[Mariana Pitasse e José Eduardo Bernardes/Brasil de Fato | São Paulo (SP)] “Cuidado que o Marighella é valente’, alertou um agente da repressão antes de umas das muitas tentativas de captura do líder revolucionário durante a ditadura militar”. A passagem da biografia de Carlos Marighella, escrita por Mário Magalhães, retrata uma das principais facetas do protagonista do filme dirigido por Wagner Moura, que estreia na 69ª edição do Festival de Berlim, na Alemanha, entre os dias 7 e 17 de fevereiro.
Essa é a primeira vez que Wagner Moura, mais conhecido por seu papel como Capitão Nascimento no filme “Tropa de Elite”, trabalha como diretor. De cara, ele assumiu como desafio reconstruir parte da trajetória de Marighella: poeta, militante comunista desde a juventude, deputado federal e fundador do maior grupo armado de oposição à ditadura, a Ação Libertadora Nacional (ALN).
O filme, que vai do drama à ação, conta justamente sobre o período mais conturbado e radical da vida do baiano como guerrilheiro. “A minha escolha por esse recorte também atende a vontade de que o filme seja popular, que muita gente veja, sobretudo as pessoas pelas quais Marighella lutava, o que é uma questão quando você pensa que o cinema é um divertimento elitizado no Brasil”, explica, em entrevista exclusiva ao Brasil de Fato.
Para Mário Magalhães, autor da biografia, lançar a história de Marighella nas telonas é um ato de coragem. “Ainda mais em tempo de novos censores, que querem impedir que se conte a história como a história aconteceu. Ninguém é obrigado a gostar de Marighella. Mas julgá-lo sem conhecer sua trajetória é estupidez. Marighella nunca provocou tanto amor e tanto ódio. Ele está mais vivo do que nunca”, acrescenta o escritor, quando perguntado sobre a adaptação de seu livro.
Pela escolha do personagem e do recorte, Wagner Moura afirma que o filme encontrou barreiras para conseguir financiamento. A produção também não tem previsão de exibição nos cinemas brasileiros. “Existiu totalmente um boicote. Embora o filme vá estrear em 2019 no governo Bolsonaro – na época em que a gente estava filmando parecia uma piada isso – mas já vivíamos uma polarização grande e um crescimento do conservadorismo. Eu que sempre fui um artista identificado com a esquerda, então ficou ‘o petralha fazendo filme sobre o terrorista’ e ninguém queria se associar a isso. A gente recebeu respostas agressivas, mas estou seguro do filme que fiz e preparado para a porrada”, garante o diretor estreante, valente assim como seu protagonista e referência de resistência.
Confira a entrevista completa:
Brasil de Fato: Por que resolveu contar a história de Marighella nos cinemas?
Wagner Moura: Eu sou baiano. Suponho que o nome de Marighella seja igual no Brasil inteiro, mas, em Salvador, a gente cresceu tendo ele como referência de resistência. Era um nome importante na Bahia para quem se interessava pelas lutas de resistência.
Eu sempre fui fascinado por revoltas populares. Malês, Canudos… e Marighella é um personagem próximo dessa tradição. Também sou muito amigo, no mundo do teatro, de Maria Marighella, sua neta.
Quando Mário Magalhães lançou a sua biografia, em 2012, eu estava em Salvador e a Maria me falou: “Saiu a biografia do meu avô, cara. Temos que fazer um filme”. Na hora, eu concordei. A princípio, minha ideia era que o filme acontecesse, eu queria produzir esse filme. Era uma narrativa que eu queria ver contada, mas não tinha pensado que eu ia dirigir o filme.
Sempre fui um ator muito interessado no trabalho que vai além do set [de filmagens]. Desejo trabalhos que me desafiem artisticamente também, então foi aí começou a história de dirigir “Marighella”.
E o que um filme de ficção pode acrescentar à história de Marighella?
Um filme de ficção tem potencial de se alastrar e atingir mais pessoas que um documentário. São raros os documentários que atingem uma quantidade grande de pessoas. Eu sou um cara que vem da ficção, então não saberia fazer um documentário sobre a história dele.
