Morreu na noite da terça-feira (23/10), aos 96 anos, o padre peruano Gustavo Gutiérrez, considerado o pai da Teologia da Libertação. Seu livro “Teologia da Libertação”, inspirou as Comunidades Eclesiais de Base (Cebs) e a militância política e social de cristãos e não cristãos na América Latina. Em 1986, escreveu  “Beber de seu Próprio Poço”.

Leia artigo de frei Betto sobre Gustavo Gutiérrez

O pai da teologia da libertação – GUSTAVO GUTIÉRREZ, PERFIL AMIGO

Frei Betto

         Gustavo Gutiérrez (1928-2024) pode, com razão, ser considerado o pai da teologia da libertação, pois foi o primeiro a publicar um livro com esse título, em 1971, pela espanhola Ediciones Sígueme. Ele mesmo não negava a importância, para seu trabalho, da visita feita ao Brasil em 1969, quando esteve em contato com nossas Comunidades Eclesiais de Base e experimentou, de perto, o drama do assassinato – ainda hoje impune – do assessor da juventude de Dom Helder Camara, o padre Henrique Pereira Neto, estrangulado e baleado no Recife, em 26 de maio de 1969.

         Gustavo dedicou sua Teologia da libertação ao sacerdote assassinado pela ditadura e ao romancista peruano José María Arguedas. Apesar disso, não é possível negar em sua obra as raízes europeias provenientes do humanismo integral de Jacques Maritain, do personalismo engajado de Mounier, do evolucionismo progressivo de Teilhard de Chardin, da dogmática social de De Lubac, da teologia do laicado de Congar, da teologia do desenvolvimento de Lebret, da teologia da revolução de Comblin, ou da teologia política de Metz.

         O Concílio Vaticano II incentivou as condições para que fosse cortado o cordão umbilical que mantinha a teologia da América Latina dependente do útero da mãe Europa. Ao se iniciar a década de 1960, a revolução cubana, o fracasso da Aliança para o Progresso, a crise do modelo desenvolvimentista e o crescimento de movimentos de esquerda não ligados aos partidos comunistas tradicionais, foram fatores que levaram os teólogos latino-americanos a enraizar seu pensamento no solo que pisavam. Não que fosse uma questão de procurar por categorias que permitissem uma reinterpretação de fatos sociais e políticos. O motor da teoria era a prática das comunidades populares cristãs, enraizada na luta por conquista de direitos – conforme transformavam o mundo, também alteravam o modelo da Igreja.

         Mudança social e eclesiogênesis estão, em última instância, ligadas. A construção de um projeto político alternativo não deixa a Igreja intocada, como se fosse uma comunidade de anjos pairando acima das contradições que atravessam a trama da sociedade. O elemento novo era a consciência, alcançada na vida em comum das Comunidades Eclesiais de Base, de que a Igreja não é apenas o papa ou os bispos, mas o povo de Deus a caminho na história. E a presença deste povo crente e oprimido nos movimentos sociais da América Latina marcou a fé com um caráter crítico que fez nascer a teologia da libertação.

Um teólogo indígena

         Na VII Conferência Internacional da Associação Ecumênica de Teólogos do Terceiro Mundo (ASETT) em Oaxtepec, México, em dezembro de 1986, o teólogo negro norte-americano James Cone se queixou que a teologia da libertação latino-americana era demasiado branca. O estranho é que, a seu lado, estava Gustavo Gutiérrez, de aparência tipicamente indígena: pele marrom, rosto redondo, baixo e atarracado, com olhos ligeiramente amendoados que revelavam sua ascendência quéchua. Em casa, seu pai falava esse idioma do antigo império inca. Porém, mais que língua e aparência, Gustavo herdou o estilo dos ameríndios andinos. Isso surpreendia qualquer pessoa que o conheceu: combinava – não sem alguns conflitos – uma mente dotada de inteligência rápida e racional, magisterial, que se expressava linguagem construída como partes de um instrumento de precisão, e uma sensibilidade que desarmava todos os modelos da moderna racionalidade. Nele coexistiam o intelectual formado em Louvain – onde foi colega de Camilo Torres e defendeu tese baseada em Freud – e o ameríndio do altiplano peruano. Isto lhe permitia entrar numa sala de aula sem ser notado – como que deslizando sobre os próprios pés – ou visitar seu amigo Miguel d’Escoto sem que ninguém mais percebesse sua presença em Manágua. É como se ele pudesse viajar, não apenas nas estradas acessíveis a viajantes urbanizados, mas também em trilhas e picadas que só os habitantes da selva conhecem. Esse dom ancestral lhe permitia dominar uma nova língua, um novo campo de conhecimento, ou passar através de Nova York, Paris ou Bonn, como um ameríndio se esgueirando entre árvores e folhas, observando sem ser observado, rápido como um pássaro e discreto como uma lhama.

