O Fantástico é a revista eletrônica da TV Globo há mais de 30 anos. Trata-se de um exemplo de programa bem feito, sob todos os pontos de vista. Principalmente, do ponto de vista de quem quer manter uma sociedade injusta e desigual como a nossa. Por Sergio Domingues, julho de 2005.
Para ter uma idéia da competência do programa, vamos analisar a edição que foi ao ar na noite de 17 de junho de 2005. A grande atração foi uma entrevista com Lula, feita em Paris. Acabou sendo exibida quase no final do programa para ajudar a segurar a audiência. Mas, a entrevista era apenas um dos meios de manter a atenção do telespectador. A variedade de atrações é grande e bem combinada.
Depois da matéria “Dez anos sem Mamonas Assassinas”, veio a estréia de uma série sobre os cinco sentidos. O primeiro episódio era sobre o paladar. Apresentada pelo excelente ator Lázaro Ramos, o quadro exibe algumas cenas certamente tiradas de produções estrangeiras. Mas, quadros filmados em ruas brasileiras e a engraçada narração de Lázaro tornam o assunto simpático e próximo de nosso público. Depois disso, veio uma reportagem sobre “Álcool na adolescência”, explorando o fato de que se trata de uma droga “aceita socialmente”. São apresentadas estatísticas graves sobre a elevação do consumo entre adolescentes. Mas, a ênfase ficou para o controle dos pais. Não se toca nos lucros das produtoras de bebidas alcoólicas ou na constante presença de comerciais de cervejas na TV. Nem poderia. Afinal, os intervalos do Fantástico estão cheios deles.
“Receita das sopas do Fantástico” é outra atração do programa. Junto com a visita à “Costa dos Corais”, em Alagoas, e uma reportagem de Maurício Kubrusly sobre literatura de cordel, esse tipo de matéria dá aquela sensação de que é possível conhecer as belezas e novidades do País sem muito esforço. Enquanto uma minoria pode cruzar as grandes cidades de helicópteros, pagar passagens aéreas e se instalar em hotéis luxuosos, a grande maioria vai se contentando com o turismo pela telinha. Fica valendo um dos lemas da Globo: “Globo: a gente se vê por aqui”. É o nacionalismo segundo a visão de um monopólio de comunicação.
A filosofia como algo sem ação ou reação
Outra série está estreando nesse domingo. É “Ser ou não ser”, sobre filosofia. O episódio de estréia começa explicando que “o homem fica admirado diante do espetáculo da vida (…) . Quem não ficou espantado diante da devastação causada pela onda gigante no fim de 2004?” pergunta a narradora. E continua:
“Tragédias provocadas pelo homem, como os atentados de 11 de setembro, nos fazem repensar a história. Perplexidade é o que sentimos quando estamos diante de alguma coisa que não conhecemos, quando nos deparamos com o que não podemos entender nem controlar. Por mais longe que a ciência tenha chegado, não podemos calcular o que vai acontecer no momento seguinte. Esse desconhecimento nos faz pensar”.
Tudo isso faz muito sentido. Mas, nem tudo é tão inexplicável. As trágicas conseqüências do tsunami podiam ter sido evitadas. Mas, as autoridades das áreas sob risco não quiseram instalar equipamentos de alerta. Era muito caro e poderia assustar os turistas. Esta já é uma explicação que não exige muita filosofia. É o lucro acima da vida. O mesmo vale para os ataques de 11 de setembro, cujos executores foram armados e financiados pelos próprios Estados Unidos, vinte anos atrás.
Mas o ponto alto do quadro é a utilização de um exemplo mostrando “a situação de um migrante quando chega a uma cidade grande”. É Alexandre, de 18 anos. Ele “saiu de Cacimba de Dentro, no interior da Paraíba, em busca de emprego em São Paulo. Chegou no dia do trabalho, primeiro de maio”. O jovem é mostrado circulando por uma cidade esvaziada pelo feriado. Nada de imagens de possíveis comemorações e manifestações pela data do Dia do Trabalhador, claro. E a matéria segue:
” Vou trabalhar no que der certo, num restaurante, num posto de gasolina, num lava rápido, qualquer coisa. Dando certo o emprego, estou dentro dele , diz ele. Agora, ele se vê diante de um mundo muito maior e mais estranho do que poderia imaginar”. Sou um rapaz jovem. Tem que apelar para a vida: ou tudo ou nada , acredita Carlos Alexandre”.
