O filósofo marxista Leandro Konder faleceu recentemente, na tarde do dia 12 de novembro de 2014. Recuperamos essa entrevista feita pela jornalista Raquel Júnia em 2009, quando trabalhava para o NPC. Nela, Konder fala sobre a importância de se repensar as lições de Marx nos dias atuais, atualizando-as não para negá-lo, mas sim para exibi-lo. Ele também fala um pouco sobre sua trajetória no PCB e conta passagens bem humoradas de sua vida. Confira a entrevista do saudoso Leandro Konder.
Por Raquel Júnia
BoletimNPC – Quando pensamos em fazer essa entrevista com o senhor estávamos próximos do dia 1° de maio e elaboramos algumas perguntas relativas a essa data. A primeira, por exemplo, dizia respeita ao sentido da palavra trabalhador. Geralmente quando se diz que fulano é trabalhador, a expressão traz uma carga de sentidos positivos. Também faz parte do imaginário da esquerda o sujeito trabalhador que carrega em si todas as possibilidades de transformação. De onde o senhor considera que vêm esses sentidos?
Leandro Konder – É uma longa história. Na verdade, a palavra trabalho, que antecede trabalhador, vem do latim e era um instrumento de tortura. Era um utensílio que tinha três pés de madeira – tripária – para castigar os escravos que tentavam fugir. Os escravos eram amarrados a essa tripária e sofriam muito. Posteriormente a palavra mudou de sentido e começou a difundir um significado positivo com os teóricos cristão-protestantes. Eles começaram a teorizar e a dizer: “o trabalho redime o ser humano, o trabalhador está envolvido em um clima de santidade”. E aí veio um terceiro momento. Então, o primeiro momento é o trabalho como tortura. No segundo momento, o trabalhador é honrado por ser o homem que realiza a superação dos problemas presentes, de uma maneira meio mística. E o terceiro momento é o que diz que o trabalhador não é uma figura que precisa de exaltação. Também não tem nada a ver com aspectos desagradáveis da atividade física chamada trabalho. O trabalhador é um homem que trabalha e vai além do trabalho porque ele leva com ele a disposição de luta para superar o que está aí, funcionando do jeito que está. Nós não podemos invejar os trabalhadores porque eles são explorados, oprimidos, mas também temos que olhar para eles com esperança de que eles realizem uma transformação social importante.
BoletimNPC – Essa esperança nos trabalhadores ainda existe hoje?
Leandro Konder – Ela existe, mas está muito machucada, muito sofrida porque a crise das experiências socialistas na prática tem um efeito mais devastador, sem dúvida, do que o questionamento teórico ao qual foram submetidas as idéias socialistas. As teorias socialistas foram severamente atacadas por gente até competente, mas resistiram bem. Agora, o fim da União Soviética, as transformações que estão acontecendo na China, são coisas que têm um efeito muito grave. Aí é difícil acreditar, mas se a gente acompanhar direitinho o trabalho feito por [Karl] Marx no Capital, ou se a gente discutir e esclarecer o que Marx escreveu neste livro, vamos perceber que nem tudo está perdido, tem coisas muito importantes que estão vivas aí. No momento essas coisas não são divulgadas porque o clima psicológico que nós estamos vivendo é muito ruim.
Mas existe também o Marx filósofo, que não depende da discussão sobre as formas de opressão e de exploração. O Marx filósofo tem idéias sobre o que é a história, o que é o ser humano, que são idéias bem importante. O encontro de Marx com os trabalhadores hoje pede uma complementação, uma correção teórica que nós ainda não conseguimos fazer. Estamos devendo isso, não podemos nos limitar a repetir Marx, o que ele disse e escreveu, nós temos que pensar em recuperar a radicalidade e a combatividade de Marx, recuperar isso recriando em condições diferentes das quais Marx trabalhou.
O Carlos Nelson Coutinho dizia uma coisa interessante: “no partido ensinaram para a gente que a pior coisa do mundo era o revisionismo. O revisionismo matava a ideologia, matava a teoria da revolução proletária, matava Marx, matava o espírito revolucionário radical, então, o revisionismo era abominável. Mas agora estamos dependendo de um revisionismo de novo tipo, não para destruir Marx, pelo contrário, para exibir Marx”.