         Esta característica permitiu que ele trabalhasse no rascunho do famoso documento de Medellín, aprovado pela Conferência Episcopal Latino-americana em 1968 – um texto que se tornaria fundamental à prática e teoria da Igreja dos pobres na América Latina. Certa ocasião, Gustavo chegou a Roma exatamente quando os bispos peruanos discutiam os trabalhos dele com os mais altos dignitários da Cúria. Quem pode jurar que o texto final, mais favorável a ele que o rascunho original, não tenha sido redigido pela própria pena de Gustavo?

         Discreto como um capuchinho, ele se movimentava no domínio político dos conflitos teológicos com toda a sutileza de um jesuíta. Embora sua expressão às vezes revelasse aquela angústia metafísica característica das pessoas para quem a linha estreita que separa a morte da vida é familiar, nunca entrava em pânico, e sua aguda intuição era capaz de apresentar soluções imediatas a problemas complicados, como se tivesse meditado durante anos sobre uma questão que acabara de surgir. Conseguia ficar sentado durante horas em um banco de aeroporto, escrevendo um artigo ou escutando alguém, mordendo nervosamente o tempo todo um palito com seus dentes fortes, ligeiramente separados. Dava respostas quase sempre ironicamente divertidas, como se estivesse armando uma adivinhação. Ao ministrar aulas e conferências, seguia um padrão rígido tão cuidadosamente montado que dava a impressão de ter ornamentado seu texto. Suas piadas conferiam às palavras um sabor todo seu, porque era sempre capaz de manifestar aquela rara virtude que tanto o tornava encantador: o humor. Seu senso de humor lhe permitia manter certa distância crítica de qualquer fato. Não admitia ser traído pela emoção, porque sabia que nada de humano merece ser levado demasiado a sério.

         Convivi com Gustavo Gutiérrez em Puebla, em janeiro e fevereiro de 1979, durante a Terceira Conferência Episcopal Latino-americana. Nessa ocasião, o nome dele, do mesmo modo que o de outros teólogos da libertação, tinha sido excluído da lista de assessores oficiais. Sem acesso direto ao local de encontro dos bispos, muitos prelados vinham até ele em busca de ajuda, o que o obrigava a passar noites inteiras elaborando rascunhos e propostas. Estávamos todos alojados precariamente em dois apartamentos sem mobília, que raramente tinham água e cujos banheiros careciam de luz. Sobrevivíamos com algum maná caído do céu, porque não havia cozinha, e nos restaurantes da cidade seríamos presas fáceis da imprensa internacional, sempre em busca de um teólogo para decifrar a linguagem eclesiástica dos textos, ou dar uma entrevista exclusiva que confirmasse a natureza rebelde ou herética da teologia da libertação…

         Depois de driblar todos os correspondentes estrangeiros durante dias, na tarde do domingo, 4 de fevereiro de 1979, Gutiérrez aceitou a sugestão do Centro Mexicano de Comunicación Social (Cencos) de realizar uma coletiva de imprensa no hotel El Portal. Em seus comentários, enfatizou que a teologia da libertação não tinha planejado começar por uma reflexão sobre os pobres. Os próprios pobres, agentes da transformação histórica, iniciaram essa reflexão teológica. O objetivo da teologia da libertação é dar aos pobres o direito de pensar e se expressar teologicamente. Quanto mais os jornalistas o pressionavam para deixar escapar algo que pudesse soar como heresia, tanto mais Gutiérrez se mostrava fiel aos pobres e à Igreja. Era mestre em reconciliar polos aparentemente opostos.

         Encontrei-me com ele em diferentes ocasiões, quase todas em seu escritório – a “torre” de Rimac, bairro pobre de Lima. Decididamente, um dos escritórios mais desordenados que jamais vi. Espalhados e misturados no chão estavam latas de Coca-Cola e livros do cardeal Ratzinger. Havia garrafas em cima de documentos papais, fios elétricos desgarrados perambulavam entre papeis empoeirados. Não havia o menor indício de que um espanador havia estado lá desde a chegada de Francisco Pizarro ao Peru. Apesar disso, aquela confusão tinha lógica para ele. Sabia exatamente onde encontrar cada coisa. Era em meio àquele monte de papeis que ele devorava os livros que recebia. Quando sentia fome, comia ali perto alguma refeição comum indefinida, junto com desempregados e subempregados.