Embora ele [o filme] seja baseado em uma história real, em personagens reais, em um estudo gigante do Mário Magalhães, que é incrível – ele reconstituiu a história de um cara que fez questão de apagar seus passos –, o nosso filme toma liberdades criativas de cenas, lugares, pessoas que não aconteceram.
O filme se apropria de elementos que são da história dele. Nada que está lá é diferente do que eu suponho que Marighella não faria de verdade. Por outro lado, tem situações ficcionalizadas. Por exemplo, os guerrilheiros que estão ao redor dele: não quis usar os nomes reais, porque a ALN [Ação Libertadora Nacional] era tão grande, tinha tanta gente interessante, e não quero que ninguém fique pensando que são pessoas específicas.
Os personagens são baseados em figuras históricas, mas são ficcionais. Várias liberdades inerentes ao cinema foram tomadas para que o filme ficasse bom. Mas, claro, tudo com muito cuidado para que a figura de Marighella e a sua história se popularizasse.
Que Marighella é esse, retratado no seu filme?
O recorte temporal é do golpe de 1964 até a morte de Marighella em 1969 – os últimos cinco anos de sua vida. Esse Marighella é o cara que resolve ir para a luta armada, resolve que a única possibilidade de lutar pela democracia, justiça social, liberdade, igualdade, é essa. Escolher esse recorte é retratar o Marighella radical. Mas vale lembrar que ele foi uma pessoa que militou na legalidade o quanto pôde. Porque o Partido Comunista (PCB) ficava ilegal quase o tempo inteiro.
É claro que, do ponto de vista cinematográfico, as ações da ALN são espetaculares. Nosso filme é um híbrido de gêneros. Ele é um drama histórico, mas, ao mesmo tempo, tem elementos muito poderosos do cinema de ação. Mais uma vez, a minha escolha por esse recorte também atende à vontade de que o filme seja popular, que muita gente veja, sobretudo as pessoas pelas quais Marighella lutava – o que é uma questão, quando você pensa que o cinema é um divertimento elitizado.
Vou fazer o que eu puder para que o máximo de pessoas possível assista ao filme. Eu prometi ao Boulos [Guilherme] que vou estrear o filme no acampamento de São Bernardo, do MTST [Movimento dos Trabalhadores Sem Teto], e do MST [Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra] também. O que puder fazer nesse sentido, vou fazer.
O Mano Brown foi anunciado inicialmente para o papel de Marighella. Por que Seu Jorge assumiu?
Não tem no Brasil alguém mais Marighella do que Brown. Poeta e guerrilheiro, amoroso e agressivo.
A gente começou a ensaiar com ele, mas deu um azar muito grande: foi o mês em que o Racionais [MCs] fez mais shows. Tinha um por dia, que terminava às quatro horas da manhã! Não deu para ele. Era um comprometimento que não dava para acompanhar.
Ele é um parceiro do filme, quer que o filme aconteça, toda a equipe é louca por ele, mas não deu. Então, a gente precisou de outro ator.
Seu Jorge é uma das pessoas mais talentosas do mundo. O trabalho dele no filme é absurdo. Engraçado que, quando saiu a notícia que ele interpretaria, um articulista de direita disse: “Esse Wagner está querendo agora empretecer Marighella”. Ele reivindicou a branquitude de Marighella. Seu Jorge, de fato, tem a pele mais escura do que a de Marighella, mas ele era preto, neto de escrava sudanesa.
Marighella foi um defensor da justiça social e igualdade entre as pessoas, mas nunca falou sobre a questão do racismo, porque não era uma pauta da esquerda. Também não é suficientemente hoje, como deveria ser. A esquerda não entendeu que não se pode falar de nenhuma questão social sem falar de racismo. Sem entender que o evento histórico que fundamenta nossas relações sociais é a escravidão.
O Brasil foi o último país do mundo a abolir a escravidão. O Brasil tem na sua arquitetura quartos de empregada, e as empregadas são em maioria mulheres negras, que tiveram a lei trabalhista regulamentada há poucos anos – e que gerou uma polêmica. Embora isso não tenha sido um discurso frontal de Marighella, porque não era da esquerda naquela época, mas pelo fato de ele ser um homem negro e defensor da justiça social, a pauta do racismo faz muito sentido em sua boca.
