Originalmente publicada na Revista Classe, lançada pela Associação dos Docentes da UFF, no dia 9/6/08. 

“A fotografia precisa mostrar o que há de errado no mundo”

Stela Guedes Caputo

Ele nos recebeu, a mim e ao fotógrafo Luiz Nabuco, no dia 7 de março de 2008, uma tarde ensolarada de sexta-feira, num jardinzinho de uma Igreja no Rio Comprido, onde está funcionando hoje o Jornal do Brasil. Quem já conversou com ele deve concordar comigo, tudo em Evandro Teixeira ri: os olhos, o sorriso, as mãos, a voz, numa expansão de generosidade. Com alegria de corpo inteiro ele começa a contar histórias, muitas, e, quando a gente percebe, atravessamos com ele na vereda de luz e sombra aberta pela fotografia. Contaminado por essa paixão desde criança, em Irajuba, no interior da Bahia, onde nasceu, Evandro se transformou na principal referência do fotojornalismo brasileiro. Suas imagens, a maioria em preto-e-branco, eternizaram episódios políticos do Brasil desde a década de 60. Pelo mundo, registrou momentos de guerra ou de glória, em especial, cobrindo as olimpíadas. Evandro, que é editor de fotografia do Jornal do Brasil, acaba de lançar mais um livro “68: Destinos. Passeata dos 100 Mil”.  O que partilha conosco desta vez é a famosa e histórica foto feita por ele no dia 26 de junho de 1968. Uma geração reunida na Cinelândia ia às ruas protestar contra a Ditadura Militar brasileira. O livro, de 120 páginas, conta a vida de 100 pessoas que estiveram no protesto e  foram captadas por sua lente na passeata. 40 anos depois, as 100 pessoas selecionadas foram fotografadas novamente por Evandro. Elas lembram o que as levou à Passeata dos Cem Mil e falam um pouco sobre os caminhos que tomaram de lá para cá. Nessa travessia, Evandro ganhou muitos prêmios, publicou vários livros e suas fotos estão em museus do Brasil e do exterior. No entanto, ouso dizer que sua principal conquista tenha sido conseguir fazer o que nos pede o poeta Manoel de Barros: “se podes olhar, vê; se podes ver, repara”. Evandro nos ensina a reparar. 

Queria falar primeiro do livro. O que significou e significa para você fazer esse livro? 

Evandro – O mais importante é que, como nos meus outros livros, este também não é apenas um livro de fotografia, é um livro de história porque fala dos anos de chumbo no Brasil, especialmente sobre o Movimento Estudantil. Em 1968, este movimento teve papel importante na França e em muitos países e não foi diferente aqui. Acompanhei a trajetória dos estudantes, Edson Luiz morto e… nesse dia específico, acompanhei a passeata dos 100 mil. Por incrível que pareça o jornal não publicou essa foto no dia seguinte. Só quando publiquei o livro “Fotojornalismo”, em 1983, (a segunda edição foi publicada em 1989) é que a Elayne Fernandes, a designer que trabalhava no livro, se encontrou na foto e também achou o marido. Eles estavam na passeata, mas não se conheciam ainda. Assim nasceu a idéia desse projeto. Fizemos um site “68 destinos” e continuamos divulgando. A coisa foi crescendo, encontramos várias pessoas que ali estavam  e em 2007 com o patrocínio da Petrobrás  finalizamos o projeto com a publicação do livro.  

Voltando 40 anos: no dia 26 de junho de 68 ao sair da redação do JB, sua tarefa era acompanhar o Vladimir Palmeira na passeata. De repente você estava no que ficaria conhecido como “A Passeata dos 100 mil”. O que você sentiu? 

Evandro – A gente vivia sob pressão. O JB era na Rio Branco e o ponto de encontro dos estudantes. Toda manifestação estudantil se concentrava ali antes porque o JB se posicionava contra a Ditadura. Como acompanhei toda trajetória estudantil, desde 64, desde a tomada do forte de Copacabana, já que fui o único do jornal a chegar ao forte, eu vinha acompanhando o corre-corre, a pauleira toda. Como não podia deixar de ser, no dia 26 de junho de 68 eu também estava ali com eles. Todo dia tinha quebra-quebra. Já tinha acontecido a morte do Edson Luiz. Na sua missa de sétimo dia, por exemplo, a polícia arrebentou sete costelas do Alberto Jacob, fotógrafo do JB e tomaram o equipamento dele. Era isso, em toda manifestação, “o pau comia”. As pessoas apanhavam muito, os jornalistas eram arrebentados, o JB chegou a ser fechado à bala. Nesse dia já saímos preparados para
levar porrada esperando sangue e mortes, mas por incrível que pareça, foi o dia mais tranqüilo no Rio de Janeiro. Eu tinha de estar de olho do Vladimir porque havia um boato de que ele seria preso nesse dia. Minha obrigação era estar com ele desde a manhã até o final, quando a passeata acabou no Palácio Tiradentes e ele entrou no seu fusquinha azul e foi embora. Mas, naturalmente, além de não desgrudar do Vladimir, fiquei de olho em todos os fatos. Além do que, na passeata estavam figuras muito importantes de vários setores, Clarice Lispector, Chico Buarque, Caetano, era uma multidão e eu de olho em tudo. 
 