         Gutiérrez sempre preferiu ler a escrever. Tinha seu próprio método de leitura dinâmica, como se dotado de uma antena que lhe dizia qual a qualidade do conteúdo de uma obra. Escrever, para ele, era um parto doloroso. Quando o fazia, admitia que chegar à versão final exigia-lhe sacrifício. Sempre considerava um texto como provisório, a ser revisto e melhorado. Por isso, quase todas suas obras começaram como palestras mimeografadas. É provável que seja autor de muitas obras não publicadas, conhecidas só por pequeno círculo de leitores. Em geral, nem sequer assinava os textos mimeografados, que incluíam excelente introdução às ideias de Marx e Engels e o relacionamento que mantiveram com o Cristianismo.

         Em janeiro de 1985, na véspera da visita do Papa João Paulo II a Lima, eu o encontrei na “torre” de Rimac, quando escrevia uma série de artigos ligados àquele importante evento eclesial. Enquanto conversávamos, Gutiérrez tentava desembaraçar um longo fio de telefone – mais parecia uma bola de lã na boca de um gato brincalhão. Ele sempre tinha que manter as mãos ocupadas ao se sentir nervoso, seja torcendo um elástico ou brincando com uma caneta esferográfica. E naquele momento tinha razões mais que suficientes para estar tenso, pois o cardeal Ratzinger anunciara, para breve, resposta à defesa que Leonardo Boff havia feito de seu livro Igreja, Carisma e Poder contra as críticas de Roma. O Natal tinha passado e a Cúria ainda permanecia em silêncio. A segunda “Instrução” sobre a teologia da libertação, baseada numa consulta aos bispos da América Latina, prometida para novembro ou dezembro, também não tinha aparecido. Talvez tivesse sido decidido que o papa deveria fazer uma declaração mais oficial sobre a teologia da libertação no local. Nada poderia ser mais oportuno que um pronunciamento durante uma visita à terra natal do pai da teologia da libertação. Gustavo tinha medo de que o papa dissesse algo que pudesse ser interpretado como uma condenação de sua teologia. Seria desastroso. Apesar disso, estava pronto a deixar a “torre” que o protegia do assédio da imprensa e aparecer no encontro do papa com sacerdotes e leigos na praça. Mais uma vez parecia certo de que, devido às suas raízes indígenas, como pessoa capaz de caminhar através da floresta sem despertar a natureza de seu sono, sua presença seria discreta como a garoa que cobre os telhados de Lima antes do amanhecer.

Admiradores e inspiradores   

         A caminho de Cuba, os irmãos Leonardo e Clodovis Boff e eu passamos por Lima, no fim da tarde de 4 de setembro de 1985. Encontramos Gustavo na paróquia operária onde, junto com o padre Jorge, diretor da Pastoral Operária de Lima, o teólogo exercia seu ministério sacerdotal. Insistimos que viesse conosco para Havana, porque Fidel Castro tinha demonstrado grande desejo de encontrá-lo. Gustavo foi evasivo, objetou que, naquele mesmo momento, um grupo de bispos peruanos, liderados pelo arcebispo Durán Enriquez, preparava um livro didático criticando seus escritos, o que significava que teria de se concentrar em produzir uma espécie de defesa antecipada. Algum tempo depois, Gutiérrez confirmou que não tinha ido a Cuba em atenção a um pedido do padre Carlos Manuel de Céspedes, então secretário geral da Conferência Episcopal Cubana, que fora seu colega em Roma. O sacerdote cubano tinha medo de que a presença do teólogo peruano em Cuba fosse explorada politicamente.

         Na noite seguinte ao nosso encontro em Lima, Leonardo, Clodovis e eu nos encontramos com Fidel Castro em Havana. Entregamos a ele a carta que o teólogo lhe mandara. Ao terminar, comentou que acabara de ler Teologia da Libertação e se disse impressionado com sua base científica e seu impacto ético. Mencionou especialmente a honestidade com que Gutiérrez trata a questão da luta de classes e a dimensão da pobreza. E acrescentou, com ênfase: “Precisamos distribuir livros como este ao movimento comunista. Nosso povo não sabe nada sobre isso. Para vocês é mais difícil escrever um livro como este, do que para nós produzir um texto sobre marxismo.” Alguns dias depois, Fidel declarou, na presença de dom Pedro Casaldáliga, do Brasil, que “a teologia da libertação é mais importante que o marxismo para a revolução na América Latina”.

         Mas quem pensa que a política falava mais alto no coração de Gutiérrez está enganado. Ele era acima de tudo um místico. Seus livros mais recentes, O Deus da Vida, Sobre Jó: Falar de Deus, O Sofrimento do Inocente e Beber de nosso próprio poço, são fundamentalmente espirituais, visam alimentar a vida de fé e oração de cristãos comprometidos com a luta popular. Para Gutiérrez, a teologia era secundária. O essencial consiste em fazer a vontade de Deus na ação libertadora. E sua aguda visão teológica captava a presença do Senhor, solidário lá onde Ele parece estar mais ausente, no sofrimento dos pobres. Esse sofrimento permeava a vida do próprio Gustavo, pois sua saúde delicada exigia cuidados constantes. Mas ele não se queixava. Preferia gritar pelos pobres.

