Na verdade, o Lobo de Wall Street era apenas um chacal ou uma hiena que se alimentava da volumosa carniça que lhe sobrava. O filme de Scorcese é diversão nos dois sentidos da palavra
Por Sérgio Domingues*
“O Lobo de Wall Street”, de Martin Scorcese, é uma adaptação do livro de memórias de Jordan Belfort, corretor de títulos da bolsa norte-americana. Interpretado por Leonardo DiCaprio, logo no início do filme, o protagonista lista as várias drogas que ingere durante todo o dia para manter o ritmo louco do mundo da especulação financeira. Mas ele é categórico: há uma droga que é a mais terrível e poderosa de todas. A cena mostra Belfort aspirando uma carreira de pó branco. Mas não se trata de cocaína. Ele se refere ao canudo que utilizou para cheirar a droga, feito com uma nota de dinheiro enrolada. “Esta é a mais poderosa das drogas”, diz ele.
E o filme todo é sobre os efeitos dessa substância que circula pelas veias de praticamente todas as sociedades do mundo atual. Que levou a vida social contemporânea a uma dependência, mais do que química, alquímica. Uma alquimia que não transforma apenas chumbo em ouro, mas converte tanto matéria, como espírito em bens monetizados. Em ativos que podem ser negociados nos mais diversos tipos de mercados em que foram transformadas as várias esferas da vida humana.
Ao mesmo tempo em que a droga é um meio para manter a acumulação de riquezas, a riqueza não é um meio se não para si mesmo. Não há objetivos maiores do que o de possuir mansões, carrões, iates e tudo que esteja em conformidade com os padrões impostos pelo mercado de luxo, inclusive as mulheres.
Belfort e seu time de corretores precisam fazer dinheiro aos montes para ingerir doses cavalares de drogas, alimentos e bebidas, vestir as melhores grifes e fazer sexo em tempo integral. Mas, no fundo, fazem tudo isso apenas para voltar a fazer dinheiro. Este último é o seu verdadeiro mestre. Aquele a quem devem obediência e devoção.
Impossível assistir às cenas que mostram as palestras de motivação de Belfort para seus empregados sem lembrar de cultos religiosos. O uso poderoso da palavra, o discurso emocionado, as metáforas arrebatadoras, os gestos de comunhão histérica, os ataques de choro, os urros de fé e as juras de fidelidade às leis nada divinas da selva capitalista.
Muitos criticaram o filme por tornar simpática uma figura asquerosa. Por transformar em cenas cômicas as armadilhas com que Belfort levava pessoas pobres a apostar suas economias em investimentos furados apenas para que ele ganhasse sua polpuda comissão. Mas, creiam, o maior vilão dessa história não aparece no filme de Scorcese.
Do mesmo modo que o pastor ou o padre são apenas intermediários, Belfort é somente parte de uma matilha que apanha os restos deixados por feras muito maiores e mais vorazes. Não foi à toa que Marx resolveu chamar de “O Capital” sua maior obra, ao invés de “Os Capitalistas” ou “A Burguesia”, por exemplo. O capitalismo funciona como um mecanismo social que aliena até mesmo seus maiores beneficiários.
As cada vez mais recorrentes catástrofes ambientais, as seguidas e agudas crises econômicas, as ameaças de crises alimentares e catástrofes biológicas. Tudo isso é produto do que Marx chamou, não gratuitamente, de “anarquia da produção capitalista”. Um mecanismo que se alimenta de uma concorrência que vem se transformando na corrida para o abismo que Walter Benjamim já temia mais de 70 anos atrás.
Nada disso autoriza a isentar de culpa os poderosos controladores dos meios de produção e de circulação da economia mundial. Nem implica dizer que o modo de produção capitalista torne a todos suas vítimas, indistintamente. Estão aí o luxo e riqueza para uma minoria minúscula e as limitações materiais mais básicas e os constrangimentos morais mais humilhantes para a gigantesca maioria do planeta.
Belfort não apenas tem culpa, como chegou a quebrar a própria legalidade de um sistema feito para promover a rapina mais cruel. Mas os responsáveis por levar a cabo o grande massacre são outros. São poucos e são patrocinadores e apadrinhados dos poderes políticos e institucionais em todos os cantos do planeta.
Basta que lembremos uma pesquisa da ONG britânica Oxfam divulgada em janeiro passado. O estudo revela que o patrimônio das 85 pessoas mais ricas do mundo equivale às posses de metade da população mundial. Este grupo que não chega a uma centena de indivíduos tem um patrimônio de US$ 1,7 trilhão. Valor que equivale aos bens das 3,5 bilhões de pessoas mais pobres do mundo. O relatório também mostra que a riqueza do 1% das pessoas mais ricas do planeta equivale a US$ 110 trilhões. Ou 65 vezes a riqueza total da metade mais pobre da população mundial.
Muito dificilmente essas pessoas seriam levadas a responder por alguma ilegalidade. Não apenas porque o atual aparato jurídico não foi feito para punir os que o puseram para funcionar. Mas, principalmente, por causa da natureza concentradora do Capital. Uma espécie de atração gravitacional poderosa como a dos buracos negros. Um fenômeno que vem confirmando as previsões nada astrológicas de Marx desde ele estudou as primeiras crises capitalistas. Estes pequeno grupo superprivilegiado poderá ser ainda menor, em pouco tempo.
Nessa imensa carnificina, o Lobo de Wall Street era apenas um chacal ou uma hiena que se alimentava da volumosa carniça que lhe sobrava. O filme de Scorcese é diversão nos dois sentidos da palavra. Feito para entreter e para despistar.
*Sérgio Domingues é sociólogo e autor do blog Pílulas Diárias