(Roberto Romano – professor da Unicamp)

Na guerra, com a censura militar, a tarefa dos jornalistas fica mais difícil. Claro, quando eles são jornalistas de fato e não mensageiros da “verdade oficial”. Entre as tarefas da imprensa e a propaganda, balançam muitos profissionais da mídia. Se grande parte perde a vida para informar, honrando o seu trabalho, uma quantidade quase igual de jornalistas ganha para espalhar as ordens dos gabinetes poderosos. Tal realidade impera tanto nos EUA quanto no Iraque, no Brasil e no Paraguai, numa democratização da vergonha só igual à dos intelectuais e universitários que bajulam o qualquer poder.

A infâmia é cosmopolita.

Reuni um florilégio de pérolas jornalísticas que fazem ruborecer todas as faces honestas. Por exemplo, o juízo “ético” de Walter Conkrite sobre seu colega Peter Arnnett. Este último é um falastrão coberto de glória na primeira guerra do Golfo, mas que deu uma entrevista à TV iraquiana mostrando os erros americanos. Arnnett foi demitido e pediu desculpas, rastejando, aos seus patrões. Diz Conkrite: “Ele manchou sua reputação, ofendeu o país e perdeu – com justiça – seu emprego. Porém a demissão de Peter Arnett não foi somente uma tragédia pessoal. Sem sua presença, perdemos em Bagdá um olhar que era, na verdade, uma contribuição valiosa ao que sabemos sobre um misterioso inimigo”. Fantástico jornalismo! O último segmento da frase cronkitiana é auto caluniadora. Jornalista e espião constituem profissões diversas, pelo menos oficialmente, por enquanto.

Mas existe infâmia ainda maior. Como a recolhida por John Chalmers, na Reuters. Ao noticiar que existem suspeitas americanas, de que Hussein estaria usando armas com maior poder de fogo do que o costumeiro, o jornalista cita uma enormidade : “Eles (os EUA) acham que os iraquianos podem estar usando os Kornet-E, versão para exportação de míssil russo guiado por laser e projetado para destruir blindados. ´Temos certeza de que eles têm [essa arma]´, disse Robert Hewson, editor da revista Jane s Air-Launched Weapons. ´É uma surpresa desagradável (para as tropas dos EUA), e elas não adaptaram suas táticas. Mas isso não vai parar o show e não é motivo para alarme`”.

Comparar o massacre de civis com um show é próprio de mentes apodrecidas no gozo obsceno de sua própria força e violência.

A infâmia desconhece a piedade.

Finalmente, algo ainda pior. Na semana passada citei Bertrand Russell, o sábio que ajudou a alicerçar a consciência ética do Ocidente, sobretudo durante a guerra do V ietnã. Russell disse, em escritos lancinantes sobre o uso da bomba atômica e de outras táticas bélicas, que após a Segunda Guerra todos os países (tanto no leste quanto no oeste do mundo) assumiram como normal os procedimentos que escandalizavam na época em que eram utilizados pelo nazismo. É por isso que ele criou, com Sartre, o Tribunal para julgar a guerra do Vietnã : para completar a tarefa do Tribunal de Nuremberg. Confirmando a tese de Russell, escreve hoje Max Boot (pesquisador no Council on Foreign Relations) para o Finantial Times : “A coalizão terá sucesso no Iraque. A cada dia que passa as forças de Saddam enfraquecem, e as da coalizão se reforçam. Que o inimigo esteja combatendo com vigor agora não implica que não seja derrotado em breve. Os franceses lutaram arduamente em maio de 1940, inicialmente. Mas o veloz e feroz avanço alemão terminou conduzindo a um completo colapso. A mesma coisa acontecerá no Iraque.” É tremendo o símile ! Boot compara os americanos e inglêses em Bagdá, dos nazistas em Paris. Se eu fosse americano do Norte, ou inglês, ficaria irado com a péssima lembrança. Apenas um milagre pode mudar o rumo da guerra atual. Ela será vencida pelos EUA e por sua colaboradora menor, a Inglaterra. Mesmo assim é lamentável o desejo, evidenciado por muitos intelectuais e jornalistas, de agradar o puro complexo industrial e bélico. Desejo tão grande que o servilismo chega à beira da loucura. “Shame on you”, ventrílocos dos governos ! A infâmia é universal.