         Certa ocasião, passei um dia inteiro com ele no Curso de Verão, em Lima, ao qual acorriam milhares de militantes de comunidades cristãs de base em busca de fundamentação teológica. Percebi que ele estava triste, embora tivesse apresentado seu curso com a habitual vivacidade. Havia uma sombra naquele rosto que se iluminava, feliz, quando rodeado de pessoas simples, pobres, dedicadas à utopia do Reino. Conversamos, e nem uma palavra de autopiedade saiu de seus lábios. Só mais tarde fiquei sabendo que sua mãe havia falecido naquele dia.

         O livro sobre Jó é uma autobiografia disfarçada de Gustavo Gutiérrez. De suas páginas surge a profunda convicção de que toda a teologia da libertação deriva do esforço de dar sentido ao sofrimento humano. Na busca desse sentido, o teólogo sabe que, como diz Clodovis Boff, tudo é política, mas a política não é tudo. A solidariedade com o pobre não se esgota na causa da justiça; ela nos conduz à esfera da gratuidade, onde o despojamento espiritual abre o caminho para a comunhão com Deus. Assim como na América Latina a vida de fé não pode ser separada das exigências da política, também o projeto revolucionário deveria encontrar na mística cristã o modelo para a formação de novos homens e mulheres. Consequentemente, a teologia da libertação só pode ser acusada de desprezar a dimensão espiritual por alguém que não conheça a longa lista de obras que nasceram da contemplação e das mãos de teólogos e teólogas como Gutiérrez.

         Os estigmas divinos queimavam as entranhas de Gustavo Gutiérrez. É impossível apreender a profundidade total de sua inspiração intelectual, seu papel profético e sua alma mística sem conhecer aqueles três peruanos que estão na raiz de sua genialidade: José Carlos Mariátegui, César Vallejo e, acima de tudo, José María Arguedas. Do comunista Mariátegui, autor do clássico Siete Ensayos Peruanos, Gutiérrez aprendeu a técnica de canibalismo cultural necessária para latino-americanizar toda a bagagem teórica de seus anos de estudos em Roma, Bélgica, França e Alemanha. Do poeta César Vallejo, autor de Trilce, poesia tão importante para a literatura moderna quanto Ulisses, herdou o lamento nostálgico da criatura sofredora diante do silêncio do Criador: “Meu Deus, se Você tivesse sido humano hoje, Você seria capaz de ser Deus” (Los dados eternos). “Nasci num dia em que Deus estava doente” (Espergesia).

         No entanto, a influência maior foi a do novelista José María Arguedas, de quem Gutiérrez era amigo, e a quem rendeu tributo em muitas de suas palestras e escritos. É significativo que ele tenha escolhido, como epígrafe de sua obra Teologia da Libertação, uma página do livro Todas las Sangres deste autor quéchua, especificamente aquela em que o sacristão indígena de Lahuaymarca diz ao sacerdote: “Seu Deus não é o mesmo. Ele faz com que pessoas sofram sem consolo…”

         “Será que Deus poderia estar no coração daqueles que dilaceraram o corpo do inocente Mestre Bellido? Será que Deus poderia estar no corpo dos engenheiros que estão matando La Esmeralda? No coração das autoridades que tiraram de seus donos aquele campo de milho onde, em cada colheita, uma virgem costumava brincar com seu filhinho pequeno?”

         Em novembro de 1981, encontrei Gustavo em Manágua. Lá, entre discussões teológicas com os dirigentes sandinistas, numa tentativa de ajudá-los a entender as diferentes posições dos cristãos quanto à revolução, nasceu aquilo que mais tarde se tornaria seu livro sobre Jó. Nele levanta a questão fundamental e pergunta a si mesmo: Como podemos falar sobre Deus no meio de tanta opressão? Se queremos fazer teo/logia, falar sobre Deus, disse ele, precisamos primeiro ficar em silêncio diante de Deus. Desse silêncio, que envolve os corações dos pobres, nasce a sabedoria.

    No convento de Lima, Gustavo, meu confrade na Ordem Dominicana, transvivenciou em 22 de outubro de 2024.  Com certeza repete com Jó: “Antes eu Te conhecia só por ouvir dizer; mas, agora, meus olhos Te veem.”

Frei Betto é escritor, autor de “Reinventar a vida” (Vozes), entre outros livros. Livraria virtual: freibetto.org