Por Sergio Domingues, dezembro de 2004. No desenho animado “Os Incríveis”, uma família de super-heróis tem que esconder seus poderes. Nós, ao contrário, temos que redescobrir nossas super habilidades. As que foram seqüestradas e escondidas pela sociedade de classes.
O filme de Brad Bird é muito bom. Animação de primeira, roteiro bem escrito, muita diversão e algumas dicas para discutir coisas mais sérias. O enredo fala de uma família formada por super-heróis que já não estão mais na ativa. Assim como eles, todos os outros super-heróis foram convidados a se aposentar pelo governo devido a problemas com cidadãos normais. O maior deles foi causado pelo próprio sr. Incrível, ao salvar um homem do suicídio. Um evidente desrespeito ao livre arbítrio, agravado por lesões na coluna vertebral do suicida frustrado.
Mas, o filme não pretende entrar em discussões jurídicas e filosóficas sobre o direito que cada um tem de tirar a própria vida. Ao invés disso, tem muita ação e situações engraçadas. A animação está ainda mais perfeita do que em “Srhek 2” (Andrew Adamson e Kelly Asbury) e tem mais vida do que em “Expresso Polar” (Robert Zemeckis). Também é menos raso do que este último.
Por exemplo, obrigado a aposentar seu traje colorido, o sr. Incrível trabalha numa seguradora. Leva a vida triste de um burocrata que atende clientes em apuros com suas apólices. Um deles, é uma senhora idosa que descobre que sua aposentadoria vai ficar muito menor do que esperava. Chora, desesperada diante do grandalhão impotente. Este lhe dá algumas dicas sobre como aproveitar algumas brechas no contrato, mas nada muito consolador. Logo depois, recebe uma bronca de seu irritante chefe por ter pena dos clientes. “Como fica nosso lucro?”, pergunta o homenzinho. Como todo ser humano normal, o super-herói é impotente para mudar regras burocráticas e enfrentar a lei do lucro máximo.
Síndrome é o sintoma da doença capitalista
Em casa, nosso super-herói aposentado reencontra a família. A esposa é a Mulher-Elástica, a filha mais velha é Violeta, o do meio é Flecha e o caçula, é Zezé. Não precisamos descrever os poderes da Mulher-Elástica. Violeta tem o dom da invisibilidade, como convém a uma adolescente tímida. Flecha é rápido como um raio, tal qual aqueles meninos de ritmo supersônico que todos conhecemos. O bebê parece não ter super habilidades, até que elas se revelam no final do filme.
As coisas começam a mudar quando o entediado chefe da família perde a paciência e agride seu chefe puxa-saco. Demitido, finge que continua empregado, algo muito comum em tempos de neoliberalismo. Uma misteriosa mulher lhe oferece uma missão em uma ilha distante em troca de bom dinheiro. Aceita o trabalho, sem contar à esposa. Mas, a missão não passava de uma armadilha preparada por um antigo fã do Sr. Incrível. Trata-se de Bochecha. Um garoto que tentou se transformar em parceiro do super-herói e foi rejeitado por este. Já adulto, Bochecha transformou-se no Síndrome. Ele não tem super poderes, mas conta com inteligência acima da média. Criou aparelhos eletrônicos que lhe dão habilidades suficientes para se candidatar ao papel de super-herói. Seu objetivo, agora, era fazer os superseres voltarem à ativa e derrotá-los. Depois disso, venderia suas bugigangas eletrônicas para que todos pudessem se tornar super-heróis. “E se todos forem super, ninguém será”, diz ele, corretamente. No final, a superfamília une suas forças e derrota o vilão.
Em primeiro lugar, vamos aos aspectos mais conservadores. A valorização da família é evidente. O sr. Incrível é grande, loiro e atlético como têm que ser os pais ideais. Proibida de salvar o mundo, a sra. Elástico fica em casa cumprindo suas tarefas domésticas. É flexível como deve ser toda dona de casa, na hora de administrar a casa de maneira a contentar a todos. De outro lado, ela literalmente estica-se pelos cômodos da casa para dar conta das travessuras dos filhos. Na hora da força bruta, o pai age. Enfrenta as máquinas na base da porrada. Na hora da proteção, é a vez da mãe intervir. Por exemplo, transforma-se em pára-quedas para salvar os filhos quando todos caem de um avião. A filha, tímida e insegura, logo se mostra capaz de proteger toda a família com seu escudo de energia. Pode-se dizer que é a mais forte do grupo, do ponto de vista da resistência (uma observação que devo a Maurício Carvalho, de 7 anos). Um sinal de que quando vier a se adulta será mulher dos tempos atuais. Emancipada e guerreira, é verdade. Mas, provavelmente, apenas para seguir o ritmo de competição imposto pelo mundo machista. E Flecha? Será uma espécie de filhinho de papai super-acelerado?
Tudo isso dá o tom familiar americano necessário para que o grande público goste do filme e não preste atenção a seus aspectos mais interessantes. Quais são eles? Em primeiro lugar, o nome do vilão é Síndrome.
