Por Sheila Jacob
O professor Dênis de Moraes, do Departamento de Estudos Culturais da UFF, lançou neste ano o livro Batalha da Mídia, em que analisa avanços em termos de políticas públicas de comunicação na América Latina. Dênis de Moraes foi palestrante no 15° Curso Anual do NPC, que ocorreu entre os dias 11 e 15 de novembro. Em entrevista ao BoletimNPC, ele disse considerar o Governo Lula “uma decepção completa no sentido geral das políticas de comunicação”; falou sobre a 1ª Conferência Nacional de Comunicação, para ele importante pelas discussões dá visibilidade, e não pelas expectativas de mudança na legislação ou políticas públicas, já que “mais de 250 parlamentares têm interesses diretos ou indiretos nos negócios da comunicação”; e comenta ainda o exemplo recente da Argentina na revisão da lei de comunicação do país, principalmente pela metodologia democrática de consulta a diversos segmentos da sociedade civil.
Dênis de Moraes, durante sua palestra no 15° Curso Anual do NPC
BoletimNPC: Falando um pouco sobre o seu livro A Batalha da Mídia, no início você faz um panorama mais teórico sobre o conceito de hegemonia, por exemplo, e a importância da contra-hegemonia. E na segunda parte você aborda certos governos latino-americanos, alguns mais claramente de esquerda e outros mais de centro, que tomaram ou vêm tomando medidas progressistas em relação à comunicação. Como você enxerga o Governo Lula nesse contexto, e que medidas tem tomado em relação a esse tema?
Dênis de Moraes: No sentido geral das políticas de comunicação, o Governo Lula é uma decepção completa. Desperdiçou dois mandatos, que poderiam ter feito avançar pelo menos a discussão de uma nova e abrangente legislação de comunicação no país, o que é inadiável pois a comunicação é central na vida social contemporânea. Então o Governo Lula optou por conviver harmonicamente com uma legislação anacrônica e com um sistema de comunicação profundamente elitista e a meu ver antidemocrático, pois concentra de forma dramática os setores de informação e entretenimento nas mãos de poucos grupos privados. Isso me parece mais grave no tocante à legislação de radiodifusão, porque o atual governo se limita a homologar as renovações de concessões de rádio e TV. Eu acho que deveria ser um fator de motivação, mobilização, reflexão dos caminhos no sentido de uma abertura democrática e no sentido de uma repartição igualitária do espectro da radiodifusão em 1/3 para o setor público, 1/3 para o setor privado, e 1/3 para a sociedade civil.
BoletimNPC: Você reconhece algum avanço nesses oito anos de mandato?
DM: O que se pode apontar como algum progresso está fora da área das políticas de comunicação. Ocorreu certo avanço em algumas áreas do audiovisual, porque houve alguma reorientação dos fundos públicos das iniciativas governamentais no sentido de um maior apoio da produção audiovisual independente. Nessa área percebemos também uma descentralização das verbas, com produtores culturais e por meio de editais como o dos Pontos de Cultura e de Mídia Livre, por exemplo. É importante frisar que essas são iniciativas do Ministério da Cultura, e não do Ministério das Comunicações nem da Secretaria de Comunicação da Presidência da República. Isso é um dado interessante: foi fora do sistema de comunicação do Governo Federal que isso se processou. Acho que é um fato positivo, houve avanços, mas eu diria que de maneira localizada. Do mesmo modo que, de uma forma mais tímida, houve uma abertura maior das verbas oficiais de publicidade para outras áreas da mídia que não são comerciais. Mas isso eu também questiono, porque mais de 90% das verbas oficiais de publicidade vão para a mídia comercial. O que o atual Governo fez, e acho que tem seu mérito, foi uma espécie de inclusão de uma parte da mídia alternativa e comunitária nesse sistema de verbas públicas de publicidade. Mas isso, como eu disse, de uma maneira muito tímida, porque a concentração brutal das verbas de publicidade em torno da mídia comercial se manteve inalterada.
BoletimNPC: Voltando ao aspecto da homologação de concessões, ainda assim o Governo deixa muito a desejar em relação a radiodifusão comunitária, não é?
DM: Sim, claro, porque como a Amarc (Associação Mundial de Radiodifusão Comunitária) e a Abraço (Associação Brasileira de Radiodifusão Comunitária) demonstram através de pesquisas e levantamentos, o Governo Lula foi o que infelizmente registrou o maior número de fechamento de rádios comunitárias neste país. E também é o Governo recordista em termos de apreensão e indiciamento de pessoas ligadas com rádios comunitárias. Isso é um fato lamentável, pois nem o governo FHC em seus oito anos fez tanto contra as rádios comunitárias quanto o governo do PT. Mas isso decorre da inércia do Governo Federal em tomar iniciativas ou mobilizar a sociedade para alterar a legislação de radiodifusão comunitária no país, que é anacrônica e elitista; que favorece, preserva e protege os interesses dos grandes grupos de mídia que querem manter sob seu controle e hegemonia. Então acho que também no plano da radiodifusão comunitária o Governo Lula é desastroso.
BoletimNPC: E quanto à 1ª Conferência Nacional de Comunicação (Confecom), que ocorre em dezembro, você acha que significa uma possibilidade de se avançar em políticas para a comunicação?
