SÃO PAULO – Desde a Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948, a bandeira da defesa da dignidade de homens e mulheres têm se consolidado como uma importante ferramenta de luta por sociedades mais igualitárias e, no mundo ocidental, por aquilo que chamamos de Estado Democrático de Direito. Há um certo consenso entre os teóricos jurídicos e políticos que não se pode pensar em Estados verdadeiramente democráticos sem uma efetiva implementação dos direitos humanos. Em paralelo, o papel que nas últimas décadas vem sendo desempenhado pela mídia na difusão de culturas e na formação de valores e da opinião pública também se mostra central. Neste cenário, seria de se esperar que a mídia agisse de forma a proteger e defender os direitos humanos, visando a essa construção de sociedades mais igualitárias e democráticas.
Uma pesquisa realizada pela Andi (Agência de Notícias dos Direitos da Infância), pela Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República e pela Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) mostra, no entanto, justamente o contrário: a imprensa escrita brasileira ainda dedica pouquíssimo espaço a esta questão. O estudo analisou 1.315 textos – entre matérias, artigos, editoriais, colunas e entrevistas – veiculados por 57 diários de todas as unidades da federação ao longo 2004.
Um dos objetivos da pesquisa era investigar como a imprensa cobre os diferentes aspectos da agenda dos direitos humanos, a partir de uma análise dos textos que identificam claramente termos relacionados ao universo conceitual dos direitos. A idéia era responder sobre o que fala a mídia impressa quando se vale de expressões muito próximas do campo semântico dos direitos humanos. Nesse sentido, importantes direitos humanos, como educação, saúde e cultura, detentores de espaços privilegiados na imprensa brasileira, ficaram de fora da análise nos casos em que os textos não traziam nenhuma das 34 palavras-chave consideradas para na investigação.
Cerca de 80% dos textos pesquisados, por exemplo, não vão além de uma simples contextualização da questão, e 22% das matérias são construídas com abordagem meramente factual. “Esta forma de abordagem tem uma reduzida condição de ajudar o elitor a desenvolver uma compreensão contextualizada do que são os direitos humanos”, avalia Veet Vivarta, secretário-executivo da Andi. “Algumas reportagens trazem elementos que ajudam o leitor a se situar, mas ainda deixam muito a desejar. Elementos mais interessantes como o contextual explicativo e o avaliativo, onde se abre espaço para atores com posicionamentos diferentes, onde se ouve mais de uma voz, são minoritários. E a matéria propositiva, que seria a mais interessante, ainda é exceção. Somente 3,5% dos textos vão nesta linha”, explica.
Somente 0,5% do material pesquisado traz um conceito explícito de Direitos Humanos e 1% dos textos menciona a Declaração Universal. Ou seja, a questão aparece como um guarda chuva geral e pouco aprofundamento nos aspectos específicos desta agenda. Uma das deficiências reveladas é que a imprensa ainda não associa o debate sobre direitos humanos aos modelos de desenvolvimento. Apenas 2,9% dos textos analisados estabelecem essa relação. E quase todos ignoram a correlação com desenvolvimento humano. Prova disso é que a pobreza, a fome e a miséria são foco central somente em 2,6% dos textos que falam de direitos humanos. Não que essas questões não estejam na pauta dos jornais; mas não são reconhecidas pela imprensa como um assunto de direitos humanos – então a relação não se efetiva. O mesmo acontece com o tema da educação (presente só em 2,2% das matérias), da saúde (2%), trabalho infantil, escravo e tráfico de pessoas (2%), agricultura e reforma agrária (0,6%) e habitação (0,5%).
“Tenho a impressão de que os nossos jornalistas, com rara e honrosas exceções, não se interessam por direitos humanos ou reduzem o assunto ao âmbito meramente policial. Ao lado disso, persiste ainda no rádio e na televisão a visão distorcida de que as organizações não governamentais que se ocupam da defesa dos direitos humanos só agem quando as vítimas são bandidos”, escreve o jurista Fábio Konder Comparato na publicação “Mídia e Direitos Humanos”, que traz a pesquisa. “Na realidade, a população em geral tem a larga convicção de que os direitos sociais não são direitos humanos. Isso reforça a orientação liberal-individualista que sempre predominou em nosso meio político”, acredita.
Mais de 25% do que é veiculado na imprensa sobre direitos humanos é focado em violência. De acordo com os pesquisadores, parte da responsabilidade por tal índice é dos próprios atores (governamentais e outros) que conduzem a agenda dos direitos humanos. Por outro lado, é preciso reconhecer que, ao transpor essa perspectiva para as páginas dos jornais, a imprensa pode colaborar para retroalimentar a percepção de que os direitos humanos estariam sobretudo conectados às formas mais duras de violência praticadas pelo Estado ou combatidas por ele.