A censura fazia com que os jornais saíssem com várias páginas em branco. Como os fotógrafos conseguiam burlar a censura e publicar essas imagens? 

Evandro – A gente fazia um contato especial, escuro. E os censores perguntavam o que tinha neles, a gente despistava falando “são os malucos dos estudantes”. No dia seguinte saía a matéria com nossas fotos, o pau comia e a  gente sumia uns dias, depois voltava. Os caras entravam bufando nas redações, rasgavam os textos, empurravam os jornalistas. Mas eles não sabiam ler as imagens direito e a gente conseguia enganar os militares. Isso fez com que, em alguns momentos, pudéssemos superar a censura, o que vocês não conseguiam com os textos. 

No livro, você diz que desde quando flagrou a tomada do Forte de Copacabana, na madrugada de 1º de abril de 64, decidiu que sua câmera fotográfica seria sua arma contra a Ditadura. Qual era sua visão do fotógrafo antes dessa tomada de lado, de decisão política? 

Evandro – A fotografia tanto pode mostrar as belezas do mundo como as atrocidades do mundo. Para o fotojornalismo, a fotografia precisa mostrar o que há de errado no mundo. No meu caso sempre preferi fotografar nosso cotidiano, a miséria da nossa gente e acabei concluindo que a fotografia é uma arma de denúncia. Eu acompanhei todos os militares ditadores no Brasil e, não posso dizer que tive o prazer de enterrá-los, mas, digamos que testemunhei quando foram enterrados, vamos deixar assim. Em 83, o Figueiredo ficou sabendo que eu tinha lançado “Fotojornalismo” e pediu um exemplar. Dei o livro a ele que ficou criticando dizendo que se o Brasil tinha tanta beleza por que eu só mostrava miséria e ridicularizava os soldados? Eu disse a ele que o papel de mostrar as belezas brasileiras não era meu, era dele e do ministro de turismo dele. Disse que eu era fotojornalista e minha função era retratar a realidade do meu país. E, que na verdade, o Brasil é o país mais belo do mundo sim, mas há mais miséria que beleza, por isso eu mostrava a miséria e as atrocidades. Não podia dizer as “suas atrocidades”, se não ia levar porrada e iria em cana, mas, para um bom entendedor… 

O que foi mais difícil na construção desse livro?

Evandro – No começo eu achei que seria muito difícil encontrar toda essa gente. A idéia inicial era “68 Destinos”, para fazermos alusão ao ano. Ao ir para o site, as pessoas foram aparecendo, algumas moravam em outro país, mas foram aparecendo. Levamos 5 anos e eu cheguei a pensar que não iria conseguir encontrar 68 pessoas. Como em outros projetos, nesse também eu financiei a parte inicial, mas esse foi bem mais trabalhoso que “Canudos”, por exemplo. Depois que a Petrobrás resolveu patrocinar, foram publicadas matérias em vários jornais e, por causa dessa divulgação, nós, que procurávamos 68 pessoas, concluímos essa primeira edição do livro com 100 participantes e hoje já temos 170 catalogados. Resolvemos parar nas 100 pessoas porque continuava sendo uma referência aos 100 mil que estiveram na passeata. Fechamos o livro, mas, quem sabe, na próxima edição, ampliamos. Até hoje, tem gente que liga ou escreve querendo estar no livro, mas ele já está pronto. 

Você falou com 100 pessoas que estiveram na Cinelândia naquele dia. O que foi feito das lutas, dos sonhos? Li alguns depoime

ntos e tive a impressão que a maioria associa àquele tempo de lutas a um “certo romantismo”, como se lutar com mais radicalidade fosse apenas uma característica da juventude e, pior, uma juventude de um passado superado, esquecido… 

Envadro – Acho que tudo mudou, o mundo mudou é claro. Acredito que diante dos acontecimentos de hoje as pessoas estão mais acomodadas. Naquela época se lutava mais, se corria mais atrás, se buscava mais e havia mais esperança de se mudar tudo. Observo um conformismo muito grande, inclusive na nossa profissão. Mesmo com aquele regime ditatorial, tínhamos muita esperança, porém nem tudo aconteceu como pensávamos. 

Você acompanhou o presidente Lula na campanha, acompanhou as caravanas, se tornou amigo dele. Está decepcionado com ele? 

