Semana será marcada com programação festiva da emissora. Estudiosos, jornalistas e ONGs refletem sobre quatro décadas de oligopólio da família Marinho. Cerca de 80% da população brasileira não tem outra fonte de informação. Da Agência Carta Maior, 26/04/2005
 

“O Brasil não gosta de novela/ pega na mentira”, cantou Erasmo Carlos em 1981. Brincando, o parceiro de Roberto Carlos destacou, em música, um dos mais caros símbolos do decantado “padrão Globo de qualidade”, influência inquestionável no imaginário nacional. Com o telejornalismo (que muitos caracterizam como “anódino” apesar de várias reformas), a teledramaturgia global já virou produto de exportação da quarta maior emissora do mundo. Nesta semana em que completa 40 anos de fundação, a Rede Globo de Televisão vai exibir especiais repassando sua história e esmiuçando de forma generosa seu dotes, mostrando “por dentro” sua “fábrica de sonhos”.

Antes mesmo desse festival de amor próprio na telinha, circulam pelas livrarias três livros que, em torno da figura do patriarca Roberto Marinho (1904-2003), derramam loas à trajetória do monopólio, ora dissimulando, ora diminuindo o histórico conluio com o poder e os diversos episódios de manipulação da opinião pública. O mais laudatório dos títulos, “Roberto Marinho” (Jorge Zahar), vem de Pedro Bial, repórter da casa que o jornalista Nirlando Beirão chama de “MC do Big Brother”. O amigo de Academia Brasileira de Letras (ABL) Arnaldo Niskier e Mauro Salles (ex-chefe dos veículos mais importantes de Marinho) escreveram “Dr. Roberto” (Consultor) e a viúva, terceira senhora Marinho, escreveu seu “conto de fadas” em “Roberto & Lily” (Record). São títulos que Beirão (em Carta Capital 338, de 20/04/2005) não teme em classificar como tentativas de beatificação daquele que Carlos Lacerda chamou uma vez de “Al Capone da imprensa brasileira”.

Ao largo desses tomos e das esquetes lacrimosas à Vênus Platinada, vão surgindo análises bem mais profundas e distanciadas de como se ergueu e continua operando o império das Organizações Globo. Um grupo de pesquisadores e professores universitários, organizados por Valério Cruz Brittos (Unisinos/RS) e César Ricardo Siqueira Bolaño (UFS/SE), lança nesta semana pela editora Paulus uma série de artigos que refletem sobre os diferentes aspectos políticos e funcionais das Organizações Globo. Dividido em três partes (17 capítulos, 373 págs), “Rede Globo – 40 anos de poder e hegemonia” recupera fatos marcantes nesses 40 anos de vida do grupo. Desde a constituição inaugural fraudulenta com o grupo norte-americano Time-Life nos anos 60 (antes fartamente explicado por Daniel Herz em “A História Secreta da Rede Globo”, Tchê, 1987, já na 14ª edição) aos últimos movimentos políticos da emissora em Brasília (com participação decisiva da diretora Marluce Dias) que culminaram com o esvaziamento da proposta de um marco regulatório do setor no Brasil pelo projeto que criava a Agência Nacional do Cinema e do Audiovisual (Ancinav).

Grotesco

Não são só fatos nada lisonjeiros à história da empresa que são debatidos no livro. Há também um reconhecimento ao dinamismo comercial, à inovação tecnológica e de programação que captam a fidelização do público e ajudam a sustentar a hegemonia do grupo. Esses casos são mostrados em capítulos que tratam das telenovelas (9), da instalação da rede em Portugal (8), os projetos de teleducação (capítulo 12, versa sobre Canal Futura, Fundação Roberto Marinho etc), o braço fonográfico (Som Livre, capítulo 15) e a Globo no cinema (Globofilmes, capítulo 17). Mas nem esses sucessos de público e algum reconhecimento de crítica têm passado incólumes nesta data importante. Muitos profissionais e estudiosos da comunicação vêem neles mais um mero artifício de diversificação comercial sob o manto da “responsabilidade social” da empresa. 

“Na teledramaturgia, de tão alardeada competência, o saldo da Globo é composto de momentos brilhantes cercados por um cotidiano de produções rasas e repetitivas. Não que faltem talentos às emissoras da família Marinho. O que falta é liberdade para criar sem maiores sujeições ao mercado. Uma lógica perversa que exclui da tela importantes manifestações culturais brasileiras”, avalia o professor Laurindo Lalo Leal Filho, da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), em um comentário sobre as novelas globais. 