Por isso, um dos objetivos da publicação é contribuir para a desmistificação do discurso, ainda fortemente presente na sociedade, de que os direitos humanos estão atrelados principalmente à proteção dos direitos de criminosos ou da população carcerária. E salientar que eles vão muito além das relações com a violência em geral e com a criminalidade em particular.
Na opinião de Maria Elena Rodrigues, coordenadora do projeto Relatores Nacionais, da Plataforma DhESCA (Direitos humanos econômicos, sociais, culturais e ambientais) Brasil, e que também assina um texto na publicação, para a mídia violação de direitos humanos é quase um sinônimo de violência e criminalidade.
“As questões que não se referem à violência aparecem, geralmente, de forma mais pontual. Isso acontece por causa do desconhecimento da imprensa sobre o assunto”, acredita. “Para ajudar a desconstruir esse modus operandi, a mídia poderia ser mais ousada e abrir as suas perspectivas. Um passo importante seria identificar e mostrar que necessidades essenciais como saúde, educação e moradia são direitos humanos, assim como as políticas sociais que visam a garanti-las”, aconselha Maria Elena.
O estudo mostrou que a expressão cidadania, em geral, não aparece vinculada aos direitos humanos. Apenas 22,2% dos textos analisados trazem explicitamente a expressão ou sinônimos muito próximos. A relação com a democracia também não aparece nas páginas dos jornais, sendo que um elemento de central relevância na sedimentação dos direitos humanos é a sua correlação com a democracia.
“No Brasil, a identificação entre direitos humanos e democracia não é unânime. Acho compreensível, pois em nossa frágil democracia as eleições periódicas convivem com o esmagamento da dignidade dos indivíduos considerados “inferiores” ou “descartáveis”. Em sociedades desiguais como a nossa, a distância entre os valores e a prática é muito grande”, diz a socióloga Maria Victoria Benevides.
“Neste mundo globalizado no mais perverso neoliberalismo econômico, o grande desafio do século XXI é consolidar a democracia radical como uma exigência contra as novas formas do capitalismo selvagem e do novo imperialismo. A defesa, proteção e promoção de direitos civis, sociais, econômicos, culturais e ambientais constituem o mecanismo concreto para identificar ou avaliar a democracia em um sistema político e uma sociedade”, acredita. Para isso, ela propõe que os meios de comunicação promovam uma campanha de esclarecimento sobre os direitos humanos, associados à justiça social e à democracia.
O conflito da pauta
De acordo co
m a pesquisa da Andi, Unesco e SEDH, os dois enquadramentos jornalísticos mais empregados para falar dos direitos humanos são aqueles que abordam o tema a partir da sua violação (13,9%) ou da reflexão acerca dos direitos de populações específicas (12,5%), como idosos, homossexuais e crianças. Perspectivas relevantes, como as de promoção dos direitos (4,8%) ou a compreensão de que os mesmos são qualificadores vitais das políticas públicas (4,3%) aparecem em menor medida.
Além disso, 54% das matérias partem da perspectiva governamental para a cobertura. A sociedade civil está pouco representada nas reportagens – aparece em 8,9% dos textos –, enquanto os movimentos sociais são citados em menos de 1% do material analisado.
Na opinião de Maria Elena Rodrigues, há um receio na mídia em disseminar o discurso dos direitos humanos como universais, porque isso empodera os sujeitos sociais, o que, para ela, poderia significar dar ao povo um poder maior de cobrança do cumprimento dos direitos pelo Estado e contrariar interesses de grupos conservadores da sociedade. Entre eles, certamente está o dos proprietários dos grandes grupos de comunicação no país.
“É preciso considerar também que a margem de liberdade dos nossos jornalistas para atuar, até mesmo no terreno da simples informação, é freqüentemente anulada pela direção do meio de comunicação de massa. As empresas jornalísticas, de rádio e televisão, como ninguém ignora, são predominantemente controladas por empresários ou políticos conservadores”, declarou Comparato.
Não é à toa, portanto, que o direito à liberdade de expressão é, individualmente, o mais mencionado pela imprensa brasileira, avessa em sua maioria a qualquer tipo de regulamentação que determine parâmetros para o seu funcionamento – incluindo aí a defesa e promoção dos direitos humanos. A análise revela que 6,9% dos textos discutem esse direito de forma central ou lateral.
“Há um embate diário dentro da redação que é a batalha do convencimento da pauta. Não vivemos uma democracia plena e isso é representado na agenda de cobertura das empresas de comunicação”, admite o repórter Marcelo Canellas, da TV Globo. Já para o procurador Sérgio Suiama, da Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão, do Ministério Público Federal em São Paulo, há um claro conflito de interesses políticos e econômicos entre os proprietários da mídia e a defesa dos direitos humanos. “Temos que dialogar com os jornalistas da grande imprensa e mostrar pra eles a importância desse tipo de abordagem. Mas há um limite claro neste diálogo. Por isso é preciso mudar a estrutura da mídia e democratizá-la como um todo, para que os direitos humanos sejam efetivamente promovidos e defendidos”, conclui.