Seu Jorge ser mais escuro do que Marighella não é uma questão. Ele não poderia era ser mais claro.
O filme vai ser adaptado para uma série de TV. É uma tentativa de popularizar a história de Marighella?
De alguma forma, sim. Esse foi um filme muito difícil de conseguir dinheiro para fazer. É uma produção grande e que não usa a Lei Rouanet – apesar das pessoas estarem dizendo isso.
O principal apoio é da Globo Filmes – sem ele, não conseguiríamos fazer. Então, esse é um acordo que eles têm feito com as produções: depois de estrear no cinema, eles cortam e fazem uma série em quatro episódios. Termina sendo uma coisa boa, porque o alcance que a TV tem é infinitamente maior, se comparado ao cinema.
Você comentou na imprensa sobre algum boicote das empresas ao filme.
Existiu totalmente um boicote. Embora o filme vá estrear em 2019 no governo Bolsonaro – na época em que a gente estava filmando, parecia uma piada isso –, já vivíamos uma polarização grande e um crescimento do conservadorismo.
Eu sempre fui um artista identificado com a esquerda, então ficou “o petralha fazendo filme sobre o terrorista”… e ninguém quer se associar a isso. A gente recebeu respostas agressivas.
Você está preparado para os ataques?
Eu estou preparado para a porrada. Não quero que nenhum dos atores sofra tanto, mas vão sofrer. Vão ser ataques violentos. Não sabemos tudo que é possível. Quando a gente estava filmando, teve uma galera que ameaçou entrar no set e quebrar tudo.
Eu não tenho redes sociais, não sei como é, acho que a maioria das ameaças eu não sei, não vejo. Isso me protege muito da energia pesada. Por outro lado, não tenho medo dessas coisas.
Tenho muita segurança de quem eu sou, do que eu acredito, do filme que fiz. Muita segurança da fragilidade dessa gente, intelectual e humana. O discurso deles é de criminalizar os artistas. Para eles, o MST e o MTST são terroristas, Marighella é terrorista, defensor de direitos humanos é “defensor de bandido”.
O cara que emprega bandido no gabinete diz que defensor de direitos humanos é que é defensor de bandido. Então, está tudo muito louco. A verdade acabou, não importa mais. Esse momento é muito medíocre e muito triste. Isso me assusta é o que me dá medo.
Na sua avaliação, o que pode vir a ser a produção cultural no Brasil nos próximos anos?
Triste do país que faz dos seus artistas inimigos do povo. É um discurso muito característico do fascismo. Os artistas que são historicamente ligados a um pensamento mais progressista são os primeiros a serem atacados como inimigos.
A gente está vivendo um momento de extrema mediocridade, moral e intelectual. Bolsonaro vai para Davos e não sabe o que falar. “Meninas vestem rosa, meninos vestem azul”, “Escola sem Partido”, todo esse mar de mediocridade é você querer eliminar tudo o que tem a ver com pensamento crítico. É pragmatizar e emburrecer.
Nós artistas fazemos parte do universo que está propondo mudança. Não só porque somos historicamente ligados a um pensamento progressista, mas porque o que produzimos propõe reflexões que incomodam, e essa gente não quer. Eles não leem, não vão ao teatro.
Quando falo de cultura não falo só de produção artística, mas de tudo que eles querem destruir. Cultura LGBT, cultura quilombola, cultura indígena, tudo isso é o que é um país. É o que faz qualquer país decente se desenvolver com autonomia e autoestima.
A gente vive em um país incrível, original, reconhecido por isso. Mas a gente vive um momento, não só no Brasil, mas no mundo inteiro, de extremismo e violência. O Jean Wyllys dizer que não dá mais é triste, mas absolutamente compreensível. Porque se você tem hombridade moral e dignidade, as suas armas são muito frágeis contra essa coisa toda.
Algumas pessoas têm identificado no filme “Tropa de Elite” a figura do Capitão Nascimento como Bolsonaro. O que você pensa sobre isso?
Eu não votaria no Capitão Nascimento para Presidente do Brasil. Ele é um personagem de ficção, por mais realista que seja o filme. Não é de hoje essa polêmica.
