais, todavia, ainda não se regulamentou a jornada semanal de 40hs, em vigência em quase todos os países industrializados. Entretanto, o desemprego se instalou como um drama social estrutural, quando era residual até 1980. Não se garantiu uma elevação expressiva do salário médio que oscila, dependendo do cambio, em torno de US$600,00, quando supera os US$2.500,00 nos países centrais. Não se conseguiu aumentar, qualitativamente, a escolaridade média que avançou somente de 4 para pouco mais de 7 anos em média para a população com 15 anos ou mais.
Quando raciocinamos neste horizonte de perspectiva, verificamos que a economia brasileira perdeu o impulso que teve até os anos oitenta. A questão decisiva é que o Brasil é hoje uma sociedade econômica e socialmente congelada, comparativamente, àquilo que ela foi. A explicação fundamental deste processo foi a estagnação econômica entre 1980 e 2010 que se manifesta pela permanência da mesma renda per capita: duplicamos o PIB, mas duplicamos também a população. O capitalismo brasileiro do século XXI é um capitalismo com taxa de mobilidade social muito baixa, e a educação deixou de ser um trampolim social. O salário médio dos setores que alcançam uma escolaridade técnico-profissional como os operários qualificados, oscila pouco acima do salário médio. O daqueles com escolaridade elevada, ou seja, o ensino superior, mantém uma curva descendente contínua há mais de duas décadas: professores, quadros intermediários da administração pública ou privada, profissionais assalariados, como médicos, advogados, engenheiros, arquitetos, etc.
Todas as informações disponíveis confirmam que a possibilidade de se conquistar recompensas econômicas e sociais, ou uma vida mais segura e mais confortável através do esforço individual, por exemplo, uma educação maior, está reduzida. Em outras palavras, a mobilidade social relativa está estagnada, ou retrocedendo. A razão de fundo deste processo foi a estagnação econômica. A crise crônica da sociedade brasileira já foi percebida, pelo menos parcialmente, pelas massas trabalhadoras, e mesmo pelas camadas médias, ainda que esse mal estar não se manifeste ainda, como nos anos oitenta, em uma elevação da participação política. Os anos de suspiro entre 2004 e 2008, com seu crescimento baixo, foram recebidos com alívio por uma geração que vivia entre recessões longas e curtas.
Mas, nos setores mais organizados da classe trabalhadora, avança a percepção de não há razões para esperar uma vida melhor pelo sacrifício individual. A função social da educação na sociedade é cada vez mais estabelecer a divisão do trabalho que vai permitir a perpetuação das relações sociais existentes. Ou seja, a educação não questiona as relações sociais, somente as perpetua. As ilusões reformistas entrarão em choque, inevitavelmente, com a realidade e, como esperanças frustradas, irão se dissolvendo.
Os desafios da esquerda socialista nas eleições
A expectativa de que o capitalismo periférico brasileiro poderia realizar uma regulação social do mercado, quando a ditadura militar acabou, era compartilhada por milhões. Para os trabalhadores dos setores mais organizados do proletariado, a confiança na direção do PT e em Lula, e as ilusões na estratégia eleitoral de que as mudanças seriam possíveis através da colaboração de classes, sem rupturas com as instituições da democracia liberal, ou seja, sem choques diretos com os grandes capitalistas, significaram uma desesperadora espera de 20 anos.
Foram vinte anos entre 1982, a primeira participação eleitoral do PT, e 2002. Dirigidas pelo PT e pela CUT, e apostando que mais cedo ou mais tarde Lula venceriam as eleições, as massas populares, pacientemente, aguardaram a hora da vitória eleitoral. Não faltaram tragédias econômicas e comoções sociais nesses vinte anos: duas décadas de crescimento econômico baixo, quase raquítico, em que as turbulências da superinflação dos anos oitenta deram lugar ao desemprego crônico, alimentaram um crescente mal-estar social e motivaram grandes lutas, algumas ofensivas – como a onda de lutas que começou com as Diretas em 1984, e se estendeu até o Fora Collor em 1992 -, outras defensivas, entre 1992 e 2002.
Não obstante, o alarme constante diante de represálias dos donos da riqueza, que mantiveram influência histórica sobre as instituições de poder; a insegurança social dos trabalhadores em si mesmos e na sua capacidade de luta; a imaturidade política de uma geração proletária inexperiente; e o papel desorganizador e desmobilizador de uma direção sindical e política – CUT e PT – sempre disposta a inflar a força dos poderosos e diminuir a força dos explorados; todos estes fatores favoreceram a estratégia reformista de prevenir as lutas sindicais, quando evitável, conter a sua radicalização, quando possível, e impedir a sua unificação, quando incontornável, e redirecionar o descontentamento para as eleições.
