Por Sérgio Carvalho
Foram comentários desimportantes aqueles que a crítica do GLOBO escreveu sobre o espetáculo “O círculo de giz caucasiano”, peça de Brecht encenada pela Companhia do Latão. A rigor não mereceriam resposta. Não discutem a concepção do espetáculo, não relacionam as partes criticadas ao todo, não se preocupam em argumentar antes de sentenciar. Seguem, em geral, a técnica de desamor de Bárbara Heliodora. E contra sua opinião de que a dramaturgia de Brecht “não resistiu às décadas” bastaria o desmentido do público no teatro. O que vale a pena, entretanto, responder são suas opiniões sobre o teatro épico, estereótipos banais com os quais Brecht já convivia nos anos 30. “É preciso defender o teatro épico contra qualquer suspeita de se tratar de um teatro desagradável, tristonho e fatigante” escreveu Brecht após os ataques conservadores contra seus primeiros trabalhos.
O arrazoado de Bárbara Heliodora sobre o que lhe parece “amenos satisfatória das grandes peças de Brecht” se baseia nos seguintes pontos: considera o texto “catequético”, julga os “episódios repetitivos” e afirma que tudo está ali para propiciar um “bê-á-bá” de politização, que acaba por ser explicativo demais. Por esses motivos, o texto, apesar de alguns “momentos brilhantes” (sabe-se lá quais), não passa numa “prova da qualidade real” (elaborada, evidentemente, por ela) cujo examinador é o senhor Tempo. Todos os lugares-comuns sobre o teatro de Brecht são evocados: racionalismo, frieza, didatismo.
Caso a Senhora Heliodora tivesse se dado conta da complexidade do texto saberia que a técnica usada por Brecht em “O círculo de giz” está no extremo oposto da teatralidade missionária ou religiosa. Brecht não faz uso da alegoria, não ilustra mensagens,não encerra o significado da peça no palco, ao mesmo tempo em que faz gracejos paródicos com a Bíblia. Era um artista que não suportava, senão, a contradição. Imagino que o incomodo manifestado pela jornalista em relação à explicitação temática do Prólogo e no Epílogo da peça e deva a uma dificuldade de ler a novidade formal de “O círculo de giz”. Nela, como em nenhuma outra peça, Brecht concretiza em cena a figura coletiva de um Narrador, como concebia Walter Benjamim, alguém disposto à troca de experiências, alguém que vivencia o tempo das múltiplas renarrações porque sua fala se dirige à memória do ouvinte, alguém, enfim, que não vê problemas em dar conselhos porque sabe que a boa narrativa carrega consigo sua utilidade.
Outro exemplo da incompreensão critica da Sra. Heliodora é a descrição do juiz Azdak. Ela o considera um arquétipo da “espontaneidade camponesa”, encarnação da “ingênua verdade de um bobo de Deus”. Esquece que se trata de um escrivão que se define nos seguintes termos: “Não sou uma boa pessoa, sou um intelectual!”. Não entende que Azdak “faz o diabo” para manipular as leis e assim dar ganho de causa aos pobres porque se comporta como um ambíguo “Justo” das fábulas antigas. Brecht o considerava um ser “amoral e egoísta”, mas sobretudo alguém “decepcionado com o fato de que a queda dos velhos senhores não trouxe um novo tempo, mas um tempo de novos senhores”.
Quando vivia na República de Weimar, Brecht conhecia bem os praticantes da critica culinária e sua técnica de desqualificar a novidade afirmando-a ultrapassada, insistindo que já foi feita sabe-se lá quando. O argumento historicista surgia na boca de quem não tinha perspectiva histórica, incapaz de comparar épocas. Muitos anos de profissão, infelizmente, não conferem ao crítico um olhar atento à historia, como demonstra a Sra. Heliodora. Suas opiniões visam neutralizar qualquer qualidade que lhe pareça incapturável em categorias estáveis de gênero. O pressuposto é uma desqualificação prévia de qualquer atitude transformadora da arte, sobretudo se politizante. Orientar-se por preconceitos é coisa que muitos críticos fazem; pintar sempre a própria imagem nos gostos e desgostos tem algo de patético e vendável; mas falsificar as linhas gerais do trabalho alheio e assim induzir o leitor ao erro está bem longe de ser uma tarefa intelectual nobre. O surpreendente é o quanto esse tipo de personalismo caricatual ainda tenha valor de circulação no mundo da cultura, como uma espécie de movimento agônico de uma profissão em vias de extinção. Na arte que vale a pena, entretanto, a coisa é diferente. A maior qualidade de uma obra que sobrevive não é a duração, mas sua mutabilidade.
SÉRGIO DE CARVALHO, diretor da Campanha do Latão e professor de dramaturgia e crítica teatral na Universidade de São Paulo. Rio de janeiro, por e-mail