em sua coluna de 25/08/2013 no jornal “O Globo”
Vivemos sob o signo da hipocrisia. A volta da democracia no Egito, com a queda do Mubarak e a primeira eleição livre em muitos anos, foi saudada por todo o mundo como um desabrochar primaveril. Só uma coisa deu errado: ganhou a eleição quem não deveria. A Irmandade Muçulmana no poder só deu razão a quem diz que islã e democracia são incompatíveis, ou aos que dizem que a democracia é linda, mas não pode ser suicida. Veio o golpe dos militares, que nunca deixaram de ser a única força política consequente no Egito, e cujo objetivo declarado não é só substituir os muçulmanos no poder, mas acabar, literalmente, com eles.
Os líderes muçulmanos estão presos e seus seguidores sendo assassinados nas ruas, à vista do mundo inteiro, que faz sons protocolares de reprovação, mas não quer se meter.
Os Estados Unidos, que sustentavam a ditadura Mubarak e há anos sustentam, com dinheiro e material, o exército egípcio, enquanto pregam democracia para todos — sem exageros, claro —, não sabem até onde levar sua “realpolitik”, que é o nome pomposo da hipocrisia.
Mas se, num acesso de autocrítica, os americanos cortarem a ajuda para o massacre, não faltará ajuda das petromonarquias da região, como aquele outro exemplo de democracia relativa apoiada pelos Estados Unidos, a Arábia Saudita. Enfim, as primaveras, como a democracia, são lindas, mas também podem ser vésperas de verões infernais.
Essa meleca — e a meleca maior que é toda a situação no Oriente Médio, incluindo a questão Israel/palestinos — é fruto de muitos anos de hipocrisia, começando com a hipocrisia das potências imperialistas, que pilharam meio mundo disfarçadas de evangelizadoras e civilizadoras, e, no caso do Oriente Médio, chegaram a impor fronteiras e inventar países.
A própria geografia da interminável crise em que vive a região é uma herança da passagem dos ingleses, que deixaram o lixo da sua farra para trás. Mas tanto os países artificiais quanto os históricos, como o Egito, tiveram culpa pela sua desgraça atual.
Nos anos 60 e 70 ensaiou-se a criação de uma nova ordem econômica mundial, independente da ordem sacramentada pelo neoimperialismo anglo-americano. Os dólares do petróleo financiariam essa tentativa de emancipação dos pobres. Mas não aproveitaram a abertura.
Os emires apoiavam a ideia da revolta em tese, mas continuaram aplicando seus lucros no sistema bancário dominante. E o neoimperialismo, enquanto exaltava a democracia liberal, se encarregava de impedir qualquer alternativa para o seu domínio.
No Egito, agora, os hipócritas se impõem criminosamente. Quem diria que toda a história recente do mundo caberia numa letra de bolero?
Luis Fernando Veríssimo é escritor.