BoletimNPC – Para retomá-lo?
Leandro Konder – Para vê-lo usado pela classe média, pela pequena burguesia, por alguns intelectuais desanimados, decadentes, pessimistas. Precisamos recuperar aquela garra do velho Marx, isso de maneira revisionista, porque senão a gente não sai da sombra dele. Marx é um escritor muito poderoso, muito vigoroso. Com certeza, se estivesse vivo ele diria para radicalizar isso aí.
BoletimNPC – A Revista Veja fez uma reportagem sobre o marxismo, dizendo que era uma teoria ultrapassada…
Leandro Konder – A Veja é abominável, né…
BoletimNPC – Por que esse medo todo do marxismo?
Leandro Konder – É um medo herdado do século XIX. O negócio ficou preto porque de repente a burguesia sentiu que estava enfrentando um adversário poderoso. Aconteceu no final do século XIX. Marx não viu isso, já tinha morrido; mas Engels viu, criaram-se os primeiros partidos de massa na Europa, o partido socialista italiano, o partido socialista francês, o partido social-democrata dos trabalhadores alemães e o Labour, inglês, que é o único que não é marxista. Esses partidos assustaram a burguesia, mas eu acho que o susto maior veio em 1917 quando os leninistas tomaram o poder. Aí já era uma coisa concreta, não era um programa de transformação, era um programa de administração de um aparelho de Estado conquistado.
BoletimNPC – O senhor comentou que estamos em uma época difícil, é a mais difícil pela qual o senhor já passou?
Leandro Konder – Sem dúvida. As outras a gente tinha assim problemas cuja solução seria um pouco demorada, seria sofrida, dolorosa, mas a gente nunca teve dúvidas tão entranhadas como agora. Acabou a União Soviética, tem determinadas pessoas que já morreram que se elas estivessem vivas, o que elas diriam olhando esse espetáculo terrível. Tem um velho comunista que participou do movimento de 35, esse é velho mesmo, em 35 eu estava nascendo e ele participou da Intentona. Ele mora por aqui, eu encontro com ele de vez em quando, o encontrava sempre pela rua, agora eu não tenho saído mais, minha saída tem que ser preparada por razões de saúde. Até alguns anos atrás quando eu o encontrava ele me perguntava assim: “Leandro, você continua comunista?” Eu dizia: “continuo, continuo sim”. Aí ele me abraçava emocionado. Ele dizia assim: “esses tolos desses nossos companheiros que desembocaram por aí, saíram do partido e ficam dizendo bobagens, eles pensam que a União Soviética acabou”. Eu disse: “Gutman”. Falei o nome dele não era para falar, mas eu dizia: “Gutman, eu também penso que a União Soviética acabou, Marx não acabou, mas a União Soviética acabou”. Ele dizia assim: “iludido, você é um iludido!” E ia embora, decepcionadíssimo.
BoletimNPC – Isso quando?
Leandro Konder – Há uns três anos mais ou menos.
BoletimNPC – Quando o senhor menciona o partido se refere ao PCB, certo?
Leandro Konder – Sim, o PCB. Entrei em 51 e saí em 82.
BoletimNPC – Por que o senhor saiu?
Leandro Konder – O programa já tinha se tornado grotesco. Eu entrei no PCB porque era um partido revolucionário, tinha um compromisso com a busca da transformação revolucionária. Quando nós fomos para o exterior, eu e alguns amigos fugindo da prisão, eu tive a oportunidade de viajar muito, eu trabalhava numa universidade, ganhava relativamente bem. Foi o período no qual eu trabalhei menos na minha vida, mas em compensação lia mais, tinha tempo para ler, lia em casa, viajando e aí eu tinha atividade partidária. E aí eu comecei a me preocupar com o nosso programa. Nós tínhamos uma posição minoritária e o Prestes também tinha uma posição minoritária, mas a posição majoritária era uma posição de centro, nem muito à esquerda, nem muito à direita, centro, mas isso para mim era oportunismo descarado.
