[Francisco Barbosa/Brasil de Fato | Fortaleza (CE)] Uma das marcas da gestão da gestão de Jair Bolsonaro foram os ataques seus e de seus seguidores aos veículos de comunicação nacionais e internacionais, há vários registros do ex-presidente agredindo jornalistas, principalmente mulheres. A excessiva circulação de fake news e a necessidade de combater a desinformação também passaram a fazer parte da rotina dos brasileiros com Bolsonaro. Helena Martins, professora da Universidade Federal do Ceará, coordenadora do Telas – de pesquisas em Economia, Tecnologia e Políticas de Comunicação da UFC e integrante do DiraCom – Direito à Comunicação e Democracia conversou com o Brasil de Fato sobre o papel e a importância da comunicação e do jornalismo para a existência do Estado Democrático de Direito, sobre o combate a produção e divulgação de Fake News e muito mais. Confira!
Qual é o papel da comunicação dentro de um Estado Democrático de Direito?
Em primeiro lugar é importante ter em vista que não é possível falar em democracia sem a possibilidade da sociedade, de cada cidadão estar informado e ter condições de participar do debate público, das deliberações e, até mesmo, fazer as suas escolhas nas eleições e no cotidiano. Então, para o Estado Democrático de Direito é fundamental que a gente tenha também jornalismo, no sentido de apresentar essas informações de uma forma organizada para a população, comunicação, inclusive, do próprio Estado de modo que possa também fornecer informações do que desenvolve, dar transparência às suas ações. A transparência, inclusive, é um dos princípios da administração pública, de acordo com a Constituição Brasileira. Então tudo isso fala da possibilidade de participação na esfera pública por parte da população em geral.
O que é a liberdade de imprensa e qual a diferença entre liberdade de imprensa e liberdade de expressão?
A liberdade de imprensa é uma ideia que surge, de fato, com a configuração de veículos de comunicação da própria imprensa. Então os registros mais antigos, segundo Venício Lima, professor que se dedica a esse tema, datam aí do fim do século XV, mas, sobretudo, a partir da configuração da burguesia, da organização de imprensa é que a gente tem aí um crescimento dessa atividade e uma reivindicação da possibilidade de imprimir livremente.
Acho que o centro da ideia da liberdade de imprensa é a possibilidade de imprimir, de fazer circular informações e opiniões sem a intervenção do Estado. A própria defesa dessa liberdade de imprimir tomou um lugar muito forte em relação aos Estados, até então autoritários, no sentido de permitir a circulação das informações produzidas por vários personagens, inclusive, burgueses. Já a liberdade de expressão é uma ideia muito mais antiga, uma compreensão que está associada à capacidade de autogoverno. Se aproxima hoje, portanto, de uma ideia da cidadania.
Essa perspectiva da liberdade de expressão, segundo Venício Lima é bastante antiga, ela aparece seis séculos antes de Cristo, para a gente ter uma ideia de como essa necessidade de participação informada na esfera pública é muito antiga, e dá também o tom de como ela é essencial para que a gente possa ter, de fato, uma participação informada, ter o que hoje nós chamamos de cidadania.
A diferença é que a liberdade de expressão é uma liberdade muito mais ampla, significa que todas as pessoas devem poder expressar suas opiniões livremente, poder circular, ter o direito de fala. A liberdade de imprensa ela já está muito mais associada, de fato, a atividade de imprimir, uma atividade que foi com o passar do tempo se tornando cada vez mais restrita a algumas empresas, ou mesmo a conglomerado midiático como a gente viu a partir do século XX. Então, a liberdade de expressão é mais ampla, e não à toa, por isso ela é considerada também um direito humano fundamental.
A comunicação e o jornalismo têm um papel importante de divulgar a verdade, mas dá para perceber um crescimento na divulgação de fake news. Na sua opinião por que cresceu tanto?
É importante perceber que com o crescimento do que antes eram impressores, editores individuais naquilo que foi sendo transformado em grandes conglomerados midiáticos, empresas que têm seus objetivos econômicos, políticos e ideológicos, o trato da informação passou a assumir vieses, inclusive, viés de classe. Então, desde a configuração dos grandes meios de comunicação nós temos a produção de uma informação muito deturpada, porque são pautadas por esses interesses dos donos desses meios. A partir da perspectiva da economia política da comunicação, a gente percebe que a disputa em torno da informação é uma disputa histórica e não à toa nós convivemos historicamente com manipulação da informação, com a criação de estereótipos, com o silenciamento.
Nós já temos uma produção de desinformação historicamente, mas em determinados momentos históricos, onde a gente tem uma disputa muito forte, em vez de você ter esse trabalho cotidiano, de criação, de uma informação inclinada, enviesada, você tem também a estratégia de lançar mão diretamente de fake news, de desinformação, de mentiras, isso pode ser associado aos grandes veículos de comunicação e também, cada vez mais, devido aí às transformações tecnológicas, a configuração atual da internet e a utilização desse meio de comunicação por determinados grupos políticos.
O que eu quero dizer com isso é que, para mim, o aumento da desinformação em determinados momentos está muito relacionado a uma intensificação da disputa da informação e uma intensificação que está, por sua vez, associada aí às próprias disputas de rumos da sociedade. Nós vivemos uma crise, uma crise do sistema capitalista muito profunda e para essa crise são apresentadas as mais diversas respostas à esquerda e à direita. A direita utiliza a estratégia de desinformação para incidir nessa crise. Não à toa muitas das desinformações, que esse campo político circula, vão de encontro às instituições, trabalha em uma lógica de romper as mediações constituídas pelo próprio Estado Democrático de Direito, vão minando aí outros agentes políticos como, no caso do Brasil, o STF, por exemplo, para se legitimar e para fazer com que a sua visão de mundo, seja a visão de um mundo abraçada pelos receptores dessa desinformação.