Muniz Sodré, professor da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (ECO/UFRJ) acha que há um pêndulo maquiavélico na programação da televisão aberta no Brasil, Globo à frente, naturalmente. “Predominam hoje dois padrões de programação: o de ´qualidade´, ou seja, esteticamente ´clean´, bem comportado em termos morais e visuais e sempre fingindo jogar do lado da ´cultura´, e o do grotesco, em que se desenvolvem as estratégias mais agressivas pela hegemonia de audiência”, escreveu Sodré em “O Império do Grotesco” (Editora Mauad), livro em que analisa, com sua colega Raquel Paiva, o triunfo da banalidade cujo “Big Brother Brasil” é o supra-sumo. Ele resume numa frase o atual momento. “Antigamente falava-se das pessoas porque eram boas, hoje elas são boas porque fala-se delas”. 

Outra suposta virtude da TV dos Marinho para com o país, a integração cultural, é desdenhada pelo professor da USP, Laurindo Lalo Leal Filho, também presidente da ONG Observatório Brasileiro de Mídia. “A integração cultural do país se fez graças a uma rede física de telecomunicações montada pela ditadura militar e usada pelas emissoras globais para unificar o mercado de consumo nacional de bens materiais e simbólicos. Com a Globo, o Brasil passou a se pautar pelo jeito ipanemense de viver, ainda que ele seja inacessível à maioria da população”, critica Leal Filho. 

Telejornal de crachá escondido

Em meados do ano passado, Carlos Henrique Schroder, diretor-responsável por todos os telejornais da Rede Globo (aglutinados administrativamente sob a sigla CGJ – Central Globo de Jornalismo), fez uma peregrinação nacional e visitou todas as afiliadas da empresa. Na ocasião, o executivo deixou claro o que a Globo quer das empresas ligadas a ela e apresentou uma pesquisa interna, a qual a Carta Maior teve acesso e traz à luz agora. Segundo Schroder, o Jornal Nacional voltou a registrar índices próximos de 50 pontos no Ibope (cada ponto equivale a 450 mil telespectadores em escala nacional). “O maior dos últimos 10 anos”, comemorou na época, falando da última repaginada do jornal em que os apresentadores aparecem com imagens da redação ao fundo. Segundo o diretor da CGJ, “as mudanças editoriais da TV Globo nos últimos anos só foram percebidas pelo público quando mudou o cenário do telejornal”.

Traduzindo os números de uma pesquisa qualitativa da Rede Globo, Schroder repetiu uma obviedade que qualquer cidadão desconfia, a de
que 80% da população brasileira não tem outra fonte de informação além da Globo. Pelo relatório apresentado pelo chefão do jornalismo global, os telejornais concorrentes da Globo não passam, juntos, de seis pontos de audiência em média (Boris Casoy, na Record, não dava mais de quatro pontos, Carlos Nascimento, que trocou a Globo pela Bandeirantes, apenas dois pontos). O Bom Dia Brasil, sempre conforme os números exibidos por Schroder, dava a média de 10 pontos de audiência e “é hoje o programa [além da categoria jornalística] de público mais qualificado da televisão brasileira”, complementou Schroder. 

Para pesquisas como essa, a emissora coloca um grupo de telespectadores para assistir a algumas edições do Jornal Nacional e colhe avaliações numéricas (notas) e juízos de valor sobre a cobertura em diferentes assuntos. A direção da empresa infere da última enquete, conforme o relato de Schroder, que saúde e cultura nunca são temas rejeitados, mas saúde deve ser sinônimo de dicas de prevenção e tratamento de doenças, enquanto cultura só dever virar pautas do telejornal quando agrupar grande quantidade de gente, como as festas juninas do Nordeste, as efemérides carnavalescas e outras do tipo. Disso resulta que o próprio público do Jornal Nacional acha “insatisfatória” a cobertura do telejornal em assuntos culturais. 