Evandro – Antes eu não gostava do Lula, mas eu tinha de acompanhá-lo pelo jornal e o projeto dele mudou minha cabeça. Passei a ter muita esperança com o Lula, acompanhei todas as caravanas e viajei com ele. Navegar pelo “Velho Chico” foi uma experiência maravilhosa, para nós jornalistas e para ele também. Votei nele e cheguei a imaginar que esse “cabra” seria o Fidel Castro que idealizávamos para o Brasil. Acho que ele faz um governo razoável, a vida da classe média mudou, mas não é o que pensávamos, imaginava uma mudança radical para o país que não aconteceu. 

O país mudou, as pessoas mudaram. E você, como se transformou nesses 40 anos? 

Evandro – Eu continuo buscando realidades, novos projetos e novas idéias. Acompanho os avanços tecnológicos. De certo, há quarenta anos eu tinha mais energia, era mais novo. Mas continuo buscando ideais, esperançoso de que esse nosso país mude, já que essa é uma nação rica onde não deveria haver tanta miséria. A minha luta continua.  

Classe – E a fotografia? Como é ter vivido a experiência de revelar filmes em cubículos apertados e improvisados, fazer malabarismos para “enviar o filme” de onde quer que estivesse até à redação e viver hoje a era digital e virtual? 

Eu tenho as minhas Leicas, não vendi nenhuma e continuo usando. Mas fotografo com as digitais sempre. Naquela época era um sofrimento, já fui expulso de vários hotéis no mundo porque se fazia uma sujeira muito grande nos banheiros dos quartos que transformávamos em laboratórios. Levávamos um pano preto para vedar a luz do banheiro, os produtos químicos, ampliador, papel fotográfico, álcool para secar o filme correndo… era uma desgraça e sempre com pressa porque trabalhávamos com fuso horário diferente. Hoje, com esse tipo de material, com essa onde de terrorismo, seria impossível entrar em qualquer país do mundo, principalmente nos EUA. Imagina entrar com iposulfito, certamente iam pensar que era cocaína. Para entrar com a transmissora nova e com um lap top já é um problema! 

Lembra algum episódio específico? 

Evandro – Em 1986 estava em Budapeste para cobrir uma viagem da seleção brasileira e fiz uma tremenda sujeira no banheiro. O jogo foi à noite e tínhamos de mandar logo a foto para a edição que estava fechando. Nunca tinha como fazer provas ou revelar com cuidado, por causa da correria. Jogávamos tudo no banheiro. Nesse dia esqueci de limpar, a

química secou e grudou tudo. O banheiro ficou imundo e a arrumadeira chamou o gerente. Fui expulso aos gritos de “seu porco!” “seu imundo!” depois veio a era da fotografia digital, porém em 2000, uma máquina digital custava 20 mil dólares. As olimpíadas, onde há a maior concentração de fotógrafos no mundo, é um bom exemplo. Em Sidney, 2000, cerca de 90% dos fotógrafos ainda usavam analógicas. No Brasil só havia uma digital, na Folha de São Paulo. Para se ter uma idéia, na competição do Torbem Grael, saíamos do Press Center (onde ficam concentrados os jornalistas) até o Iate Clube e, de carro, era uma hora. Do Iate clube até o mar aberto eram mais duas horas de lancha, contando a volta, cerca de 4 ou 5 horas. Centenas de fotógrafos queriam revelar filmes e a Kodak não dava vazão ao volume de filmes, esperávamos cerca de 4 horas. Ou seja, umas 9 horas todo o processo. Fora que tínhamos de scanear, jogar no computador e mandar. Já em 2004, na Grécia, na mesma competição, o Grael repetiu a medalha de ouro e, quando ele levantou a bandeira, todo mundo clicou e da própria lancha as fotos foram transmitidas através de laptop, tudo enviado em 10 minutos, graças a tecnologia digital. A qualidade é excepcional e para o jornalismo, de um modo geral, foi uma mão na roda absurda. Nesse sentido foi maravilhoso. Mas eu uso os dois. As galerias e museus ainda não aceitam as digitais. Apesar da qualidade das digitais as diferenças ainda são grandes. A foto feita com analógicas tem textura diferente, contrastes diferentes. 

Conhecemos suas maravilhosas fotos, sua ousadia em conseguí-las, mas e os erros? Você já perdeu alguma foto? 

Evandro – É o cotidiano das ruas que ensina, o dia-a-dia. E esse cotidiano nunca deixa a gente voltar de mãos vazias para o jornal. Os erros acontecem, mas sempre nos ensinam, surpreendem e a foto acontece. Nunca disse que não dava, e estou sempre tentando superar os erros na vida e no trabalho.

Como você avalia o fotojornalismo de hoje? 