Então quando voltamos para cá, houve uma última tentativa de fazer luta interna, em 79. Aí a gente veio e chegou aqui, os velhos comunistas dirigentes do partido manobraram, recuperaram o controle do partido e criaram uma situação insuportável para nós, não nos expulsaram, mas nós nos sentimos expulsos. E aí ficamos procurando outro lugar e fomos baixar no PT. E aí o PT também num primeiro momento parecia que era um partido de um novo tipo, revolucionário, e nos decepcionamos muito, aí agora fundamos o PSOL. Eu sou o fundador número 101.
BoletimNPC – E como o senhor vê a caminhada do PSOL até agora?
Leandro Konder – O PSOL também não está resolvendo o problema. Eu acho que eticamente é importante buscar um caminho seu, eu não tenho nada contra companheiros que ficaram no PT. Eu divirjo deles em função da minha experiência, mas a minha experiência é minha, eu não posso cobrar deles que adotem um programa político baseado na minha experiência, não na deles. Então, não sou muito iludido com o PSOL, não. Quando eu entrei no partido comunista, eu entrei porque realmente me emocionava, em 1951. Meu pai tinha sido candidato a senador e o partido bem sectário colocava assim: “Para senador, vote em Valério Konder, na vaga de Luis Carlos Prestes”. Depois, quando eu entrei no PT, eu também entrei com algum entusiasmo. Agora eu estou no PSOL e não abro, estou para ajudar, mas não estou possuído por aquele arrebatamento que eu vivi no passado.
BoletimNPC – O senhor considera que o PSOL ou algum outro partido ou movimento hoje é revolucionário?
Leandro Konder – O PSOL tem programa, mas a revolução ficou meio inócua. O programa revolucionário desses partidos, o PCB, o PCdoB adotou uma linha muito complicada, de uma maneira muito pouco convincente. Agora, eu acho que é o melhor espaço para a gente sonhar com a revolução, porque o capitalismo controlou a situação, está vivendo essa crise agora com alguma competência. Eu confesso que me alegro muito, meu sentimento de velho comuna quando vejo uma crise dessa, eu vibro [faz gestos de vibração]. Mas a gente tenta, vamos ver até onde é possível caminhar, vamos ver o que a gente pode obter. O Lula é um velho sonho nosso, do partido comunista, colocar um operário no poder. E o operário chegou ao poder, é um político espertíssimo, mas não tem nenhuma característica de instinto de classe.
BoletimNPC – E os movimentos sociais?
Leandro Konder – O Movimento Sem Terra é um movimento que cresceu, tem força, mas não acredito nele como um partido. O partido tem que se formar numa outra história, mas o MST é importante.
BoletimNPC – O que o senhor acha que falta para a gente avançar?
Leandro Konder – Eu acho que falta senso de realidade, conhecimento da realidade, porque a gente se baseia em observações muito argutas que fazemos e não temos outras para substituí-las. Então, nós estamos de certa forma prisioneiros de uma teoria do conhecimento que nos armou para algumas batalhas importantes do passado, mas não está armando direito agora. Porque agora a gente precisava de uma outra visão da realidade, mais completa, mais profunda, mais justa e a gente não tem.
BoletimNPC – Seria falta de intelectuais de esquerda?
Leandro Konder – Não, os intelectuais sozinhos não vão fazer nada, os intelectuais sozinhos só vão complicar as coisas. Eles vão fazer os trabalhos deles, mas eles não vão resolver o problema. Nós, intelectuais, participamos.
Depende de um partido?
Leandro Konder – Sim, de um partido. Nesse ponto eu sou bem antigo, estou disposto a verificar, a continuar observando a realidade.
BoletimNPC – Como o senhor vê a América Latina?