E aí a gente entra em uma certa contradição, porque de fato, por mais que os meios de comunicação tradicionais, o que às vezes é chamado de jornalismo profissional, se baseiem nos interesses também dos seus donos, eles também foram constituídos historicamente por sujeitos, regras, pressões sociais e regulações que acabaram também criando toda uma forma de ser desse jornalismo, que faz com que ele não seja declaradamente, ou abertamente mentiroso. Você tem ali a ideia de dois lados, por mais que sejam ideias muito frágeis, a própria ideia de imparcialidade, são ideias que de alguma forma orientam a própria produção informativa e que constróem caminhos de pressão social para que essa informação, construída pelos meios tradicionais, sejam informações minimamente vinculadas com a realidade.
Tem também a questão dos profissionais, a atuação deles, as brechas que eles cavam nessa imprensa. Esses veículos de comunicação tradicionais são guiados por valores, por compromissos profissionais que não aparecem, de forma alguma, no que a gente tem visto na internet a partir, especialmente, de alguns veículos que operam na internet, que são veículos desinformativos. Claro que há outros veículos populares alternativos muito interessantes e fundamentais, eu diria, para a liberdade de expressão, para o direito à comunicação no âmbito da rede, mas o que a gente tem visto aí no caso da extrema-direita é a produção de informação completamente dissociada de qualquer compromisso ético, político e profissional.
Por várias vezes vimos a imprensa sendo atacada por bolsonaristas. Por que há tanta rejeição aos meios de comunicação?
Como a gente tem uma imprensa tradicional aqui no Brasil, especialmente, muito desvinculada da sociedade, muito distante, muito fechada aos anseios, aos clamores sociais e muito criticada por toda essa sua postura, inclusive postura política, seja durante a ditadura militar, ou mais recentemente durante o golpe contra a presidenta Dilma Rousseff, você tem uma imprensa que é difícil de ter a sua legitimidade ressaltada pela população de uma forma geral. É uma imprensa com muitas falhas e que acabou também abrindo muitas margens para que essa extrema-direita atue contra essa instituição, que é uma instituição importante para a democracia, que é a instituição midiática.
Então você tem esse cenário muito difícil para a imprensa que precisa por um lado se legitimar socialmente, que tem sido atacada e que também, por outro lado, tem outro desafio que é um desafio econômico, inclusive. O crescimento do número de veículos de comunicação tem levado a uma dispersão da audiência, então muitos veículos, jornais, por exemplo, Jornal O Globo tem hoje uma audiência muito menor do que tinha há alguns anos. Não à toa eles se aproveitam também desse momento de muita crítica a desinformação para se arvorar como donos da verdade, como os jornalistas e os jornais que têm credibilidade. Tem toda uma disputa também de audiência, de economia, portanto, de poder que passa em meio a essa disputa mais ampla sobre a informação de qualidade que deve circular no Brasil.
Qual a importância da comunicação para esses próximos anos onde teremos novos governos?
Nós temos para os próximos anos disputas muito importantes no campo da comunicação. Todo o estado de coisas que nós temos visto está diretamente relacionado a comunicação. Eu falo aqui do ataque à democracia e da projeção de valores conservadores na sociedade. Isso não pode ser lido sem que sejam considerados também fatos como a ampla concentração midiática no Brasil, a ausência de pluralidades, de diversidade, a ocupação da TV aberta, do rádio, por fundamentalistas, por programas policialescos que atentam e promovem leituras contra os direitos humanos, contra a esquerda e o campo progressista de uma forma geral. Nós chegamos até aqui muito por conta também do cenário de comunicação que se constituiu no Brasil e é importante enfrentar esses antigos desafios.
Agora nós também temos novos desafios: a desinformação que acontece na internet está extremamente associada a própria configuração que a internet tem hoje, pautada por interesses capitalistas das plataformas digitais e por um modelo de negócios que é baseado em uso de dados, em projeção de conteúdos, quaisquer conteúdos, sem que haja nenhum compromisso ético e político por conta de ampliação de visibilidade a partir do pagamento, por um certo interesse em manter as pessoas vinculadas diretamente àquele conteúdo numa lógica de disputa da atenção da população. Nessa disputa tem lugar aí os conteúdos mais extremados que acabam também gerando muita atenção, gerando muitos comentários, muitos compartilhamentos. Enfim, há todo um modelo de negócios que fala de uma economia política das plataformas digitais que é muito problemática para a sociedade como um todo e esse é um novo desafio que deve ser encarado pelos próximos governos.
Isso já tem acontecido em alguns lugares do mundo, a União Europeia aprovou duas leis recentemente que tratam do tema da organização dos mercados e dos serviços digitais, vários países dos BRICS também têm tido debates sobre essa questão. Então acho que é um outro campo também de desafio que tem que ser encarado pela sociedade brasileira e, particularmente, pelos governos que devem desenvolver não só mecanismos atualizados de diálogo com a sociedade para conferir transparência às suas ações, para pôr em debate público as suas medidas, mas também que devem atuar no sentido de organizar esse ambiente tão fundamental para a democracia por meio dos mecanismos de regulação, de políticas públicas. Isso é muito importante que seja de fato desenvolvido no Brasil.
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Edição: Camila Garcia