Evandro – De maneira geral o jornalismo mudou muito. Os jornalistas estão mais acomodados, não possuem a dinâmica de antes. Não sei se é o baixo salário, infra-estrutura ou a falta de brilho e paixão das gerações atuais. Antes, jamais saíamos para uma matéria importante sem termos quatro ou cinco dias para pesquisar sobre o assunto. Hoje tudo é para agora, correndo. Hoje tem releases para tudo, as assessorias mandam tudo, o que gera mais acomodação entre os jornalistas. Eu fico revoltado quando vou fazer uma matéria e mandam somente o fotógrafo. Pelo amor de Deus! O jornalista precisa estar presente, como é que vai escrever sem sentir e ver o que está acontecendo? Muitas vezes é o fotógrafo que precisa apurar a matéria e contá-la ao repórter. Imagina quantos problemas isso gera? Sem contar que a matéria fica fria quando se faz por telefone ou release. Como é que se faz uma matéria sobre um desabamento sem estar no local conversando com as pessoas? E mais, antes havia uma equipe formada pelo repórter, fotógrafo e motorista, aliás, muito importante na sugestão de pautas que rendiam muitos furos de reportagens. Hoje nossa profissão está decadente. Mas não é só com jornalistas não, todas as profissões vivem um momento de grande decadência. A acomodação contribui pra isso. 

Sua câmera foi uma arma contra a Ditadura e hoje, contra o que ela luta?  

Evandro – Minha câmera continua lutando contra tudo. Se estou numa passeata, num tiroteio, nunca penso que vou deixar de fazer meu trabalho porque estarei incomodando a polícia ou aos políticos. Estou aqui para fazer meu trabalho e meu trabalho é denunciar o que está errado e o que está errado é a injustiça. Esse é meu ponto de vista. 

Como é cobrir a violência no Rio hoje? O que você viu mudar no que se refere a relação da reportagem policial? 

Evandro – Certamente antes nós tínhamos mais facilidade para entrar em favela o que não acontece hoje. Nos dias atuais, a imprensa não é bem vista e muitas vezes retaliada. Acho que o que mudou é que antes nós servíamos de apoio para a comunidade e hoje não. Muitas vezes subi a favela da Mangueira, naquela época, com amigos estrangeiros para beber um chopinho no alto da comunidade. Hoje isso é impossível. 

Você diz que o livro é uma homenagem aos fotojornalistas que viveram essa época no JB e cita especialmente alguns. O grupo é masculino. De lá para cá, a mulher conquistou muito espaço no fotojornalismo. Como foi acompanhar isso? 

Evandro – É uma homenagem a esses grandes fotógrafos que trabalharam comigo. A maioria está morta. Mas a mulher conquistou espaço em todos os lugares. A primeira vez que uma mulher entrou no gramado do Maracanã ela foi vaiada e teve que sair. Hoje as mulheres são radialistas, são fotógrafas dentro do gramado, são policiais e temos grandes fotógrafas. A Cíntia Brito foi uma das primeiras e um grande nome do fotojornalismo. Hoje temos a Miríam Fichtner, a Marcia Folleto, mulher corajosa e arretada. Foi maravilhoso ver isso na fotografia e no texto, eu diria que uma mudança radical, porque cerca de 70% das redações é composta por mulheres. 

E o JB, uma vida inteira dedicada a este jornal e vendo-o passar por tantas mudanças, o que você pode dizer sobre isso? 

Evandro – O JB ainda é um jornal respeitado no Brasil. Claro que não é mais aquela grandiosidade. Tínhamos 52 funcionários só no departamento de fotografia e hoje temos 12, tudo precarizado. As mudanças foram radicais em todos os sentidos. Mas o jornal continua tentando chegar cada vez mais perto do que foi um dia. 

Desde que a primeira fotografia foi produzida em 1825, pelo francês Joseph Nicéphore Niépce, ela estaria envolvida no debate entre técnica e arte. Naquela época, para se reproduzir uma imagem foram necessárias oito horas de exposição à luz solar. Hoje, as digitais calculam tudo e, quanto mais avanços tecnológicos, mais polêmicas. A fotografia é arte? 

Evandro – Como escreveu Otto Lara Resende no prefácio do meu primeiro livros “estas fotos são mais que simples flagrantes, captam uma imagem, sua luz, sua sombra, seu volume e seu vazio. Mas captam igualmente o tempo, um certo tempo e o espaço, um certo espaço. Daí a densidade deste documentário, que fala do nosso mundo e fala de quem o viu, de quem o fixou… quer-me parecer que é a isto que se chama arte”. Ou o poeta Carlos Drummond de Andrade: “A fotografia – é o codinome da mais aguda percepção que a nós mesmos nos vai mostrando e da evanescência de tudo edifica uma permanência, cristal do tempo no papel”, é arte… só pode ser.