Leandro Konder – Eu fico sempre de pé atrás, meio desconfiado, acho que a gente precisava tanto ter uma visão continental abrangendo a América Latina como um todo, quando a gente vê uma manifestação dessa com um Hugo Chávez da vida, a gente tende a se envolver. Mas eu não sei se é o caminho, o caminho é voltar com muita pesquisa, muito estudo, não só de intelectuais, mas de pessoas provenientes diretamente das bases populares.
BoletimNPC – Como é que o senhor vê os meios de comunicação?
Leandro Konder – Eu acho que eles não são responsáveis em primeira instância por nada do que nos preocupa e combatemos. Eles são expressão da sociedade como a sociedade é, como está. Se ela adotar algumas medidas democratizadoras eficazes, ainda que setoriais, já isso aí cria uma condição para a gente pressionar a imprensa. A imprensa está muito reacionária, os jornalões têm uma estrutura no Brasil de privilegiados, dois jornalões no Rio, dois em São Paulo e tem alguma coisa significativa em Minas, no Rio Grande do Sul.
BoletimNPC – E a mídia alternativa?
Leandro Konder – A mídia alternativa atinge pouco, é importante que ela exista, mas eu não consigo me iludir a respeito das possibilidades de encaminhar uma transformação agora e desde já. Eu acho que infelizmente estamos condenados a um período de transição que é um porre. Mas tem que fazer. E eu vou tentar sempre que possível falar em público, moderando um pouco esse meu juízo pessimista para não fazer o jogo deles. Mais forte do que o meu desânimo e o meu pessimismo é a vontade de aperrear um pouco a classe dominante. Mas sem ilusão porque meu poder de aperreação diminuiu bastante…
BoletimNPC – Mas existe uma diferença entre estar desiludido e se vender para o outro lado..
Leandro Konder – Ah, sim, sem dúvida, sem dúvida.
BoletimNPC – Porque por mais que o senhor esteja desiludido…
Leandro Konder – Eu estou desiludido, mas estou na luta.
BoletimNPC – Mas não é o fim do mundo, ou é?
Leandro Konder – Não é o fim do mundo. Inclusive o que eu acho também que tem um problema que é importante, que temos que investir nisso. É um problema ético. Eu acho que os caras que se vendem não se vendem por puro pessimismo, por desânimo, se vendem também por um enfraquecimento dos valores éticos. Eu não entendo como é que ex- companheiros estão completamente acomodados cumprindo funções melancólicas. Eu acho importante a gente dialogar com essas pessoas, não insultar, nem agredir, mas cobrar: “fulano, como é que você convive com essa realidade social tão desequilibrada, tão desigual, como é que você consegue desistir de buscar um caminho? Eu acho que podemos fazer alguma coisa nessa dimensão ética”.
BoletimNPC – E de onde vem a ética? É um aprendizado?
Leandro Konder – Eu acho que você forma, não dá para você assimilar valores éticos como você assimila informações do jornal. Sua reação com as informações do jornal é uma reação meio neutra: “vamos ver como é que a burguesia está mentindo”. O ético é quando você está sozinho em casa, saiu todo mundo, você vai ligar a televisão, não está concentrando, não está legal, então você vai para o seu quarto e pensa: “na minha vida, estou sendo justo em relação a mim, em relação às pessoas de quem eu gosto”. A ética vem assim um pouco por reflexão. Eu gosto muito de etimologia. Etimologia é um grande barato, a origem das palavras. Então, pensamos assim, reflexão, o que é reflexão? É o caminho que a gente vai ter que trilhar para rever nossos valores éticos, nossa escala de valores. Reflexão, flexão, dobrar, re, outra vez. Quer dizer, você não se satisfaz com a primeira impressão: “ah, a sociedade é isso mesmo, a vida é assim, não temos nada a fazer, nós não podemos dar murro em ponta de faca”. Aí você volta, se vê, debruça, reflete e tenta não se convencer de uma coisa que não pode ser.