O drama de milhares de pessoas chegando às cidades grandes atrás de ocupação (qualquer uma), vira uma divagação filosófica! Que tal mostrar estatísticas que demonstrem que Carlos Alexandre e outros milhares como ele têm pouquíssimas chances de se dar bem? Ou que mesmo que arranjem uma ocupação, receberão remunerações ridículas por enormes jornadas de trabalho? Nada disso. O negócio é mostrar a filosofia como algo fora da realidade. Um permanente estado de espanto. Sem ação ou reação.
Em meio a tudo isso, o interessante é ver como a linguagem é explicada. “As pessoas falam línguas diferentes umas das outras, mas todas têm uma capacidade que é exclusiva do ser humano, a de usar a fala para se comunicar”, diz a narradora. E ilustra isso usando imagens de novelas da Globo dubladas em vários idiomas. Enquanto isso, as falas do jovem migrante são legendadas. Afinal, o sotaque do paraibano não se encaixa no paulistano ou no carioca típicos das vozes impostas pela programação da Globo. Realmente, “as pessoas falam línguas diferentes umas das outras”, mas no Brasil, a Globo tenta uniformizar até a língua falada. Quem foge ao padrão, ganha legendas, como se fosse um estrangeiro.
O primeiro episódio da série encerra dizendo que “o pensamento dos grandes filósofos está registrado em livros. O que vamos fazer a partir de hoje é trazer algumas questões discutidas nos livros, para a sua vida, o seu dia a dia”.
Depois de uniformizar a fala, padronizar o pensamento
Uma Pesquisa foi divulgada recentemente pela consultoria americana “NOP World”, de Nova York. O estudo entrevistou cerca de 30 mil pessoas de 30 países, entre dezembro de 2004 a fevereiro de 2005. Pois bem, diz a pesquisa que a população brasileira lê, em média, pouco mais de 5 horas por semana. Fica no 27º lugar, em uma classificação liderada pela Índia. Por outro lado, mais de 18 horas semanais são gastas pelos brasileiros diante da televisão, ficando em 8ª lugar nesse item. E é em uma realidade como esta, que o Fantástico vai apresentar “questões discutidas nos livros” para seus telespectadores. Além da língua falada, o Fantástico agora tenta uniformizar o pensamento!
Para dar uma relaxada, entra em cena “Damas e Cavalheiros”, um quadro humorístico que focaliza situações engraçadas em banheiros. Neste domingo, foi a vez dos talentosos Diogo Vilela e Marco Ricca.
Seguem-se reportagens as mais diversas. Uma delas mostra uma mala cheia de dinheiro falso que a produção do programa fez circular por vários aeroportos. Somente em São Paulo, e por acaso, a mala foi descoberta. Uma ajuda à tese de que a prisão do assessor parlamentar do PT cearense pode ter sido armada? Parece que sim.
Uma reportagem sobre a Daslu quase não falou sobre as causas da prisão de sua gerente, detida por suspeita de sonegação de impostos, entre outros crimes. Corretamente, divulgou que, no Brasil, cerca de “0,27% da população consome luxo regularmente”. Mas, preferiu afirmar, através de seus entrevistados, que “a compra de um produto de luxo é algo muito emocional”. Provavelmente, 99,8% dos brasileiros que não podem nem passar em frente à loja Daslu estejam sofrendo de grave falta de emoções.
De qualquer maneira, a qualidade das imagens e de sua edição, o ritmo narrativo, o talento de atores e atrizes. Tudo torna o Fantástico um exemplo de competência na arte de causar grandes estragos ideológicos aos setores populares. E mostra também a capacidade da Globo de atualizar suas atrações, aperfeiçoar seus mecanismos de captura de audiências, manter sua credencial de grande fonte de informação das famílias brasileiras. Informação a serviço dos poderosos, é verdade. Mas como poderia ser diferente, se o monopólio da Globo permanece intocável?
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Sérgio Domingues integra a equipe do NPC e escreve para as páginas Mídia Vigiada e Revolutas