Pelo que diz o dicionário, síndrome é “um conjunto de sinais e sintomas observáveis em vários processos patológicos diferentes e sem causa específica”. O vilão é um conjunto de sintomas de uma doença. Qual seria essa doença? Certamente, a do consumismo, da cobrança para que cada um seja um super-ser e, portanto, olhe para os outros a partir de sua superioridade. Uma doença autoritária, que vem tomando a humanidade desde que a sociedade se dividiu em classes. E na atual sociedade, já é uma praga. Somente são superiores aqueles que encontram lugar no sistema de produção. Fora dele, não há a menor chance de sobreviver com dignidade. E mesmo quem encontra seu posto de trabalho, geralmente realiza suas tarefas com descontentamento e não com prazer. É o império do trabalho alienado. Ou seja, do trabalho com o qual o trabalhador não se identifica. O produto do trabalho do artesão da Idade Média podia até ser apropriado pela classe dominante. No entanto, o artesão tinha algum controle sobre o processo criativo. Muitas vezes, impunha seu ritmo. Sob o capitalismo, é a máquina que impõe o ritmo e “cria” as coisas.
A criatividade foi seqüestrada pela sociedade de classes
A solução proposta por Síndrome tem dois lados. Por um lado, está correta quando pretende que “todos sejam super para que ninguém seja”. Nada mais justo. Seria até igualitário, não fosse o fato de que ele pretende vender as super habilidades tecnológicas que produziu. Nem todos terão a chance de serem super. Só os que tiverem dinheiro. É o retrato do capitalismo. O desenvolvimento tecnológico já nos permite resolver os principais problemas da humanidade. É o tal do progresso. No entanto, é um progresso que não atinge a todos e está direcionado de tal modo que se o fizer, provocará uma catástrofe. Um exemplo: a produção de petróleo mundial atualmente é de 72 milhões de barris diários. Se cada chinês possuísse um automóvel, só a China consumiria 80 milhões de barris por dia. Ao mesmo tempo, o ar do planeta ficaria envenenado de forma incurável. O mesmo vale para praticamente todos os outros avanços capitalistas. São avanços que só funcionam para uma minoria. Se um dia viermos a democratizar o acesso à tecnologia, isso terá que ser antecedido por outras formas de relação do ser humano com seu planeta e consigo mesmo.
Por outro lado, só chegamos a essa situação exatamente porque o trabalho humano deixou de ser uma atividade de troca criativa com a natureza. Voltando à noção de trabalho alienado, o enorme poder criativo dos seres humanos foi sendo seqüestrado pelas varias sociedades autoritárias. É o saber do sapateiro que foi embutido na máquina que faz sapatos. A habilidade do ferreiro que se transformou em robôs vigiados por sonolentos e aborrecidos olhos humanos. Até os doces e salgados que dependiam das mãos e da sabedoria das cozinheiras são cada vez mais feitos por máquinas que os deixam sem sabor.
O fato é que somente restaram a alguns poucos a capacidade de manter essa relação criadora. São os artistas ou aqueles cujas habilidades e talentos se combinam perfeitamente com as necessidades impostas pelo capitalismo. E mesmo estes enfrentam uma concorrência cada vez mais dura. Ter um faro comercial imbatível já não basta para evitar que um empresário seja esmagado pelos grandes monopólios capitalistas. Ser um artista talentoso não é garantia para ter seu trabalho aproveitado na cada vez mais restrita indústria cultural.
A verdade é que a criatividade humana vem sendo domesticada e castrada ao longo de toda nossa história. Recentemente, a edição da revista “Viver – Mente & Cérebro” de outubro de 2004, trouxe uma reportagem de Eckart O. Altenmüller, com o nome de “Acordes na cabeça”. Estudiosos do funcionamento da mente concentraram suas pesquisas na forma como o cérebro humano compreende a música. Pois bem, os pesquisadores descobriram que existem cerca de 6 bilhões de formas de captar a música na espécie humana. Para cada cabeça no planeta há uma forma diferente de ouvir e sentir sons musicais. Isso é a criatividade humana. Esses são os super poderes do animal mais estranho e rico do planeta. Não fosse assim, não descobriríamos em cada bebê um ser completamente diferente de seus colegas de espécie, mais velhos ou mais novos.
Retomar essa possibilidade é a grande realização que nos espera. Para isso, há que se desmontar e destruir as formas autoritárias e de exploração entre nós. Construir novas formas de convivência social. É como Marx e Engels disseram em um de seus primeiros livros. Em “A Ideologia Alemã” está escrito: “O livre desenvolvimento de cada um é condição para o livre desenvolvimento de todos”. É radicalmente igualitário, mas sem perder o sentido libertário porque respeita profundamente as diferenças individuais. O filme de Bird é muito bom e criativo. Mas, é uma pequena, modesta, pobre, amostra do que seria capaz a imaginação humana se fôssemos todos livres para exercer nossas incríveis habilidades.
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