DM: Acho que a Conferência é um marco histórico significativo, na medida em que a comunicação passou a ter visibilidade maior perante a sociedade civil organizada. E também, por meio das discussões e das publicações, as questões essenciais que envolvem a comunicação estão tendo uma maior at
enção de outras áreas da população, dos formadores de opinião. Sem dúvida esse e um mérito da Conferência e de todo seu processo. Mas temos que pensar em duas coisas. Primeiro: o mesmo governo que convocou a Confecom durante oito anos muito pouco fez em termos de políticas de comunicação. Queria ressaltar o fato de que o atual governo tem ampla maioria na Câmara dos Deputados e no Senado Federal. Trata-se de uma coalizão de mais de 12 partidos que governam o país. Então, em tese, não seria por falta de votos que o Governo Lula deixaria de fazer uma mudança na legislação de comunicação. Agora não o faz justamente porque tem uma base parlamentar extremamente heterogênea e formada por importantes partidos da direita do país. Esse é um traço que o distingue de outros governos latino-americanos, em que a direita não faz parte do Ministério nem da administração federal. No Brasil, nós temos esse fenômeno perverso: um governo formado por áreas de esquerda, que incorporou à sua coalizão forças do atraso e forças reacionárias. Então não é casual o fato de não ter avançado muito nessa área, porque conforme a revista Carta Capital publicou no ano passado, mais de 250 parlamentares têm interesses diretos ou indiretos nos negócios da com no país. Dentro destes, mais de 70% compõem a base parlamentar do governo do PT. Isso ajuda a entender porque os interesses políticos prevaleceram sobre os interesses da cidadania, os interesses da democratização da comunicação.
Outro aspecto: não devemos cultivar tolas ilusões e falsas euforias em relação aos resultados da Conferência, que me parecem que serão muito tímidos, do ponto de vista de alterações da legislação vigente. A Conferência é mais importante naquilo que desperta, que mobiliza, que dá visibilidade, porque dificilmente nós teremos a tradução das discussões em termos de mudanças de marcos regulatórios, de normas, principalmente da radiodifusão. Isso tem uma razão de ser. A Conferência foi convocada para dez meses antes das eleições presidenciais. Um governo que está se arrastando em final de mandato, que deveria ter feito isso no seu primeiro ano para salientar a importância da comunicação no desenvolvimento do país. Por isso eu acho que a Confecom é mais importante pelo que expõe publicamente do que nós termos uma expectativa de mudanças objetivas no sistema de comunicação do país. Tenho a impressão de que esses progressos serão extremamente tímidos, para não dizer inexistentes em algumas áreas, como é o caso da radiodifusão.
BoletimNPC: Temos na América Latina um exemplo recente que é o da Argentina. Recentemente a presidente Cristina Kirchner aprovou uma revisão da legislação da comunicação. Você pode falar um pouco sobre esse avanço?
DM: Quando a gente fala no Brasil sobre nova legislação de comunicação mais democrática, isso parece ser algo fora da realidade objetiva do país e da região. O exemplo recente da Argentina mostra para o mundo que é possível, dentro do direito democrático, respeitando a contratualidade e as diferentes correntes de opinião, oferecer a mais avançada legislação de comunicação nesse momento não apenas no continente, mas no ponto de vista internacional. Uma lei que contempla vários aspectos absolutamente cruciais em termos de políticas e do sistema de comunicação. Isso significa um forte combate à concentração da mídia; um forte apoio à produção audiovisual independente; uma decisiva reorientação legal no sentido de prestigiar veículos alternativos e comunitários; uma repartição equânime do espectro da radiodifusão em 1/3 para o setor público, 1/3 para o privado, e 1/3 para a sociedade civil; entre outras medidas democratizadoras.
Queria destacar o fato de que, além da coragem política da presidenta, existe o exemplo histórico que seu governo deu no sentido de criar uma metodologia de consulta à sociedade organizada, incluindo o empresariado, igreja, sindicatos, centrais sindicais, sindicatos dos jornalistas, universidades, associações profissionais… Quer dizer, dentro da sede do poder da nação, os diferentes segmentos sociais foram recebidos para ouvir reivindicações, sugestões, ponderações. O governo da Argentina não é de esquerda, é progressista, mas tem possibilidades de fazer uma reforma como essa por ter mobilizado sua base de sustentação parlamentar na Câmara dos Deputados e no Senado para aprovar essa legislação.
A lei, além da metodologia, contemplou grande número de pontos de uma organização da sociedade civil chamada Coalizão para uma Radiodifusão Democrática. Esse grupo representa vários setores empenhados nessa causa, e suas propostas contribuíram para a construção de uma lei que servisse primordialmente ao interesse público, e não ao interesse mercantil das grandes corporações. Esse episódio revela a determinação política de um governo de centro-esquerdo do qual não faz parte a direita. Eu quero destacar esse fato: o governo é de centro-esquerda, mas não tem participação da direita nem de forças do atraso que estão em aliança com os meios de comunicação que movem uma das mais espúrias campanhas de desmoralização de um governo democrático e progressista na América Latina. E o governo procura informar a sociedade e esclarecer seus propósitos democratizadores que nada têm a ver com a campanha sórdida que os meios de comunicação estão fazendo contra a lei e contra o governo. Esse é um exemplo que serve para o Brasil, vindo de um país localizado a 2 horas e 40 minutos da cidade do Rio de Janeiro.