Encontro promovido pela Associação Nacional dos Jornais (ANJ) propõe cruzada nacional pelo acesso a informações públicas. Grandes grupos midiáticos se esquecem, porém, de abrir caixa-preta da construção de suas empresas e dos benefícios que obtiveram do setor público neste processo. Por Marco Aurélio Weissheimer, da Agência Carta Maior, 13/04/2005
“Enquanto os governantes insistirem em controlar a informação pública, como se fosse propriedade do Estado e não do público a quem deve servir, nossa democracia estará incompleta”. A frase de Nelson Sirotsky, diretor-presidente da RBS e presidente da Associação Nacional dos Jornais (ANJ), no lançamento da Rede em Defesa da Liberdade de Imprensa, dia 11 de abril, na capital gaúcha, expressa uma meia-verdade. O livre acesso da população à informação pública é, de fato, uma condição para a democracia, mas os proprietários dos grandes meios de comunicação não têm interesse de que toda essa informação torne-se, verdadeiramente, pública. Onde está, por exemplo, a informação sobre a dívida dos grandes conglomerados midiáticos com o poder público? Ou sobre o período de vigência e os critérios de liberação de concessões públicas de rádio e televisão, outorgadas pelo Estado às empresas privadas?
Essas perguntas levantadas por uma articulação de movimentos sociais e pelo Sindicato dos Jornalistas do Rio Grande do Sul não foram debatidas no 3° Encontro Regional de Liberdade de Imprensa, promovido pela ANJ e pela Unesco. O evento serviu de palco para o lançamento da Rede em Defesa da Liberdade de Imprensa, que terá um portal na internet (www.liberdadedeimprensa.org.br) para “registrar ataques contra o direito de informação”. Na avaliação do presidente do Sindicato dos Jornalistas do RS, José Carlos Torves, essa iniciativa defende, na verdade, a liberdade de empresa e não de imprensa. “A ANJ defende a liberdade de empresa, já que não convidou a sociedade civil nem os trabalhadores em jornalismo”, protestou Torves. De fato, os sindicatos de trabalhadores e outras entidades da sociedade ligadas à área da comunicação não foram convidados para o encontro.
A Articulação Nacional pelo Direito à Comunicação (CRIS Brasil) repudiou, em nota oficial, o fato de a Unesco estar discutindo liberdade de imprensa justamente com os donos da mídia. “A liberdade de imprensa é um valor fundamental, mas o conceito tem sido apropriado para sustentar uma estrutura extremamente desigual no campo da comunicação. Hoje, o maior obstáculo à liberdade de expressão no país é a concentração da propriedade”, afirma a nota. Um dado ilustra essa afirmação: dados da própria ANJ mostram que apenas seis grandes grupos são responsáveis por 55,46% de toda a produção diária dos jornais impressos do país. Para protestar contra esse quadro, o movimento ZeroFora e o Sindicato dos Jornalistas do RS promoveram uma pequena manifestação em frente ao prédio do Ministério Público do RS, onde ocorreu o encontro da ANJ.
Convidados para uma “cruzada nacional”
O jornal Zero Hora, do Grupo RBS, em uma matéria de uma página na edição de 12 de abril, listou as personalidades convidadas para o encontro: o governador do RS, Germano Rigotto (PMDB); o presidente do Tribunal de Justiça do Estado, Osvaldo Stefanello; o presidente do Tribunal de Contas da União, Adylson Motta; a procuradora-geral do Estado, Helena Maria Coelho; o presidente do Tribunal Regional do Trabalho, Fabiano de Castilhos Bertoluci; o prefeito de Porto Alegre, José Fogaça (PPS); o vice-prefeito de Porto Alegre, Eliseu Santos; o presidente do Tribunal de Contas do Estado, Victor Faccioni; o presidente do Conselho de Administração da RBS, Jayme Sirotsky; e o assessor de imprensa do governo de Santa Catarina, José Augusto Gayoso. Aparentemente, os promotores do evento não consideraram importante convidar representantes dos trabalhadores da área, nem do governo federal, criticado no encontro por querer controlar o acesso à informação.
A Rede em Defesa da Liberdade de Imprensa pretende lançar o que chamou de “uma cruzada nacional pelo acesso a informações públicas”. Um editorial publicado pelo jornal Zero Hora, em sua edição de 11 de abril, definiu o espírito da cruzada: “Embora a Constituição assegure essa prerrogativa, a falta de regulamentação adequada e a negligência dos setores gestores públicos acabam privando os brasileiros do benefício. Na prática, não apenas a história do país é parcialmente sonegada à população como também cada indivíduo tem sua vida dificultada pela impossibilidade de exigir informações sobre políticas públicas do seu interesse”. Esqueceu de mencionar que uma das informações sobre a história do país sonegada à população é aquela que trata das relações entre os grandes grupos midiáticos e o poder. O Grupo RBS, por exemplo, apoiou a ditadura militar em editoriais e tornou-se uma grande empresa de comunicação neste período.