BoletimNPC – O Lula disse, certa vez, que era estranho uma pessoa mais velha que continuasse de esquerda, da mesma forma que era estranho um jovem de direita…
Leandro Konder – Eu sou estranho. Meus amigos são estranhos, mas é uma estranheza que se justifica, uma estranheza bonita, um inconformismo, um inconformismo que eu acho muito positivo, mesmo que as perspectivas políticas sejam muito duras. Eu faço realmente o que eu posso. Mas engajar para mim se tornou impossível. É tão complicado, eu tenho que tomar remédios de três em três horas, eu tenho que fazer fisioterapia, então não dá para viver uma vida de jovem revolucionário, mas eu sou um velho revolucionário.
BoletimNPC – Houve recentemente uma manifestação pela abertura dos arquivos da ditadura em frente ao do Clube Militar. O deputado federal Jair Bolsonaro (PP – RJ) que saía de uma reunião dentro do Clube disse aos manifestantes: “Sabe qual foi o problema? O problema foi torturar e não matar”…
Leandro Konder – [risos]. Eu fui interrogado em 1970 por um coronel da PM, ele me chamou e disse: “o senhor vai ser ouvido como testemunha e não como acusado”. Eles queriam pegar o professor Vieira Pinto, que tinha sido integralista de direita e virou comunista, de esquerda. Ele foi meu professor, fiz o curso no Iseb e eles encontraram apostilas minhas com as minhas anotações. Depois, fui convidado para dar uma aula. Aí tinha um sargento datilógrafo, naquela época ainda não tinha computador. Aí o sargento disse: “o depoente reconhece que deu uma aula sobre… sobre o que hein?” Aí eu falei: “sobre dialética”. Aí o sargento: “o que é isso coronel?”. Aí o coronel para minha surpresa, disse assim: “isso é um negócio que os comunas inventaram para dizer que uma coisa é, mas não é, mas é [fazendo gestos com as mãos]”.
O Jair Rodrigues fazia um gesto assim: [faz o gesto com as mãos], ele fez um gesto de Jair Rodrigues para repudiar a dialética e queria muito pegar o Vieira Pinto. E disse assim: “o senhor não pode negar que foi aluno dele”. Eu disse: “não, não vou negar isso não, acho que ele foi um bom professor, nesse sentido estou muito satisfeito de ter sido aluno dele”. E o sargento dizia: “e o interrogado sobre se reconhecia ou não que as aulas do professor Vieira Pinto estavam dadas de uma forma que favorecia a revolta popular contra as autoridades…” O coronel disse: “pode responder diretamente para o sargento”. Aí o sargento escreveu: “respondeu que tendo sido aluno do professor Vieira Pinto pôde constatar que as massas nunca vieram à aula do professor Vieira Pinto, havia no máximo oito alunos no período de maior influência dele, e por outro lado, se viessem não entenderiam o professor Vieira Pinto”. O professor Vieira Pinto é um homem com linguagem filosófica hegeliana muito difícil… Aí eles: “o senhor não está colaborando, não está colaborando…” Eu estava preste a ser promovido de testemunha para acusado, mas não aconteceu, não.
Durante algum tempo as pessoas falavam obsessivamente da sua experiência de prisão. Agora as pessoas estão preferindo esquecer. Conheço dois casos de pessoas que preferem não falar.
BoletimNPC – Por que o senhor acha que isso está acontecendo?
Leandro Konder – Acho que é natural. As pessoas não são masoquistas. Agora é complicado, isso complica o nosso quadro, nosso plano de intervenção na realidade, ação transformadora da realidade.
BoletimNPC – O senhor acha que é melhor falar?
Leandro Konder – Falar quando é necessário, quando cabe, quando você está discutindo um processo no qual esse episódio tem uma significação especial, aí você fala. Por exemplo, eu fui preso em uma outra ocasião e eles queriam o endereço de um sujeito que era secretário de organização do Partido Comunista. Aí me interrogaram e eles disseram: “você é comunista”. Eu disse: “sou, sou comunista sim, membro do partido”. “Você sabe que está fora da lei?”. “Sim, mas o que eu posso fazer?”. “Então você vai colaborar conosco, vai dizer qual é o endereço do José Salles”. “Eu não posso dizer o endereço do José Salles, os senhores são profissionais competentes e sabem que um sujeito membro de um partido clandestino, fora da lei, que tem uma vida legal como eu sempre tive, não pode saber essas coisas, então eu não sei o endereço do José Salles”.
