Por Claudia Santiago
Daniel Pascual, 38 anos, veio ao Brasil para representar a Via Campesina guatemalteca na décima edição do Fórum Social Mundial. Ele é o coordenador geral do Comitê de Unidade Campesina da Guatemala (CUC). Participou de diversas mesas de debate e também do ato contra a criminalização dos movimentos sociais. Entre uma atividade e outra, o líder camponês recebeu o BoletimNPC para uma conversa de 40 minutos sobre a vida na Guatemala.
Joaquim Pinheiro, do MST; Daniel Pascual, do CUC Guatemala; e
Brasil de Fato: Você sempre foi camponês?
Daniel – Sempre e também meus pais e avós. Sempre vivemos da terra.
BdF: Como você se tornou dirigente do CUC? Como se formaram suas ideias?
Daniel – Meus avós e meus pais me ensinaram a luta. Três irmãos morreram na luta armada. Meus avós foram perseguidos por se oporem ao sistema. Meu pai foi da direção nacional do CUC. Então, a luta é uma herança. Minha formação teve influência do Exército Guerrilheiros dos Pobres (EGP) e da Teologia da Libertação, da Igreja Católica, que ajudou a entender o porquê da pobreza. E também vivência direta da discriminação, do racismo, da opressão, da exploração.
BdF: É casado? Tem filhos?
Daniel –: Unido. Dois filhos, de 17 e 12 anos.
BdF: E o que você ensina para eles?
Daniel – Eles estão estudando, o que eu não pude fazer. Tenho a preocupação que eles estudem. Falo da realidade dos companheiros indígenas, dos parentes perseguidos pela ditadura. A avó deles, mãe da minha companheira, também é indígena, e o avô foi sequestrado e desaparecido pelo exército da ditadura nos anos 80. Eles têm também um envolvimento muito forte na luta campesina, com os indígenas, mas também se interessam muito pela América Latina. Gostam de Chávez. O maior quer ir estudar em Cuba.
BdF: É possível a Guatemala se transformar em uma Bolívia?< o:p />
Daniel – É possível, mas muito difícil. Apesar de muitas semelhanças, por sermos maioria indígena, com muito latifúndio, muita pobreza e opressão, na Guatemala vivemos uma guerra de 36 anos que exterminou o movimento indígena e o movimento popular, social. Há muito poucas lideranças. As principais estão desaparecidas. Foram massacradas, assassinadas, perseguidas. É uma geração muito incipiente de novos quadros, de homens e mulheres. Há muita pobreza e o latifúndio é muito opressor. Há também a cooptação de quadros do movimento popular pelo governo. Na Guatemala, quando terminou o conflito armado e se assinaram os Acordos de Paz, houve um retrocesso com o neoliberalismo com tratados comerciais, com exploração mineira de ouro, prata, zinco, níquel, petróleo. É um cenário muito complexo, e são poucas organizações também dispostas a confrontar esta situação. É muito difícil a luta com este modelo neoliberal.
BdF: Com que movimentos o CUC se articula?
Daniel – Há muitas articulações que se perderam no caminho. Nos anos 80 tivemos uma articulação muito forte com o movimento estudantil, trabalhadores, sindicatos, mulheres, indígenas, campesinos. Sofremos uma grande repressão por parte do Estado. Nos anos 90, 91,92 reconstruímos uma articulação indígena, camponesa, sindical. Há também uma coordenação indígena, que foi a coordenadora das Organizações do Povo Maya, que também terminou com os Acordos da Paz. Em 93, criamos a Coordenação Nacional das Organizações Camponesas. Atualmente, temos a Coordenação de Convergência Nacional Maya, que é uma mescla de organizações camponesas, indígenas, de saúde, de educação e ONG’s. É uma organização interessante contra as transnacionais dos minérios, petróleo, monocultivo para agrocombustíveis. Esta é a que está mais forte agora.
BdF: E o movimento sindical?
Daniel – Não estão na articulação. É uma realidade distinta o movimento sindical na Guatemala. Em 96, com o aumento da privatização das estatais, os sindicatos quebraram. Houve muita demissão e muita demissão voluntária. O modelo neoliberal atacou mais fortemente o movimento sindical. Muitos sindicatos desapareceram, muitos sindicalistas foram aniquilados. Há uma política de desregulamentação do emprego, de reforma das leis e da constituição para favorecer os governos neoliberais.