Informações sonegadas, um velho problema
Segundo dados divulgados pela própria RBS, por ocasião das comemorações de seus 45 anos, em 2002, a expansão da empresa se consolidou em 1970, auge da ditadura militar, quando foi criada a sigla RBS, de Rede Brasil Sul, inspirada nas três letras das redes de comunicação dos Estados Unidos, CBS, NBC e ABC. A partir das boas relações estabelecidas com os governos da ditadura militar e da ação articulada com a Rede Globo, a RBS foi conseguindo novas concessões e diversificando seus negócios. Em 2002, o grupo já reunia 24 emissoras de rádio (AM e FM), 21 canais de TV, um portal de internet, uma empresa de marketing e um projeto na área rural, tendo participação na NET Serviços de Comunicação, maior operadora de TV a cabo do Brasil. Esses números mostram que, em meio século de existência, a RBS exorbitou em muito os limites da concentração dos meios de comunicação no Brasil.
Segundo a legislação federal vigente naquele ano (artigo 12 do Decreto 236, 28 de fevereiro de 1967), uma mesma entidade só poderá ter concessão ou permissão para executar serviço de radiodifusão, em todo o País no limite de 4 rádios AM e 6 FM por localidade, 3 AM de alcance regional e cinco emissoras de TV em VHF em todo o País, o
bedecendo ao limite de duas por Estado. Os números da RBS ultrapassam de longe esse limite. A história de como os executivos da RBS conseguiram contornar essas restrições para construir seu império midiático, de modo similar ao que ocorreu com outros grupos empresariais no Brasil, é um exemplo de “história do país parcialmente sonegada à população”, como afirma o editorial de Zero Hora. Outro episódio que permanece obscuro para a opinião pública é a participação da empresa no processo de privatização do sistema de telefonia pública do país.
Segundo pesquisa realizada por Suzy dos Santos (do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Culturas Contemporâneas da Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia) e Sérgio Capparelli (do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Informação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul), a RBS esteve presente em praticamente todos os momentos do processo de privatização das telecomunicações no país. Ela ingressou no negócio em 16 de dezembro de 1996, quando ganhou a licitação para a privatização de 35% da Companhia Riograndense de Telecomunicações (CRT), comandada pelo então governador Antônio Britto (ex-funcionário da RBS), através do consórcio Telefônica do Brasil. Após ser derrotado por Olívio Dutra nas eleições de 1998, Britto foi trabalhar como consultor do Banco Opportunity, que passou a administrar parte do controle acionário da privatizada CRT.
O público e o privado
As relações da RBS com o setor público sempre oscilaram entre a parceria e a oposição feroz. Vários ex-funcionários e colaboradores tiveram e têm destacada atuação na esfera pública, como são os casos de Antônio Britto (ex-funcionário da RBS, ex-porta-voz presidencial, ex-ministro, ex-governador e hoje executivo em uma grande fábrica de calçados no RS), José Fogaça (ex-colunista da RBS, ex-senador e hoje prefeito de Porto Alegre), Ibsen Pinheiro (ex-funcionário da casa, ex-presidente da Câmara dos Deputados e hoje vereador na capital gaúcha) e Sérgio Zambiasi (senador que, em boa medida, deve sua carreira política à fama obtida como apresentador de um programa na Rádio Farroupilha e colunista do jornal Diário Gaúcho – ambos do grupo RBS -, espaços que ele ainda ocupa ativamente). A parceria transformou-se em oposição sistemática quando Olívio Dutra foi governador do Estado, período quando, segundo a empresa, a liberdade de imprensa esteve seriamente ameaçada.
No encontro promovido pela ANJ em Porto Alegre, o jornalista Fernando Rodrigues, coordenador do Fórum de Direito de Acesso a Informações Públicas, defendeu que a ampliação deste livre acesso “não é uma mera necessidade da corporação jornalística, mas de toda a sociedade”. “Trata-se de um direito ligado à defesa da liberdade de expressão”, acrescentou. Se as grandes empresas de comunicação do país estão, de fato, preocupadas com a ampliação destes direitos poderiam começar a fazer a lição de casa e abrir a caixa-preta que contém a verdadeira história da construção de seus pequenos, médios e grandes impérios, dos benefícios que obtiveram da esfera pública neste processo e dos reais interesses que explicam seus humores editoriais dependendo do governo que está no poder. Afinal de contas, como disse Nelson Sirotsky, enquanto o controle da informação não estiver na mão do público a nossa democracia estará incompleta.