Mesmo se eu enlouquecesse com os choques elétricos, mesmo louco eu não poderia entregar nada, né? Mas esse episódio é histórico, eu não posso trazê-lo para hoje, mas às vezes a gente tem que ficar lidando com essas figuras, com esses monstrinhos sobreviventes tipo o Bolsonaro, a gente tem que tomar um certo cuidado para não perder de vista.
BoletimNPC – É necessário abrir os arquivos da ditadura?
Leandro Konder – É necessário, acho que tudo que tem a ver com a realidade mesmo, com a história política do Brasil dos últimos 30, 40 anos, a gente tem que enfrentar.
BoletimNPC – Como o senhor vê a situação do Rio, sobretudo com relação à política de segurança?
Leandro Konder – Situação do Rio, puxa vida, eu acho que as coisas são interligadas. Dialeticamente. Nas últimas décadas, o Rio foi sendo esvaziado de significação política nacional, foi sendo abandonado, entregue a grupos de aventureiros. Os políticos brasileiros em geral não têm perfil muito respeitável, mas os do Rio têm um perfil pior que a média nacional, sem dúvida.
BoletimNPC – O senhor acha que há uma dificuldade hoje de chegar até às pessoas simples?
Leandro Konder – Sempre foi. Tem um amigo meu, que está fora da política agora, ele ficou decepcionado, continua comunista, mas sem atividade. Ele fazia uma coisa muito engraçada, ele fazia humor, a crítica dele era transformada em uma observação cômica. Nos anos 50, havia uns papéis que falavam sobre a aliança operário-camponesa, aí a gente discutia, conversava e tal. E eu refletia sobre se conhecia os trabalhadores, não conhecia nada, depois é que eu trabalhei nos sindicatos e fiquei conhecendo. Mas aí esse meu amigo dizia assim: “eu estou interessado em saber o que pensa o trabalhador rural, eu não conheço, o que é o camponês”. Um dia saímos de carro para ir não sei aonde e ele disse: “para aí, para aí um pouquinho, eu vi um camponês. De enxada na mão”. Aí ele correu e disse ao camponês: “meu amigo, o que você pensa da aliança operário-camponesa?” O camponês disse: “sei disso não [risos]”. Ele voltou e a gente ria… “Você tá maluco?”, dissemos. “Não, eu fui certificar, eu já desconfiava disso”. Mas é difícil, o Brasil é um país grande, cheio de diferenças internas, nosso projeto de reforma agrária é muito ruim, podemos fazer uma coisa melhor hoje, mas teríamos força para realizar a reforma agrária? O Lula dá a impressão de que desistiu.
BoletimNPC – O senhor acha que a eleição dele foi prejudicial para movimentos sociais como o MST?
Leandro Konder – Olha, eu acho que não é prejudicial não, mas complica. Ele é muito esperto. Ele está com 77% de popularidade. Eu me sinto decepcionado com o programa dele, mas ao mesmo tempo eu entendo que não dá para fazer mudanças drásticas. Falta um instrumento revolucionário, consciente, denso, capaz de ocupar posições, no termo de Gramsci, guerra de movimento, guerra de posições. Na guerra de posições, você cava trincheiras e se instala nelas e evita que o inimigo ocupe. Na guerra de movimentos, você toma a iniciativa de ir lá. Acho que não estamos preparados nem para guerra de movimentos, nem para a guerra de posições. Nós vamos ter que, de certa forma, aprender como fazer isso, e obter resultados práticos. Eu não quis recusar a dar essa entrevista porque eu gosto muito do Vito, mas sinto que eu posso contribuir pouco, minha contribuição não chega a ser animadora. O que eu posso fazer, eu sei que tenho experiência para isso, é fazer um pouco o arauto do dado ruim da verdade. Eu não minto, o que eu digo corresponde à minha experiência vivida, é sincero, não tem nenhuma infiltração derrotista, mas é pouco.