Na época em que o filme foi lançado, o jornalista Arnaldo Bloch falou que o filme era fascista. Eu escrevi um texto para o jornal O Globo falando que não era fascista, e sim, um estudo sobre como se comportam as polícias no Rio de Janeiro, sobre essas relações promíscuas entre polícia, estado e criminalidade.
Eu rejeito categoricamente a ideia de que o filme endossa o comportamento do Capitão Nascimento. Mas qualquer obra de arte é polissêmica. Não é o que eu quero dizer. Por exemplo, se “Marighella” tivesse sido lançado no governo Lula seria um filme, no governo Temer, outro filme, e agora é outro. É o olhar da gente que faz a obra ser o que ela é.
Como você vê os escândalos envolvendo as milícias e a família Bolsonaro?
As milícias são crime organizado. O crime organizado no Brasil mesmo é o PCC e as milícias, que tem currais eleitorais, elegem políticos, são uma máfia criminosa e perigosa.
A relação de Flávio Bolsonaro com milicianos é pública. Ele nunca escondeu isso. Não estou entendendo a surpresa com relação a isso.
Ele não disse uma palavra sobre a morte de Marielle, que era sua colega parlamentar. Não estou dizendo que ele tem uma relação direta com a morte dela, mas que ele tem uma relação com os policiais que cometeram crimes e tem relações com as milícias. Qual a surpresa?
Nesse sentido, qual a importância de que “Marighella” seja lançado neste ano?
É importante porque é um filme que vem disputar narrativa. Talvez seja uma das primeiras obras da nossa cultura que está frontalmente em oposição a quem chegou ao poder no Brasil. No entanto, foram eleitos democraticamente, se apresentam como de fato disseram que iam ser.
Alguém se espanta que Flávio Bolsonaro tenha ligação com a milícia. Por quê? Que espanto é esse? Nenhum. Alguém se espanta que Bolsonaro chegue em Davos e não saiba falar com os jornalistas sobre economia? Então, a gente vive um momento em que um ministro do Supremo [STF] fala que não é golpe de 1964, é “movimento de 1964”, outro diz que a ditadura não foi tão má assim. Nosso filme vem para disputar essa narrativa. Para dizer que foi ruim, que foi horrível, que teve gente que teve coragem de enfrentar aquilo.
A forma como o enfrentamento se deu foi radical. Talvez, se vivesse esse período, eu não entraria para a luta armada. Vejo o negócio do porte de armas e fico arrepiado. Mas é muito cruel também, analistas políticos no Brasil, sob a luz da história, analisando a opção de quem naquele momento, cerceado de todos os seus direitos básicos, optou por enfrentar com força quem estava oprimindo. Isso é um direito de qualquer povo: defender-se do totalitarismo e da opressão.
Em entrevista ao Pedro Bial, antes de começar a filmar, você falou que “ia fazer um filmaço”. Você fez mesmo?
Eu fiz. É um filmaço mesmo. Fiz o filme que queria ter feito.
Eu acho que eu não sou diretor, mas um ator que dirigiu um filme. Fui para Berlim três vezes: com “Tropa de Elite 1”, “Tropa de Elite 2” e “Praia do Futuro”. Éramos poucos. Sabe quantas pessoas estarão em Berlim agora? Quinze atores e mais umas pessoas da equipe. Uma galera que não tem grana, mas quer ir para estar nesse dia, começando a caminhada desse filme juntos. Um filme tão potente e especial para todos nós que fizemos.
Todos nós sabemos a importância que esse filme tem, politicamente, no Brasil. Mesmo que a gente tire esse elemento, se é que é possível, artisticamente, o que vivenciamos foi uma das experiências mais profundas que tive. Ver o que os atores estavam me dando foi uma coisa de outro mundo. Acabava a cena, eu queria beijar, ajoelhar aos pés dos atores.
Eu entendi a importância que o ator tem. O tamanho da exposição que o ator apresenta quando está em cena, a equipe, como cada um foi levado ao seu limite de sair da zona de conforto. Ninguém fez o que sabia fazer, eu não sabia fazer. Foi todo mundo junto. Querendo muito contar essa história. Seremos mais de 30 em Berlim, porque o filme foi feito com muita honestidade. É um filme honesto.
Edição: Vivian Virissimo