Por Gilson Caroni Filho, maio de 2005, no Observatório da Imprensa
O coração andino pulsou na freqüência 99,3 MHz. Se tal afirmativa soa estranha a cardiologistas, registra com precisão o momento político equatoriano desde que a Rádio La Luna abriu seus microfones e vocalizou a insatisfação popular que culminou com a deposição do presidente, Lucio Gutierrez. Emissora comunitária, filiada a Asociación Latinoamericana de Educación Radiofónica (Aler), vários manifestantes usaram seu sinal para tomar a história nas próprias mãos.
As manifestações mais recentes tiveram início com uma resolução do Poder Executivo que destituiu 27 dos 31 juízes da Corte Suprema de Justiça (CSJ). Os juízes substitutos anularam três processos contra o ex-presidente Abdala Bucaran Ortiz, que pôde retornar ao país após oito anos de exílio.
Foi a gota d água para que milhares de cidadãos, os “foragidos”, protagonizassem uma impressionante manifestação espontânea de massa. Começando por Quito, os protestos se espalharam por Guayaquil, Cuenca, Machala e Riombamba. Gutierrez decretou estado de emergência – revogado 24 horas depois do anúncio – e dissolveu a CSJ, mas o ânimo dos opositores não arrefeceu.
Autoconvocando-se por celular, internet e pela emissora de rádio dirigida pelo jornalista Paco Velasco, a sociedade civil equatoriana pôs a nu a crise institucional em que vive. A perda de credibilidade do presidente agora deposto é extensiva aos demais poderes. Os partidos tradicionais, o Judiciário e até mesmo a poderosa Confederação das Nacionalidades Indígenas (Conaie) foram deslegitimados pelas multidões nos “oito dias que abalaram os Andes”.
No epicentro do processo havia um povo e sua rádio. Extraída de artigo de um professor universitário, a palavra de ordem que melhor expressou o desejo de refundação total foi “Que se vayan todos!”
24 anos depois
Aos que duvidavam do poder de uma estrutura comunicativa horizontalizada, a rádio La Luna é a expressão midiática de uma certeza política: qualquer tentativa de criação de esfera pública democrática não pode prescindir de um meio de comunicação que antecipe a vontade contra-hegemônica. Se os tempos são quentes, o rádio, tal como definiu Marshall McLuhan, é seu veículo. O sistema de radiofonia popular da Aler não demorou a ampliar o espaço político requerido pela cidadania.
“O povo descobriu um poder oculto e gigante nos meios de comunicação, descobriu potencialidade que estavam sendo desperdiçada no campo da difusão”, afirmou Paco Velasco em entrevista à agência informativa mexicana Pulsar . À frente de uma emissora que conta com um quadro fixo de 80 pessoas, além de “repórteres voluntários”, o jornalista sabe da importância do veículo que dirige. Para ele, “a rádio existe para dar voz ao cidadão comum”.
Se imprecisos são os rumos institucionais não só do Equador, como da Bolívia e Peru, à fragilidade do ordenamento político-jurídico os meios de comunicação populares puderam contrapor uma sociedade em fase de articulação contra-hegemônica, com destaque para a centralidade das organizações indígenas e camponesas no movimento social. Uma organicidade que conta com o apoio estratégico de uma estrutura midiática de novo tipo.
Há muito tempo se perdeu a perspectiva ingênua de que as contradições da grande imprensa possibilitariam seu uso para informação e orientação de setores excluídos. Somente no campo popular-democrático é possível criar práticas comunicativas que permitam aos receptores, com distintos graus de consciência e organização, “se reconhecerem como um dos termos reais da contradição inerente ao sistema de dominação e, como conseqüência, como protagonistas do desenvolvimento desta contradição e de sua realização histórica”.
A observação é do professor peruano Alfredo Joaquim Paiva e foi feita 24 anos atrás, durante o IV Ciclo de Estudos Interdisciplinares de Comunicação, promovido pela Intercom. Nem as mudanças ocorridas no continente nem o advento de novas tecnologias retiram a atualidade de suas palavras. Pelo contrário, as marchas promovidas pelo centro histórico de Quito são a comprovação empírica de seu acerto. A práxis concreta ainda é o melhor critério de verdade.
Transparência e ética
O conhecimento acumulado pode evitar as estratégias dominantes que visam a neutralizar tentativas de remodelamento do sistema de difusão e consumo de informações. Os que se dedicam ao estudo das várias formas de comunicação alternativa [e aqui não posso deixar de destacar o excelente trabalho realizado pelo Núcleo de Educação e Comunicação Comunitária (NECC), da Facha], sabem que a experiência emancipadora não consiste em deixar o homem comum à frente de uma microfone ou câmera, fazendo o que lhe venha à cabeça. É fundamental ensiná-lo a dominar o meio e exprimir-se como sujeito de direito.
Enfrentar o cerco dominante requer conceber o embate a partir do conceito gramsciano de guerra de posição. Ou seja, perceber que a dominação realizada pelos aparelhos ideológicos não recobre toda a vida social. Se as grandes corporações da mídia produzem criações de sentido e conformam os recortes simbólicos através do qual o homem médio vê o mundo, isso está longe de significar que ele não é capaz compreender, através da singularidade de suas situações sociais, as condições concretas de vida e trabalho em que está inserido. Ao contrário do que afirmam conspiracionistas das mais variad
as tendências, não há manipulação absoluta.
Veículos como La Luna se propõem a pensar a comunicação longe dos conceitos metafísicos vigentes. Não reproduzem desinformação funcional e muito menos omitem a gênese de um processo. Não confundem clareza com simplificação que omite o fato determinante. Paco Velasco é preciso ao atacar uma noção central do ideário jornalístico, ao dizer:
“A objetividade não é sinônimo de neutralidade. Consiste em aclarar de que lugar ideológico, político e social se emite a mensagem e qual a visão de mundo de quem o faz. Tornar-se responsável pelas afirmações e assegurar a verdade dos fatos sobre os quais informa”.
Para o jornalista equatoriano a objetividade é uma ética de transparência.
Nova ordem
O ex-presidente Gutiérrez caiu porque, eleito, abandonou seu programa de campanha e adotou o receituário do FMI. Mudou a Corte Suprema e beneficiou Abdala Bucaran porque precisava do apoio de seu partido para governar. O duro ajuste fiscal foi a causa primeira do desastre. O resto foi um sucessão de fatos desencadeantes de uma institucionalidade fragilizada pelo modelo neoliberal.
Ao contrário do que afirma o editorial de O Globo de quinta-feira (21/4), por trás da crise política que levou o Equador à beira de uma ruptura institucional não estão apenas “o estilo antagonístico e a desmedida ambição do ex-coronel do Exército”. As causas estruturais não podem se ocultar nas características comportamentais de um homem. Sem desprezar a importância da subjetividade no desencadear dos acontecimentos históricos, pode-se dizer que esse tipo de afirmação constrói uma metafísica espontânea. Explica a história a partir de convulsões seguidas de esquecimento. Tenta, por vezes, simplificá-la à custa de um psicologismo de segunda categoria.
No momento em que encerramos este texto, discute-se a legitimidade constitucional que levou à deposição de Gutiérrez. O que não se pode questionar é o jornalismo-cidadão de uma pequena emissora sediada em Quito. La Luna, para além da pobreza do realismo político, mostrou que a ousadia pode destruir cânones e avançar na construção de uma nova ordem informativa.
“Que se vayan todos!”
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Gilson Caroni Filho é professor-titular da Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha), Rio de Janeiro. Texto publicado originalmente no Observatório da Imprensa (www.observatoriodaimprensa.com.br)