BoletimNPC – Não acho pouco não..
Leandro Konder – É pouco…
BoletimNPC – Quando o senhor olha para trás, para a sua trajetória, que sentimento o senhor tem?
Leandro Konder – Fiz o meu dever.
BoletimNPC – O senhor está escrevendo agora?
Leandro Konder – Escrevi um livro de memórias, meu 29° livro. Já tem prova, vai ser lançado provavelmente na primeira semana de novembro. Para não tornar o livro muito chato de ler eu procurei contar uma porção de coisinhas pitorescas, tem muitas. Coisinhas bem divertidas.
BoletimNPC – O senhor pode citar uma ou outra?
Leandro Konder – Tem uma história que eu conto, quando eu entrei no partido com meus 16, 17 anos, eu fiquei conhecendo um companheiro, que está vivo ainda e está comemorando os 90 anos, o Armínio Guedes. Aí fui numa reunião, em Copacabana, aí na reunião tinha uma senhora que representava a direção do partido no Rio e ela fez uma intervenção sobre a situação política do Brasil, uma intervenção muito ruim, esquemática, não convincente. Aí ela terminou: “alguém quer falar alguma coisa?”. Aí o Armínio: “eu quero falar”. O Armínio é um sujeito rebelde. Aí a primeira fala dele foi inesquecível: “eu estava ouvindo aqui a companheira falando, fazendo o balanço da situação política do Brasil, e tava me perguntando, o que leva uma pessoa com essa experiência de ser membro da direção do partido do Rio, o que leva essa pessoa a dizer tanta besteira?” E a moça ficou uma fera e disse: “essa é a sua opinião, companheiro, é a sua opinião”. Aí ele disse: “claro que a minha opinião, eu só tenho uma, não sou que nem você, que vai perseguindo os dirigentes para ir adotando as opiniões dos dirigentes, na sua ambição de fazer carreira política”. Mas isso mudou a minha postura de militante, pensei: “então é possível a gente falar, incomodar e bagunçar o coreto”. Nesse livro eu incluí essa história.
BoletimNPC – Como é aquela história que contam que o senhor logo que entrou no partido, com 16 anos, faltava às atividades no domingo de manhã?
Leandro Konder – No sábado à noite tinha festinha. As festinhas eram importantes também, aí eu dormia tardíssimo e não conseguia levantar. Então, por isso, eu fui suspenso. Fui salvo pelo Nikita Kruschev, secretário geral do Partido Comunista da União Soviética. Morreu Stalin e em conseqüência direta o Nikita Krushev dizia assim: “precisamos superar os métodos de Stalin que eram criminosos e ineficientes”, aí o cara que tinha me suspendido me procurou.
BoletimNPC – O senhor pode dizer quem era?
Leandro Konder – De nome eu não sei, mas o codinome dele era Helio.
BoletimNPC – Qual o nome do livro?
Leandro Konder – Memórias de um Intelectual Comunista.
BoletimNPC – O senhor já está pensando no próximo livro?
Leandro Konder – Eu já estou escrevendo um, mas demora um pouco, vai demorar uns dois anos pelo menos. É sobre humor, um tema que me interessa há muito tempo já.
BoletimNPC – O que o senhor considera hoje como um bom humor?
Leandro Konder – A minha idéia é justamente questionar o que é o humor, quais são as características do humor que no plano teórico fazem com que ele sobreviva às mais variadas situações, aos mais variados gêneros literários. Comédia é uma forma de manifestação do humor, mas outras formas são possíveis. Não tem nenhuma garantia de que o humor seja sempre bom, pode-se fazer humor até de direita, humor com preconceito. Mas felizmente a vitalidade do humor é grande e ele acaba dando a volta por cima e acaba fazendo com que prevaleçam formas de humor que tenham a ver mais com postura crítica da realidade do que com conservadorismo preconceituoso.
BoletimNPC – O senhor gostaria de falar mais alguma coisa?
Leandro Konder – Não, não. Eu acho que eu te dei uma revisão da minha vida.