Ainda assim, a tensão social crônica alimentou lutas de resistência que, rapidamente, pareciam poder transbordar para além dos limites institucionais do novo regime democrático. Foi possível, em mais de um momento, começar, seriamente, a medir forças entre o proletariado e seus aliados sociais e a burguesia. E o que se viu nas ruas entre 1984 e 2002, foi a revolução brasileira engatinhando os seus primeiros passos. Descobriu-se um Brasil urbano e muito concentrado, em que a força social de choque do proletariado era capaz de atrair a maioria da classe média para o seu lado, e deixar isolado o grande capital. Quando a massa popular saiu às ruas aos milhões para derrotar o Colégio Eleitoral da ditadura exigindo Diretas Já em 1984; quando a maioria do povo aderiu aos métodos de luta da classe operária, com as greves gerais contra Sarney, entre 1987 e 1989; quando a juventude se sublevou e acendeu a ira de milhões contra Collor em 1992; quando as ocupações de latifúndios e as marchas camponesas do MST despertaram a simpatia da maioria da nação, em 1997; quando o Fora FHC foi capaz de unir cem mil na marcha a Brasília em 1999. Em todos estes momentos decisivos, a burguesia brasileira se apequen
ou, se acanhou, se descobriu socialmente isolada, e politicamente, dividida.
Paradoxalmente, a direção que alimentou as lutas contra Figueiredo e Sarney – os combates que legitimaram a fundação do PT e da CUT, e a autoridade de Lula – passou a refreá-las contra Collor e FHC. Mas, isso não impediu que se beneficiasse do desgaste dos governos da Nova República, e vencesse as eleições em 2002. O mais importante, entretanto, é que esse processo histórico de vinte e cinco anos confirmou que, nos limites do regime democrático-liberal e seu calendário eleitoral, a vida das massas não poderia mudar. Parece inegável que essa esperança reformista, com a perspectiva que os últimos oito anos nos oferecem, foi frustrada.
As poucas reformas de conteúdo socialmente progressivo realizadas sob o regime da democracia liberal, como a extensão da previdência social à população rural, ou a implantação do Sistema Único de Saúde, o SUS, ficaram muito aquém das necessidades reprimidas durante duas décadas pelo regime militar. As poucas reformas do governo Lula, como o aumento do salário mínimo levemente acima da inflação, a expansão de vagas no ensino público federal, ou as políticas compensatórias como o Bolsa-Família e as cotas de acesso para afro-descendentes, foram muito pouco, depois de tantas lutas e tanto tempo.
Fossem quais fossem as coligações articuladas pelo PSDB ou pelo PT em Brasília, todos os governos, desde a derrota de Maluf em 1985 no Colégio eleitoral da ditadura, foram incapazes de diminuir, significativamente, as desigualdades sociais acumuladas. Embora a recuperação econômica entre 2004-08 tenha trazido para uma maioria da população uma sensação de alívio, o impacto da crise mundial de 2008-09 não deixará de ter repercussões internas, porque a vulnerabilidade externa do Brasil não só não foi revertida, como se agravou – a previsão é de um déficit em contra corrente de US$ 50 bilhões em 2010 – apesar do aumento das reservas para um patamar em torno de US$ 250 bilhões. O agravamento da crise capitalista pela iminência de uma moratória da dívida externa da Grécia, que seria um terremoto financeiro ainda maior do que a falência do Lehmann Brothers, em 2008, sinaliza que estamos entrando em uma nova situação mundial. Esta nova situação, todavia, só deverá chegar ao Brasil depois das eleições de outubro.
Referências:
BIANCHI, Álvaro. A crise financeira é a crônica de uma morte anunciada, in IHU on line, Revista do Instituto Humanitas Unisinos , edição 278. São Leopoldo, outubro de 2008. Consulta em maio de 2009: http://www.scribd.com/doc/7991193/A-Financeirizacao-Do-Mundo-e-Sua-Crise-Uma-Leitura-a-Partir-de-Marx
BOITO JR, Armando. A burguesia no Governo Lula in Neoliberalismo y sectores dominantes. Tendencias globales y experiencias nacionales. Basualdo, Eduardo M.; Arceo, Enrique. Buenos Aires. CLACSO, Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales, Agosto 2006. ISBN: 987-1183-56-9
[1] A primeira fase da crise foi o período precipitado pela inadimplência do mercado da habitação dos EUA, que culmina com a quebra do Lehmann Brothers em setembro de 2009, quando a crise se manifestou como uma turbulência muito séria do mercado financeiro norte-americano; a segunda fase da crise foi a intervenção de emergência do FED ( o Banco Central norte-americano), acompanhada na sequência pelos Bancos Centrais da Europa e do Japão, liberando recursos em escala inusitada para oferecer garantias de que a corrida dos bancos uns contra os outros não se transformaria em corrida dos correntistas, ou seja, da população mundial contra os bancos, prevenindo o pânico generalizado, ou um novo 1929.