Por Sérgio Domingues*, para o Boletim NPC
Dois filmes de gêneros muito diferentes estrearam no cinema este mês. Em um, a pouca gravidade coloca seus personagens à deriva no espaço sideral. No outro, o peso de uma globalização racista e excludente arrasta centenas de pessoas para o abismo das águas.
“Gravidade” é um filme de Alfonso Cuarón com Sandra Bullock e George Clooney. A bela produção tem efeitos especiais que aproveitam a tecnologia 3D de forma madura. Mas ganha interesse ainda maior se comparada a outro grande filme.
Em “Terra Firme”, Emanuele Crialese mostra uma comunidade tradicional da Sicília. O modo de vida baseado na pesca está em rápida extinção. Vai dando lugar à indústria do turismo. Complicando as duas atividades, uma legislação que proíbe acolher imigrantes clandestinos vindos, principalmente, da África.
No filme de Cuarón, a astronauta quase aceita a própria morte, vencida pela tristeza de ter perdido sua filha de quatro anos de idade. Na produção de Crialese, a refugiada etíope teima em continuar sua busca pelo marido, apesar de toda a violência que sofreu e de um estupro que a engravidou de um carcereiro.
Em “Terra Firme”, a refugiada leva dois anos para atravessar três países africanos e chegar ao Mediterrâneo, para fazer uma travessia que mata centenas de seus irmãos de cor por mês. Em “Gravidade”, a astronauta luta por sua sobrevivência saindo de um ônibus espacial americano, abordando uma espaçonave russa e usando uma cápsula chinesa. Tudo em questão de horas.
Em “Gravidade”, o naufrágio acaba em vitória da determinação da mulher, que enfrenta frio, fogo e água, para tornar a contemplar o belo planeta que a recebeu de volta. Em “Terra Firme”, a mulher com seus filhos pequenos precisa se esconder daqueles que seriam seus irmãos de espécie. Contemplar não combina com se ocultar.
No espaço sideral, os pedidos de socorro não são ouvidos por Houston devido a problemas técnicos. No mar mediterrâneo, os gritos dos náufragos devem ser ignorados pelos que poderiam recolhê-los porque a lei não permite seu salvamento.
Os protagonistas de “Gravidade” sentem orgulho de pertencer a uma espécie capaz de olhar seu planeta, sem enxergar outras divisões que não as marcadas por rios, florestas, desertos, mares. Em “Terra Firme”, alguns metros separam impiedosamente alguns poucos que podem viajar e se divertir e muitos outros a quem não é permitido abandonar a terra que os castiga com fome e guerras.
As duas belas obras de cinema são contrastantes não só em sua temática e elaboração estética. Mostram como uma mesma espécie pode ser tão criativa e poderosa quanto mesquinha e covarde. Que caminho a humanidade irá seguir?
Diferente do que acontece em “Gravidade”, a vida real não autoriza esperar outro destino senão um naufrágio cheio de agonia. Mas a atitude do jovem siciliano no final de “Terra Firme” nos permite um mínimo de esperança em um resgate de última hora.
*Sérgio Domingues é sociólogo e autor do blogPílulas Diárias.