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[Por Gizele Martins/ publicado no Brasil de Fato] São mais de 120 anos desde o surgimento das primeiras favelas no Rio de Janeiro, mais de 120 anos que o histórico de luta deste local formado por uma população negra, indígena e de imigrantes, vindos principalmente do nordeste brasileiro, é apagado. Na verdade, o que se tem historicamente são mais questionamentos sobre o comportamento deste povo, do que valorização ou afirmação de forças e resistências que essa população tem. As favelas são carregadas de simbolismo coletivo que tem como características a proteção e a sobrevivência diária. Sobreviver da forma precarizada não é uma escolha, é porque ainda não somos incluídos como parte da cidade, por isso, nossos direitos ainda são migalhas.

 

As nossas casas foram construídas de forma coletivas, o famoso mutirão. Nosso cuidado com as crianças nas ruas são coletivas: estamos sempre de olho na hora que as crianças tem que comer, ir à escola, voltar pra casa, brincar.

Nossas mídias comunitárias e feitas de formas coletivas também nascem para nos afirmarmos enquanto seres que merecemos o direito à vida, à cultura, o funk, o lazer, a identidade apagada historicamente, ou seja, tentando tirar de nós o que afirmam todos os dias como “inimigos”, “burros”, “agressivos”, “ignorantes”, “aqueles que enfeiam a cidade”, “preguiçosos” ou “os que merecem o lugar que tem”.

Estar e ser favela é um “se virar nos trinta”, como diz outra gíria popular “é o que tem pra hoje”. É uma articulação de sobrevivência do próprio saber, são costumes coletivos que devem e merecem ser valorizados. Partindo desta valorização e enxergado a favela como parte, é daí que conseguiremos o diálogo com este povo, com esta favela, com esta cultura. Ou seja, ou chega de igual para igual, ou não será ouvido porque chegar de cima para baixo é, também, reproduzir uma prática racista de “sempre ensinar algo para o desprovido de estudos” e não “aprender junto com aquele que tem uma sabedoria popular coletiva e de sobrevivência”. Não falo aqui de romantizar esse espaço, mas não podemos criminalizá-lo, ignorá-lo, desmerecê-lo no seu saber próprio. É preciso olhar para esse local diverso e de moradia, com o olhar que ele merece ter. Pois o uso de estereótipos sobre ele também é parte de um sistema que tenta nos apagar da história.

Na época das eleições, choveu críticas a esse povo favelado. Era como se a gente não soubesse de política ou da falta de direitos, sendo que somos nós o que mais sabemos da falta até do direito à vida – o principal direito que deveria nos ser garantido. Talvez, por sabermos que este tal direito nunca foi nos dado ou garantido, é que muitos nem mesmo acreditem mais nesse sistema eleitoral, ou eleitoreiro, como dizem os mais velhos de nossas casas. Talvez por sabermos que sempre nos faltou o mínimo é que o voto virou só mais um mero detalhe obrigatório.

Para finalizar, é importante ressaltar que o fazer política, o papel político, partidário e ou o movimento social autônomo vindo de fora da favela, só será ouvido se ele for feito desde o início com o povo, com a população, com a favela, respeitando esse lugar, respeitando a política que já fazemos também na favela, pois aqui também produzimos muita disputa ideológica e nos utilizarmos de nossas criatividades para estar todos os dias nas ruas da favela dialogando. É preciso o diálogo para avançarmos, a favela existe e suas formas de lutas e vivências também.

*Moradora da Maré, jornalista (Puc-Rio), mestre em Comunicação, Educação e Cultura em Periferias Urbanas (FEBF-UERJ) e integrante do Movimento de Favelas do Rio de Janeiro.

Edição: Mariana Pitasse