BdF: Qual a principal luta desta articulação?
Daniel – A defesa do território. A terra para trabalhar, as plantas, montanhas, os bosques, as pessoas, a memória histórica, o manejo do tempo. A defesa não só do solo parado.
BdF: O que é exatamente a defesa do território?
Daniel – Território na cosmovisão Maya não é só Guatemala. Tem território Maya em toda a América Central: Guatemala, Honduras, Nicarágua e El Salvador. Este é o território ancestral Maya. Na Guatemala somos quatro povos indígenas, divididos em 22 grupos linguísticos. Começa a se despertar a consciência de que território não é só o solo. É o solo, os recursos minerais do subsolo, a energia que gera equilíbrio na natureza. Sacar o ouro, o petróleo ou a prata significa sacar a energia da mãe terra, o que gera desequilíbrio. É a busca de um modo de vida diferente.
BdF: E quem são os principais inimigos deste modo de vida que vocês buscam?
Daniel – As corporações, as transnacionais que estão entrando na Guatemala com tratados comerciais, com concessão de exploração mineradora de ouro, prata, ferro, carvão, petróleo, acumulação da terra para cultivo de agro combustível. Isso de oito anos para cá.
Tem também o projeto Marlin, da empresa mineradora Montana, subsidiária da mineradora Goldcorp, de origem canadense, com capital internacional. Há concessão de exploração de mineira de 20, 30 Km2. A Guatemala tem 108 mil Km2. Há 119 projetos de hidroelétrica, tratados de livre comércio e criminalização dos que se opõem a tudo isto.
BdF: E como os meios de comunicação agem frente a isto?
Daniel – São os principais instrumentos para a criminalização do povo na Guatemala, usados para convencer a população de que as medidas do governo são boas e necessárias, e que as comunidades indígenas são invasoras, terroristas, usurpadoras, delinquentes. Temos poucos meios alternativos. Então, o Ministério Público investiga e persegue, os tribunais emitem ordem de captura, julgam e condenam a muitos anos de prisão. A mídia faz as pessoas acharem que está tudo certo.
BdF: Vocês têm lideranças presas?
Daniel – Sim, temos seis casos bem graves. Dentre eles está o de Ramiro Cho, líder da luta de defesa da terra e contra as empresas petroleiras e do setor hoteleiro. Ele confrontou diretamente as empresas. Foi acusado de roubo e sequestro e, embora não haja provas contra ele, foi condenado a 8 anos de prisão. Estamos apelando nos tribunais.
Há outros casos muito graves. É o caso do companheiro Abelardo Curup que, em luta contra a instalação de uma fábrica de cimento que traria destruição ambiental e que causaria mal a saúde da população, foi acusado de assassinato e condenado a 150 anos de prisão.
Há centenas de processos como estes. Em São Marcos, um estado na fronteira com o México, em um confronto com a Goldcorp oito mulheres que encabeçam as lutas estão sendo perseguidas. Mulheres que não falam bem o espanhol e que não têm muita escolaridade.
BdF: Quem são os donos das terras na Guatemala?
Daniel – São dois. Os terratenientes, (latifundiários) descendentes dos europeus, de origem espanhola ou alemã, que continuam com a mesma atitude colonial. Nos veem como mão de obra barata sem direito à saúde e à educação. Pessoas que servem para trabalhar para os outros. São eles que firmam os Tratados de Livre Comércio com os EUA. Eles são os donos do poder na Guatemala. Eles controlam a mídia, a política, o judiciário, o legislativo, os bancos e as terras. 75% da terra da Guatemala está nas mãos de apenas 6 ou 7 % da população.
Daniel – Bem, existem também os minifúndios, principalmente nos planaltos do país. São muito pequenos.
E os outros donos são as transnacionais?
Daniel – Sim. Estão comprando terra, obtendo concessões. Há uma reconcentração da terra. Compram terras de pequenos camponeses e medianos terratenientes
BdF: A Guatemala tem 13 milhões de habitantes. Como vivem estas pessoas?