Essa mesma avaliação desse grupo pesquisado vai para assuntos como política nacional (em muito atrelada à própria má avaliação dos políticos) e política e economia internacionais; a cobertura de economia nacional aparece como “mediana”. A pesquisa aponta também um “equilíbrio” e “mais imparcialidade” da Globo na cobertura do governo Lula. Assuntos como catástrofes naturais e casos policiais são os únicos em que a cobertura global é vista de forma “satisfatória” pelos entrevistados. De tudo, Schroder depreende que o público quer ver telejornal como vê novela. “A novela repete o enredo a cada 30 capítulos. Eles [telespectadores] gostam de matérias mais leves e sentem a falta de um tradutor. Nós erramos ao não explicar melhor os assuntos, o desafio da TV é contextualizar a notícia como os jornais fazem em boxes explicativos”, teorizou o diretor de jornalismo da Rede Globo. Para ele, tudo é uma questão de “ajuste de linguagem” sem resvalar no jornalismo “popularesco”, “sanguinolento”, “que é sinônimo de desqualificação”. 

Para Lalo Leal Filho, da USP, o fato é que mesmo tentando traduzir os altos índices de audiência em confiabilidade, o jornalismo da Globo sempre deixa uma pulga atrás da orelha de quem o acompanha, especialmente junto ao público mais qualificado e até mesmo entre seus colaboradores. O próprio diretor Carlos Henrique Schroder, gaúcho de ascendência alemã (foi da afiliada RBS para o Rio de Janeiro há 20 anos), revela que, quando a TV Globo convidou Chico Caruso a levar para a tela do JN as charges que publica nas páginas de O Globo, o cartunista recusou-se, num primeiro momento, a fazê-las de forma exclusiva para a TV, “por medo de censura interna”. As charges começaram como animação do que saía no jornal. 

“A Globo não consegue ser chamada carinhosamente de tia pelo público, como acontece com a BBC britânica. Uma familiaridade conquistada ao longo de décadas de cumplicidade, não com governos ou anunciantes, mas com o público telespectador. Sem falar na confiança adquirida pelo telejornalismo, resultado de um árduo e cotidiano trabalho em busca do equilíbrio. Lá ninguém precisa esconder o crachá”, alfineta Lalo Leal Filho, comparando os telejornais britânico e brasileiro e referindo-se ao episódio da cobertura de manifestações estudantis contra a Alca na Avenida Paulista, em 2001, quando a equipe de reportagem da Rede Globo escondeu os crachás temendo represálias e ataques dos próprios estudantes. 

É o poder

O medo dos funcionários da Rede Globo, mesmo que infundado, encontra lastro na história de relações mal-explicadas e cooptação de atores políticos do poder nacional (militar e civil), além da pura e simples manipulação da opinião pública. Casos que mancharam a imagem do jornalismo sóbrio, equilibrado e confiável que a emissora tenta o tempo todo reforçar (ano passado, lançou outra dessas tentativas com o livro “Jornal Nacional – A Notícia Faz História”, Jorge Zahar, em virtude dos 35 anos do telejornal). Venício Lima, professor aposentado da UnB, elenca no já citado livro da Paulus (“Rede Globo – 40 anos de poder e hegemonia”) alguns do mais marcantes episódios da história da TV Globo que insistem em grudar nela a nódoa dos maus costumes tanto no jornalismo quanto nos negócios.

No capítulo cinco, “Globo e Política: Tudo a Ver”, Lima, que é jornalista e sociólogo com pós-doutoramento em comunicação nos Estados Unidos, destaca três: 1 – as eleições para governador do Rio de Janeiro, quando a TV Globo se aliou à empresa responsável pela contabilidade da eleição no interior do estado (Proconsult) para subtrair votos atribuídos a Leonel Brizola e repassá-los ao candidato governista Moreira Franco; 2 – a campanha das “Diretas Já”, quando a emissora escamoteou o quanto pôde o festival de grandes comícios que pipocavam pelo país pelo sufrágio universal para Presidente da República; 3 – a nomeação do Ministro da Fazenda (Maílson da Nóbrega) de José Sarney ter tido primeiro o aval de Roberto Marinho. 