Daniel – Um milhão em extrema pobreza, mais de três milhões em situação de pobreza. A classe média passa à pobreza. Em alguns municípios as pessoas passam fome. 49% das crianças de até cinco anos da Guatemala sofrem de desnutrição crônica. Esses são dados da FAO.
BdF: Fale um pouco sobre a juventude de seu país. Aqui no Brasil temos uma parcela de jovens que está sendo perdida para o narcotráfico ou morrendo pelas mãos da polícia, ou seja pelo Estado.
Daniel – Até os anos 90 tínhamos uma juventude muito militante. De lá para cá, uma parte da juventude foi cooptada pela mídia, pelo consumismo, perda de consciência política, migração para os Estados Unidos. E há uma parte que é vítima do narcotráfico.
BdF: Como a esquerda mundial deve se comportar neste momento frente ao que se passa no Haiti?
Daniel – Eles são nossos irmãos. Devemos acompanhar as ações que estão de desenvolvendo lá. Os governos não devem mandar exércitos, mas sim médicos, professores e engenheiros.
BdF: Uma palavra a mais. De onde você tira sua força?
Daniel – Os Mayas temos história de resistência e de luta. Minha família perdeu três filhos na guerra de combate ao exército do Estado colonial e capitalista da Guatemala. A luta é minha vida porque eu nasci em 71 e meus pais saem de casa para buscar justiça, autonomia e porque ainda hoje continuam as raízes da pobreza, da miséria, da fome e da opressão.
500 Anos de luta
. Desde a chegada dos espanhóis, em 1500, a Guatemala se tornou colônia espanhola, povoada por índios Mayas.
. O país servia para produzir café e, depois, bananas para exportação.
. Foi dominado por dois grupos: os criollos, mais conservadores; e os ladinos, mais liberais e modernos.
. Os dois grupos criaram governos autoritários a serviço das elites locais e do capital estrangeiro.
A Guatemala era a típica “República das bananas”, dominada totalmente pela maior empresa imperialista de frutas, a United Fruit, dos EUA.
. De 1944 a 1954, houve o governo progressista de Jacobo Arbenz, que enfraqueceu o poder da velha oligarquia e fez reformas democratizantes. A principal foi a Reforma Agrária, em 1953.
. Em 1954, a CIA organizou um Golpe militar e depôs Arbenz, sob acusação de ser comunista. Foi o clássico Golpe na A.L., coordenado pelos EUA e apoiado pela “tríplice aliança”: militares, Igreja e empresários.
. A Ditadura implantada modernizou a economia, toda voltada para a exportação.
Isso gerou milhões de ex-camponeses e de miseráveis, e provocou a reação popular.
. Nos anos 1960, nascem grupos revolucionários armados contra a política de opressão e miséria popular. O Exército exterminou dezenas de milhares de camponeses.
. Nos anos 1980, entra em cena o neoliberalismo do FMI. Nova onda de guerrilhas contrárias, ao mesmo tempo em que havia eleições mais ou menos livres.
. Crônica fraqueza partidária. Desde os anos 1970, crescem os movimentos sociais: sindicais, camponeses, de bairro, estudantis e pastorais.
. Fortíssima repressão contra o povo. Mais de 300 líderes urbanos assassinados. Massacres em massa de camponeses e 300 aldeias com 50 mil índios chacinados.
ANOS 1980
No campo nasce o CUC
Comitê de Unidade Camponesa,
que uniu camponeses, operários
e comunidades indígenas.
Associa a luta étnica à de classe.
. Em 1996 realizam-se os polêmicos “Acordos de Paz”: 1. Fim do conflito armado; 2. Denúncia dos excessos do Exército; 3. Promessa de melhoras econômicas.
. O Estado continua nas mãos da oligarquia associada ao capital financeiro global.
. Em 2005 o Congresso aprova o Tratado de Livre Comércio com os EUA.
. Guatemala hoje: país de muitas etnias e culturas, a se reconstruir. País dos mais pobres da A.L., dominado pelo narcotráfico na rota dos EUA, com impunidade para os assassinos d
o povo, fraca organização partidária e muitas lutas populares.