Sobre esta última passagem em especial, Venício, registra trecho da biografia de Roberto Marinho feita por Pedro Bial em que o “MC do Big Brother” acha “natural que, na hora de escolher os seus ministros, o presidente eleito Tancredo Neves submeta seus nomes, um a um, ao dono da Rede Globo”. Em todos os episódios, o autor traz “Novos Testemunhos” num esforço de atualização dos fatos e tentativas de desmentidos. A seguir, Venício Lima enceta suas quatro hipóteses para explicar o poder da Globo no Brasil: 1- a convicção sobre seu próprio poder (baseado em sua massiva audiência), 2 – as condições institucionais favoráveis (em meio à acefalia político-partidária), 3 – identidade entre o público e o privado (para Lima, Roberto Marinho acreditava piamente que tinha uma “missão” pessoal com o interesse social no país) e 4 – a Globo tornou-se uma agência de legitimação do poder no Brasil. 

Mobilização digital?

Muitos observadores chamam a atenção para dados novos no xadrez da mídia que podem alterar a configuração do mercado e, por tabela, atingir o predomínio da Globo. Primeiro pela chegada por outras vias do capital estrangeiro, movimento insuflado pelo próprio empresariado nacional pela emenda constitucional que autorizou o aporte de 30% de capital estrangeiro no setor da teledifusão. Esse capital não veio como as elites da mídia queriam, mas pode chegar pelas empresas de telefonia, autorizadas que foram ainda no governo FHC. Outro fator novo é advento da televisão digital, que poderá, em tese, multiplicar indefinidamente as opções de TV no país. É a brecha que faltava para uma efetiva regulação que nunca existiu por força do lobbies dos “barões”
da mídia. 

Mas tudo isso reverbera ainda no campo das hipóteses. E já tem gente antevendo que pode fazer água essa esperança de democratização da produção e acesso à informação no Brasil. “Não sou tão otimista assim. Temo que com a TV digital tenhamos a repetição do que ocorreu com a chegada da TV por assinatura. A nova tecnologia resolveria tudo e não se viu nada disso. A maioria dos novos canais foi ocupada pelos mesmos grupos oligopolistas que já dominavam a TV aberta, mantendo distante qualquer tipo de pluralismo e diversidade. Com a TV digital pode ocorrer a mesma coisa. Não vejo na sociedade um movimento político consistente para garantir no novo espectro espaço para as emissoras públicas, por exemplo. As discussões, até o momento, estão muito centradas na tecnologia a ser adotada, deixando-se de lado o conteúdo. E a aposta das emissoras é de que tenhamos apenas uma televisão de alta definição e nada mais. Será triste se a televisão digital vier apenas para mostrar com precisão os fios das bolas de tênis ou do bigode do Ratinho”, ironiza de novo Lalo Leal Filho, da ECA-USP. 

Gustavo Gindre, do Instituto de Estudos e Projetos em Comunicação e Cultura (Indecs, do Rio de Janeiro), foi mais direto na tese de diminuição do poderio das Organizações Globo. “Existem duas possibilidades de enfraquecimento da Globo. A primeira seria através de uma ação consciente da sociedade civil. Uma ação como esta teria que, necessariamente, transcender os limites dos movimentos sociais que lidam diretamente com a comunicação. Seria preciso que a sociedade civil identificasse a democracia nas comunicações como uma demanda universal, como hoje já são os temas da saúde e da educação. Temos vários obstáculos para que isso ocorra. A segunda possibilidade de enfraquecimento da Globo (que, em parte, já está ocorrendo) é a via da própria disputa intra-capital. A Globo é refém de uma língua pouco falada, o que limita sua expansão internacional. Ainda por cima, tentou dar passos enormes (como, por exemplo, ser proprietária de empresas que detivessem as redes de transmissão de dados) e sofreu com má administração. Tudo isso fez com que a Globo perdesse espaço e começasse a se perceber ameaçada pela entrada do capital estrangeiro (especialmente das operadoras de telecomunicações). A Globo ainda será grande por muito tempo, mas creio que seu poder será, cada vez mais, relativo. Por fim, o problema não é apenas a Globo. Temos dois pólos importantes deste oligopólio. De um lado, empresas de mídia mal administradas, sem projetos de longo prazo, que se arrastam pelas nossas telas graças ao sistema anacrônico de comunicação do país. Penso, por exemplo, em SBT, Bandeirantes, CNT, RedeTV e congêneres. E existe um sistema de oligarquias regionais que detêm as afiliadas das grandes redes. Tocar neste vespeiro seria mexer com toda a relação de poder político do país e, sinceramente, não vejo vontade política para isso”, concluiu.
 

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Da Agência Carta Maior, 26/04/2005. Endereço: www.agenciacartamaior.com.br

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